Ética.

Ética

Eu e uma ótima equipe de médicos estávamos cruzando o atlântico em meu avião particular, lotado de equipamentos cirúrgicos. O destino era Moçambique. Depois de quase um ano desiludido, a esperança resplandecia em minha vida outra vez. Mas para senti-la novamente, a decisão que tive de tomar não foi nenhum pouco fácil.

Meu nome é Otto Areuae. Desde pequeno sempre tive um grande talento para os negócios, quando na época, já conseguia passar a perna em garotos muito mais velhos que eu.

Por sorte, não precisei me valer de artimanhas para ficar bilionário. Tive que usá-las apenas para ficar multibilionário.

Meu pai tinha 45 anos, quando morreu de infarto e me deixou como herança a maior empresa petrolífera do país. Quando eu assumi a empresa, com 27 anos e oito bilhões na “poupança”, comecei a me valer novamente das artimanhas. Rapidamente, tripliquei o valor da empresa, tornando-a uma multinacional, presente em nove países.

Nesse meio tempo, casei com a melhor mulher que poderia existir e tive duas belas mocinhas que amo mais que tudo. Apesar dos negócios tomarem grande parte do meu tempo, sempre fui um pai e um marido exemplar, estando sempre presente nas horas necessárias. Eu sou um dos poucos homens que podem garantir que tiveram uma vida perfeita, tanto profissional como familiar.

Mas a vida é sádica. Nem o mais rico dos homens pode comprar o amor de Deus.

Mas quem sabe seja possível afrontá-lo?

Há onze meses, já com 42 anos, sofri um súbito infarto do miocárdio. Alguns amigos conseguiram me levar ao hospital a tempo. Meu mundo começou a desabar depois da minha conversa com nosso médico particular. Ele me dera – sem sombra de dúvidas -, apenas mais dois anos de vida, se eu não transplantasse o órgão danificado.

Todo o meu império e minha felicidade começara a escapar por entre os meus dedos, sem que eu nada pudesse fazer.

O nosso médico apontou-me a solução: com alguns poucos milhares de dólares e os contatos certos eu poderia comprar um coração clandestinamente. Para mim seria um preço ínfimo se comparado ao valor de permanecer ao lado da minha família. A princípio, concordei com a idéia, mas após várias noites sem dormir, pensando em minha família que também estava extremamente sôfrega com a notícia, comecei a pensar em algo que não tinha percebido – eu passaria na frente de centenas de doentes iguais a mim, apenas porque eu podia pagar por aquilo e eles não. Não era justo. Não era justo e eu não iria fazer! Não conseguiria olhar nos olhos das minhas filhas novamente, sabendo que tive de deixar outra família sem pai só porque eu podia pagar por isso.

Aceitei o destino que me fora incumbido.

Passei noites em claro, chorando escondido – quem dera que apenas eu chorasse.

Depois de quase um ano levando uma vida miserável e depressiva, incapaz de reencontrar a felicidade, acometeu-me uma idéia. Uma salvação. Mas aquela era uma idéia que envolvia ética. E tudo que envolve ética, vem acompanhado de um caminhão de prós e contras, ainda mais se tratando de medicina.

Comecei a meditar durante vários dias sobre o que realmente é a ética. Cheguei a uma única conclusão: a ética não existe! Afinal, ela não passa de uma OPINIÃO. A opinião de cada pessoa sobre o que é certo e o que é errado. Ou seja, é impossível discernir com clareza o que é certo e o que é errado para cada pessoa.

Para uns, comer carne é extremamente antiético; para outros é natural - para uns, a clonagem é necessária; para outros, é como se quiséssemos brincar de Deus. Para algumas pessoas, ensinar religião nas escolas deveria ser lei; outras pessoas acham que é extremamente errado e dispensável.

Então, sendo a ética apenas uma questão de interpretação de cada pessoa ou grupo, sobre determinados assuntos, ela não deve ser tomada como lei.

Sentindo-me em paz “comigo mesmo”, cheguei à conclusão de que meu plano não é antiético – pelo menos para mim. Mas, com certeza, a imprensa e milhões de religiosos e conservadores, iriam botar minha cabeça à prêmio se descobrissem o que estou prestes a fazer.

Aterrissamos no miserável país. Em frente ao aeroporto, que pelo jeito há décadas não via manutenção, dois caminhões fretados e um guia nos aguardavam.

Após carregarmos os caminhões, eu o guia e os médicos, partimos para a aldeia mais pobre da região. Pouco mais de três mil pessoas viviam ali e em condições de extrema pobreza. O mandachuva da aldeia concordou em reunir todos na praça central para que eu pudesse lhes fazer uma proposta.

Subi em um palanque improvisado com alguns caixotes e provido de um megafone, falei ao curioso e padecido povo que me fitava:

- Venho até vocês para humildemente fazer uma proposta – eu sou um homem muito rico, e possuo uma linda família. Mas em aproximadamente um ano eu deixarei este mundo. Meu corpo me deixou desamparado e eu preciso de um novo coração.

- Muitos de vocês e de seus familiares também morrerão em breve por causa da fome. E vocês sabem que é inevitável – os negros olhos daquelas pessoas me penetravam cada vez mais. Sabiam que eu falava a verdade. – Eu posso salvar vocês e suas famílias da morte. Suas crianças não passarão mais fome até o último dia de suas vidas. Mas eu preciso que alguém me retribua o favor... dando-me seu coração em troca – as pessoas me olharam surpresas, mas compreensivas e esperançosas. – Se algum de vocês me doar um coração, eu sustentarei suas famílias e essa aldeia até o dia da minha morte e passarei o legado para minhas filhas, e tenho certeza de que elas passarão a seus filhos também.

Alguns minutos se passaram até que vários corajosos homens, sem nem pedirem garantias, aproximaram-se do palanque com seus braços erguidos, voluntariando-se e deixando para trás mulheres e crianças com lagrimas nos olhos, mas conscientes da coragem daqueles nobres homens.

Ao todo, 37 homens dirigiram-se à frente, dispostos a sacrificar a vida para que em troca eu salvasse a pobre aldeia da miséria.

Depois dos exames de compatibilidade sanguínea, apenas dois homens estavam aptos a me doar o coração que me daria muitos anos mais de vida. Um tinha oito filhos e esposa. O outro morava apenas com um filho de quatorze anos em uma humilde choupana feita de barro.

Para mim não seria ético deixar oito crianças sem pai e uma esposa desamparada.

Após despedir-se longa e calmamente do seu filho, um rapaz extremamente forte e corajoso, diga-se de passagem, eu e o homem dirigimo-nos para a sala de cirurgia improvisada em um dos caminhões, onde os competentíssimos médicos nos aguardavam.

Agora estava feito.

Vários dias depois, tendo cumprido minha promessa para com a aldeia e mandado erguer uma enorme estátua em homenagem ao meu salvador, eu seguia viagem para casa, ansioso para ver minha querida família novamente; com a consciência limpa por ter salvado mais de três mil crianças e adultos da morte certa, por desnutrição; e mais animado ainda por ser um homem com espírito renovado. Agora com meu novo coração, teria muitos anos mais de vida para praticar a melhor das ações que um homem pode empreender ... a filantropia.

... já ia esquecendo. Da noite para o dia, arrumei um belo filho de quatorze anos, que estou levando comigo para o Brasil.

Eu sei que esse texto vai gerar alguma controvérsia e não agradará a todos, mas não deixem de comentar, positiva ou negativamente. Bye.

Lure Afaiselt Mailion
Enviado por Lure Afaiselt Mailion em 17/07/2011
Reeditado em 12/11/2014
Código do texto: T3100248
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