Involução das Espécies - Parte 2

Parte 2 – A Terra Oca

Debaixo de uma camada quilométrica de geleiras, um banho quente logo pela manhã seria algo impensável para qualquer criatura normal. Mas Charles tinha este privilégio, bem como os milhares de paleontólogos que dividiam com ele aquele novo espaço. Aos poucos recuavam cada vez mais no tempo na medida em que se aprofundavam naquelas camadas geológicas.

Uma idéia maluca se passava pela cabeça de Charles. Como explicar que a Antártida, tanto tempo isolada, se atualizasse da evolução do resto do mundo tão repetidamente?

- Não Charles! – Huxley estava inconformado. – Não acredito que uma teoria tão absurda tenha partido de um cientista tão respeitável quanto você!

- Mas é a que melhor se encaixa! Tem alguma outra idéia?

Huxley pensou muito. Estava quase disposto a admitir esta possibilidade na falta de outras melhores, mas seu lado racional falou mais alto.

- Terra Oca, Charles? Quer mesmo que alguém aceite tal absurdo?

- E que melhor explicação existe para que, vez ou outra, em eras de intensa atividade tectônica, o interior oco do planeta se abra de vez em quando para ser ocupado pelas espécies da superfície, para logo depois se fechar e deixar tais espécies evoluírem de forma independente das que ficaram fora?

- Então você também acredita que, debaixo desta geleira toda, deva existir uma gigantesca abertura polar oculta?

- Não duvido. Creio que estejamos prestes a descobri-la.

- Você está brincando, não é? Não está levando esta teoria a sério! Conhece as inúmeras razões físicas que provam que esta ideia de planeta oco é absurda.

Charles pensou. Sim, ele as conhecia bem! Ainda admitindo fato real esta impossibilidade do planeta Terra assumir a conformação de uma calota esférica oca, mesmo assumindo a possibilidade de existir tal aberração, era fácil provar que no seu interior oco reinaria a absoluta gravidade zero! Qualquer calouro de física poderia demonstrar que nenhum corpo seria atraído em direção à superfície côncava deste planeta oco. Em qualquer ponto interior de uma calota esférica, a resultante das forças que atraem na direção oposta ao centro é exatamente igual à resultante daquelas que atraem em direção ao centro! Não dava para imaginar uma atmosfera capaz de ocupar com a pressão adequada todo o interior de uma terra oca de 6500 quilômetros de raio, e muito menos a vida como estávamos acostumados a conhecê-la evoluindo em gravidade zero! Ainda assim, a teoria explicava muito bem aqueles absurdos, e Charles não queria dar o braço a torcer.

- “Quando se eliminam todas as alternativas impossíveis, aquela que sobra, por mais absurda que pareça, deve ser a verdadeira”.

- Ainda não eliminamos todas as impossíveis. Existem outras explicações improváveis tão boas ou melhores do que esta.

Charles adoraria elaborar uma explicação melhor que esta, mas qual seria?

- Além disso, nem faz sentido falar de uma abertura polar no meio do continente antártico. Mesmo porque o fato dele hoje estar no polo é eventual. Nem sempre esteve aqui.

- Isto SE a deriva de continentes for fato real, Huxley!

- É real, Charles! Não existe brecha alguma na teoria para se questionar isto.

- E quanto à datação radioativa? Já se sabe de que era são os fósseis recentes? O hominídeo, o ancestral do lobo, o morcego bípede...

- Pedi uma nova avaliação, o primeiro resultado veio incorreto. Deve ter sido alguma falha na obtenção das amostras.

- E os fósseis mais recentes? Conseguiram descobrir de que espécie se trata?

- Esta é realmente curiosa! Um ancestral marinho do elefante, quem imaginaria isto?

- Marinho? Um caminho oposto ao trilhado pelas baleias? Realmente não me lembro de outra evolução parecida com esta.

- A tromba latente do mamífero não deixa dúvida: é um ancestral dos elefantes. Bem semelhante às atuais baleias, só que neste caso o mamífero saiu novamente do mar e voltou a ocupar a terra firme.

- Não é uma mandíbula alongada, como a do antigo ictiossauro?

