DISTROPIA - Capítulo 5

Caminhei resoluto até o elevador, decidido a encarar o mundo lá fora fôsse como ele fôsse agora. Três figuras já lá dentro me encararam com estranheza. As conhecia de vista, mas não havia motivo maior algum para iniciar um bate-papo. A propósito, não estranhei nem um pouco ao perceber que os botões do elevador não respondiam aos meus desejos. Aguardei paciente que alguém também se dirigisse ao térreo, meu destino, para sair junto com ele.

Foi bem estranho ver meia dúzia de pessoas, simultaneamente, dando as costas para a porta que se abria e saindo do elevador caminhando para trás. Considerei na hora uma brincadeira de mal gosto, e saí dele me dirigindo de frente, aparentemente para espanto geral! Mas todos olharam para baixo depois, e ninguém ousou fazer qualquer comentário. Pareciam nem mais se lembrar do que acabara de acontecer! Seu Zé, o porteiro do dia, mais uma vez ficou me encarando com a mesma estranheza da primeira vez, quando entrei no prédio.

Todo mundo na rua caminhava para trás. Até os carros andavam para trás! Isto eu já tinha visto antes em pouco menos de meia dúzia de veículos ao chegar até aqui, mas parecia agora claro que todos faziam isso!

Uma figura me aparece correndo para trás. Ao se aproximar de mim, a moça me encarou com olhos cobertos de lágrimas. Me disse algo que, ainda não acostumado com o idioma reverso, havia entendido muito pouco. Me pareceu (posso ter entendido mal alguns trechos) que o diálogo foi mais ou menos esse:

- Não precisava ser assim, César! Não precisa brincar comigo!

As lágrimas parecem subir em direção a seus olhos. Não! Definitivamente não pareciam: elas estavam subindo mesmo! Aquele rosto bonito aos poucos secava, e esboçava um lindo sorriso.

- Quem é você? - perguntei... Tentei inspirar com clareza os fonemas daquele idioma invertido.

- Por que você está fazendo isso? Me ignorando assim? - já havia aprendido a reconhecer perguntas reversas, mas fiquei em dúvida se ela havia dito mesmo “ignorando”... Parecia a única combinação reversa que expressava alguma palavra reconhecível...

- Olá!! Te conheço? Não estou ignorando você! Não te conheço MESMO!

- Nossa, você está diferente, César! Bem estranho...

- Me desculpe! Estou meio confuso! não me lembro de você. Estou estranho como ?

- Se nos conhecemos? Você tem coragem de perguntar isso? Francamente! Você não se lembra de ontem? Laura! Conversamos horas sobre aquela sua idéia doida de mundos cujo tempo corre de trás para a frente! Não lembra disso?

- Quem é você? Nos conhecemos?

- Quê? O que você quer dizer com isso?

- Como assim “o que eu quero dizer”?

- Oi César! Você anda sumido!

E Laura me deixa, caminhando para trás como se nem tivesse me reconhecido... Fiquei matutando horas sobre o encontro, e foi crucial para eu acabar entendendo o que acontecia. Na hora não entendi, mas se Laura falou que nos encontramos ontem, estava claro que eu iria encontrá-la de novo amanhã. Com o dia a dia isto se tornou natural, mas naquele momento específico eu estava bem confuso...

Foquei então no meu objetivo principal: fazer compras! Logo descobri que neste mundo maluco este conceito muda bastante! Primeiro, não tinha um tostão no bolso! Achei que talvez me restasse algo naquele cartão, e assim entrei no supermercado com o carrinho vazio. Notei a multidão me observando como se eu fosse um alienígena, e perguntei:

- Que foi?

Esqueci de usar a língua reversa, de forma que provavelmente nenhum ouvido foi capaz de captar meus fonemas expirados. Mas ainda que pudessem captá-lo, sei agora que captariam um incompreensível “iôfik!...”

O interesse desapareceu assim que entrei com o carrinho vazio. Pareceram ter perdido totalmente a curiosidade. Continuei devagar, tentando não chamar mais a atenção de ninguém.

Peguei alguns pacotes no setor de sopas instantâneas, alguns refrigerantes, doces. No setor dos salgadinhos, decodifiquei com clareza um diálogo entre mãe e o filho pequeno.

- Filhinho, não se intrometa na vida dos outros!

- Por que aquele homem está devolvendo os salgadinhos?

- Que foi, filho?

- Mãe, olha lá!! - e aponta para mim. Mas o interesse desaparece logo em seguida, e eles continuam empurrando o carrinho para trás e devolvendo os produtos nas prateleiras...

“Vou enlouquecer aqui!!! Que se passa com essa gente? Será que todo mundo pirou de uma hora para outra?”. Sim, eu já tinha quase entendido o que estava acontecendo. Mas meu racional ainda me impedia de admiti-lo...

Cheguei com o carrinho cheio no caixa.

- Ei cara!!! Por que você está passando por aqui?

- Estou comprando esses produtos!! - tentei caprichar na minha pronúncia invertida.

Imediatamente o caixa perde todo o interesse, e eu passo por ele. Só quando ele me vê ensacando as compras, me pergunta:

- De onde você trouxe isso? Por que está tirando dos sacos plásticos?

- Ué, estou comprando! Quanto ficou?

- O que você está fazendo?

Que situação surreal!!!

- Simplesmente vim fazer umas compras! Basta me cobrar o preço justo, pombas!!!

Quando saio com os produtos ensacados, o caixa simplesmente parece ignorar minha existência... Nem me cobrou por eles? Bom, pra que lembrá-lo disso então, né? Saí como se nada tivesse acontecido. Aparentemente, ao olhar de todos, parecia mesmo que nada havia acontecido...

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Cheguei ao prédio com as compras e disse ao porteiro, em português invertido:

- Bom dia, Zé!

- Boa tarde, César! - vendo seu olhar estranho, logo me lembro do conselho do Dr. Karnot, talvez tarde demais: andar para trás!! Algo simples (só precisava ter o cuidado de não bater a cabeça em nada) mas que pareceu me resolver grande parte do problema com as pessoas. Naquele momento o portediro Zé parou de estranhar minha entrada. Simplesmente fez um comentário, que sabiamente ignorei:

- Colocando o lixo para fora César?

Ainda precisaria de um tempo digerindo os fatos até compreender o significado disso tudo. Na hora, só queria me encontrar logo com minha solidão, voltar ao meu isolamento seguro.