A FÓRMULA DO CAOS - CAPÍTULO X

Não vou aborrecer meus leitores com detalhes maçantes de todos os trâmites. Abreviando a descrição de semanas de uma burocracia irritante, a idéia da volta do trem foi aprovada, e a viagem inaugural marcada para as 7 horas da manhã do dia primeiro de janeiro de 2017. Isto era o próximo domingo.

- Nem acredito nisto, jovem! - lágrimas escorriam abundantes da face do Seu Bosco. - Você é um anjo!

Me mostrou um novo caderno em branco. Gravado em sua capa de couro, lia-se em dígitos dourados: 2017.

- O senhor vai continuar fiscalizando com marcação cerrada, não é Seu Bosco?

- Pode apostar, meu jovem! Pode apostar!

- Espere um minuto, trouxe uma coisa para o senhor...

Trouxe a pesada caixa de papelão que havia deixado na porta. As antigas anotações, já devidamente digitalizadas, poderiam ser agora devolvidas ao dono legítimo. A caligrafia do velho fiscal era tão regular que um software OCR despretencioso conseguiu digitalizar sem dificuldade alguma as páginas scanneadas. Ainda não aplicara os dados digitalizados ao meu algoritmo, pois sabia da pressa do Seu Bosco em reaver suas preciosidades.

- Aqui estão de volta seus bebês, Seu Bosco!

O velho abriu a caixa impaciente. Começou a retirar um por um, ano após ano. Beijava os cadernos, e os colocava nas prateleiras vazias. Incrível, mas ele parecia saber exatamente a posição original de cada um dos volumes que tirava aleatoriamente da caixa (devo confessar que não fui cuidadoso em mantê-los em ordem cronológica na hora de empacotá-los). Vendo ele tão compenetrado, disse um "adeus" que ele certamente não ouviu e deixei sua humilde casa. Afinal, eu próprio estava impaciente em trabalhar com os dados novos!

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Fui bem científico em minha análise: tratei de aplicar sistematicamente o algoritmo nos horários de partida de cada ano par, e verificar se a previsão batia com os horários dos anos ímpares consecutivos. Ou seja, primeiro tentei "prever" dados que já existiam, para ver se correspondiam. 100% de acerto! Feliz? Assustado? Assombrado? Era difícil descrever o que sentia. Não estava jogando moedas, nem dados, nem sorteando cartas, nem prevendo loterias. Estava analisando horários de chegada e partida de trens! Quantas seriam as variantes de entrada capazes de afetar os valores de tal sequência numérica? Nem fazia idéia.

"Que estou esperando?", pensei, "Vou aplicar logo aos dados todos e prever se o trem de domingo sai mesmo, e em que horário!". Sabia que o trem partiria cerca de 6:30 da cidade vizinha, e chegaria 6:50 à estação para pegar os passageiros da viagem inaugural de 7 horas. "Pouco tempo para embarcar todo mundo!", eu adverti. "Ele vai atrasar, e Seu Bosco vai ficar uma fera!". Apliquei a sequência completa, mandei meu programa calcular um gerador, e fui até a cozinha pegar um refrigerante enquanto o computador desempenhava a função para a qual fôra construído: computar.

Abri a geladeira. Olhei o termômetro de mercúrio na parede, e o aparato improvisado na mesa encostada à parede oposta, anotando fielmente as temperaturas. "Você é o próximo!". Meu monstro Frankenstein tecnológico, com câmera e lanterna usb espetadas ao notebook velho, cumpria a uns 2 meses seu papel sem se cansar.

A esta altura, eu já havia adaptado meu programa para que o gerador pseudo-randômico calculado fosse executado assim que gerado, de forma que quando voltei à sala já se destacava no topo da sequência prevista: "01/01/2017 07:09". O trem partiria da cidade vizinha às 7 horas e 9 minutos? eram quase 40 minutos de atraso! Que belo presente de ano novo ganharia o bondoso Seu Bosco...

Olhei o próximo horário da sequência: "01/01/2017 09:02". Seriam então 2 horas de atraso!! O que estava acontecendo de errado? olhei os seguinte: "02/01/2017 06:58", "02/01/2017 09:01", "03/01/2017 07:00", "03/01/2017 09:02", "04/01/2017 07:00"... Sim, parece que Seu Bosco colocaria ordem na bagunça. Duas horas era o tempo do trem ir até a próxima cidade, manobrar e retornar. Era o trajeto inicial, durante a primeira semana de funcionamento. Uma viagem por dia. Ele repetiria a viagem entre estas duas cidades, visto que a estação da minha cidade também permitia este tipo de manobra. A cidade original, mais próxima, apenas forneceria o trem, não faria parte do trajeto.Afinal, ela nem possuia uma estação decente para comportar movimento de passageiros! Era quase que uma "estação de manutenção", onde os trens da linha eram preparados e, eventualmente, consertados. Mas... os horários do dia primeiro ainda estavam confusos.

Sei lá, devem existir alguns princípios ativos no guaraná que estimulam o raciocínio. O fato é que em meio ao segundo gole, a solução do problema explodiu em minha cabeça: "Lógico!! Seu Bosco não estará anotando nem terá como saber o horário que o trem vai partir da cidade de origem do trem! E a hora de chegada do primeiro dia não interessa! Ele vai começar as anotações do horário de partida do trem no dia primeiro!" Quer dizer, o que meu algoritmo previa era a sequência obtida pelos medidores! E, no caso de partidas e chegadas do trem, Seu Bosco era o medidor do evento! Ele anotava os horários de chegada e partida DAQUELA estação, e era isto que meu algoritmo havia previsto! Depois que os entendemos, os mais obscuros mistérios ficam tão óbvio, não é mesmo ?

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Continuei analisando o restante da sequência prevista. Na segunda semana eram 2 viagens por dia. Na seguinte, quatro, depois seis. Sim, definitivamente o povo gostou da idéia de viajar de trem. Os atrasos, na fiscalização firme de seu Bolsco, nunca passavam de 3 minutos para mais ou para menos. Ao fim estavam estabelecidas 8 viagens diárias, com os seguintes horários de partida para a cidade mais distante: 7:00, 10:00, 12:00, 14:30, 17:00, 19:15, 21:30, 23:00. Os intervalos só me levavam a fazer acreditar na existência de trens melhores e mais velozes na linha, dado que nesta época uma quarta cidade seria incorporada ao trajeto ferroviário. Ou pelo menos era o previsto em contrato... Mas havia uma quebra na sequência: ela acabava em 20/02/2017, às 23:02. Depois disso, os conhecidos zeros indicadores de fim de sequência. Que teria acontecido? Fecharam novamente a estação? Mas parecia estar correndo tudo tão bem! Pobre Seu Bosco... Sua alegria não duraria muito tempo afinal.