- Não. Era uma estrutura muscular. Inclusive só foi detectada pelo relevo impresso na lama fossilizada à sua volta, pois não haviam ossos nela para serem conservados. Até mesmo uma pequena presa de marfim ao lado da boca foi detectada. É mesmo um tataravô marítimo dos atuais elefantes...

- Impressionante! Temos material novo aqui para décadas de pesquisa. A profundidade que estamos cavando atualmente corresponde a que era?

- Como disse antes, pedi que fosse feito um novo teste de datação radioativa. Desta vez eu mesmo acompanhei a obtenção de amostras de cada uma das camadas geológicas.

- E quanto ao nosso hominídeo de cabeça pequena? Alguma espécie conhecida foi encontrada ao se voltar no tempo? Alguma indicação de quando foi que este continente isolado entrou em contato com o resto do mundo, com ancestrais nossos que já estudamos?

- Não. E o mais estranho é que vão se diferenciando mais cada vez que descemos mais nas eras geológicas. Até o momento, nenhum parentesco com espécies ancestrais já conhecidas.

- E camadas mais profundas ainda? Temos sondas automáticas para perfurá-las, adiantar o que encontraremos nelas quando chegarmos lá com nossas peneiras e picaretas.

- Só poderemos ter certeza da época exata depois do teste de isótopos. Mas pela profundidade acredito que os traços de fósseis trazidos por estas sondas sejam um pouco posteriores ao período do Cretáceo.

- Dinossauros na Antártida?

- Não disse que eram dinossauros. Parecem mais aves bem primitivas. Meio aves, meio reptilianas...

Os olhos de Charles brilharam ao ouvir esta informação.

- Você deve ter imaginado o que foi que eu pensei, não é Huxley ? Período pós-Cretáceo, foi o que você disse?

- Exato. E, sim! Imagino o que você está pensando!

- Diria que é pouco depois da grande extinção em massa?

- Provavelmente algumas dezenas de milhões de anos depois. Cinquenta milhões de anos atrás, talvez...

- Os grandes répteis já deveriam estar extintos nesta época, não é mesmo?

- Sim, já estavam. – pensou mais um pouco, e concluiu: - Mas este ecossistema é bem particular mesmo. E se...

- Sei o que é este seu “e se”. Eu pensei primeiro: e se os dinossauros não tivessem sido extintos?

- Tudo indica que evoluíram nas atuais aves.

- Tá, mas uma pequena parte deles, sobreviventes do cataclisma. Digo: e se não tivesse ocorrido o cataclisma? Asteróide, mudança de clima, avanço das angiospermas... seja lá qual for a causa. E se, como vimos vários exemplos aqui, uma amostra dos dinossauros do final do cretáceo tivesse acabado, de uma forma que ainda precisamos descobrir como, aqui na Antártida? E pudessem continuar sua história evolutiva separados do resto do planeta, onde seus primos sucumbiam e abriam espaço para os mamíferos?

- O sonho de qualquer paleontólogo! Estudar uma linha evolutiva alternativa, em que os dinossauros não tivessem sumido do planeta. Talvez isto tenha acontecido aqui! Mas como?

- Pensamos depois no COMO! Vamos agora aproveitar o material em nossas mãos! Falta quanto para atingirmos a camada pós-Cretácica ?

- 400 ou 500 metros. Umas duas semanas se escavarmos normalmente, mas pode ser reduzido para dois ou três dias se nos concentrarmos num poço de uns 5 metros de raio. Espero que você não seja claustrofóbico!

- Vão em frente! Depois pesquisamos com cuidado as eras intermediárias, mas quero estudar logo o que existe neste incomum pós-Cretáceo daqui da Antártida! A propósito, e a datação radioativa?

- Está ficando gagá? Problemas de memória? Acabei de te dizer que estava errada de novo! Vou verificar pessoalmente a próxima.

- Que tipo de erro?

- Não se aborreça com isto por hora. Quando tiver números corretos, eu te conto.

- Ok. Vamos em frente então! Estou ansioso para estudar esta linha evolutiva alternativa dos grandes répteis, preservada do cataclisma dentro do oco da Terra.

Huxley olha espantado para o amigo.

- Estou brincando, relaxa! Como disse antes, depois tentamos explicar COMO isto aconteceu.