A casa de Bonecas

O sol há muito tempo já nascera, mas na casa do doutor Percival as cortinas ainda estavam fechadas deixando o quarto em quase completa escuridão. Tudo que se via no aposento eram silhuetas escuras de móveis bruxuleando à luz da velha lamparina a gás.

Era um quarto simples. Uma cama de solteiro, um guarda-roupa pequeno e uma prateleira repleta de livros científicos tanto didáticos como literários. No chão havia um tapete duro, puído cor de terra que cobria todo o piso do quarto. No centro, defronte a cama havia uma mesa de madeira de não mais de 1 metro de altura. Sobre esta, havia uma casinha de bonecas de 50 centímetros de altura ao qual o doutor Percival estava inclinado com um olho na diminuta janela de um dos muitos quartos da casinha.

Quando Sabrina acordou, assustou-se com o enorme olho a observá-la da janela do quarto. Era castanho escuro, e na parte branca filamentos avermelhados corriam até a íris. Pelo jeito o doutor Percival não dormira naquela noite. Sabrina teve ímpeto de atirar-lhe uma das almofadas, mas desistiu da ideia ao se lembrar do castigo que recebeu quando fizera isso da última vez. Que observasse... Não havia nada que ele não tinha visto mesmo durante aqueles cinco anos. Os cinco longos anos em que viveu prisioneira do maluco doutor. Atualmente não podia reclamar. Sua vida melhorara muito. O terror e o pânico de ser mantida presa contra sua vontade há muito tempo se fora. Agora tudo que lhe restava de sentimento era uma ínfima esperança de escapar. Escapar para onde ele não pudesse encontrá-la. Entretanto, não seria fácil. Suas tentativas ao longo dos anos não tinham dado em nada. O doutor não baixava a guarda. Nem mesmo quando ela tentara seduzi-lo. A mente insana dele parecia somente sentir prazer em mantê-la presa e nada mais.

Sabrina saiu debaixo dos lençóis não dando importância para sua nudez e fechou as cortinas da janela. Como esperava; segundos depois o grande olho enrugado apareceu na outra janela. Ela suspirou cansada e caminhou até o boxe que ficava no quarto. Era incrível como ele fizera parecer real. A ducha, a pia e vaso. A água – graças a Deus – era quente. Perguntou-se – e não pela primeira vez – para onde iam os dejetos do vaso. Pelo menos ali ela tinha privacidade. O boxe ficava no centro do quarto e não havia janelas por onde o velho doutor pudesse espiá-la. Sabrina passava quase uma hora no boxe toda manhã. Ali era seu porto seguro. O lugar longe dele que pudesse pensar. Entretanto, não podia abusar. Uma vez ao se demorar mais de uma hora sentiu a casa toda tremer. O Brasil não era um país de terremotos, mas ela achou que fosse assim que acontecia quando ocorria. O velho doutor Percival parecia um meninão crescido que se impacientava quando seus brinquedos ficavam inertes.

Do lado de fora da casinha, Percival tinha saído do quarto e descido até a cozinha. Precisava de café. Já tinha memorizado o tempo que Sabrina levava. Daria tempo para tomar um café e voltar ao quarto. Sentia-se feliz. Muito feliz. Das cinco mulheres que ele tentara o experimento, Sabrina foi a que melhor se adequou. A rebeldia e resistência no início eram naturais e agora até conseguiam manter uma conversa por um longo tempo. E daí se essas conversas na maioria das vezes terminavam com ela implorando para que ele a soltasse?

Percival bebericava da caneca sentado a mesa quando ouviu a campainha. Tratou logo de preparar o café. Usava uma pinça para despejar o líquido em um pequeno recipiente e cortar o pão em um pedaço que ela pudesse comer. Colocava tudo em um caixa de fósforos e levava para o quarto.

Ele depositou a caixa com cuidado sobre a mesa e inclinou-se para olhar. Sobre a cama, via Sabrina de roupão penteando os longos cabelos loiros que desciam como uma cascata de ouro. Percival correu até a prateleira e pegou uma lupa que ali havia. Agora podia ver Sabrina com mais clareza. Tinha um semblante despreocupado. Como se estivesse sozinha. Totalmente alheia a sua presença. E pensando bem, ele gostava assim.

A voz vinha baixa, quase inaudível, mas ele conseguiu ouvi-la:

– Poderia abrir as cortinas? Está tão escuro aqui.

Percival abriu as cortinas e a luz adentrou o quarto. Sabrina tinha ido para sua cadeira de balanço próximo a janela e ficou ali por um tempo tomando a luz do sol. Seus cabelos brilhavam e sua pele pálida resplandecia.

– Poderia vestir o vestido azul? – pediu Percival – Gosto tanto dele.

Sabrina permaneceu em silêncio por um momento então respondeu:

– Mas eu não.

A casa deu um leve tremor quando Percival bateu no tampo da mesa com o punho fechado. Sabrina deu um de seus longos suspiros, levantou-se e foi até o guarda-roupa. Despiu o roupão e podia sentir os olhos enrugados do doutor nas suas nádegas. Não se importava. Não mais. Fazia parte do plano. Escolheu o bendito vestido azul e o vestiu. Ao se olhar no espelho achou que estava parecendo muito com as donzelas da idade média.

– Satisfeito? – perguntou, sentando-se de volta na cadeira.

– Muitíssimo. Você é muito bela.

Sabrina fez um muxoxo e disse:

– Acho que sou mais bela do que você imagina. Nesse tamanho, tudo fica diferente. Se você pudesse me ver...

– Não comece – interrompeu Percival – Sabe que isso não vai acontecer.

Os dias se transcorriam como todos os outros. A mesma rotina de sempre. Ninguém parecia notar o grande segredo que o doutor Percival mantinha. Mesmo quando as senhoras se sentavam em seu consultório, ninguém parecia notar a casa desoladamente vazia. Nem sequer o fato de que o doutor nunca se casara. Nem mesmo uma namorada. Tampouco esperavam isso dele agora nos seus 65 anos. Contudo, não se podia negar que vez ou outra uma jovem bela aparecia para trabalhar na casa como assistente. Essas jovens depois de um tempo desapareciam e ao ser indagado sobre isso o doutor afirmava que elas tinham voltado para suas terras. Aquela era uma cidade pequena e ninguém fazia muitas perguntas. Afinal, ele era o doutor. Cuidava das pessoas. Livra Deus alguém pensar que ele pudesse fazer algum mal.

Sabrina vivia cada dia para sua liberdade. Tentava, apesar da aversão, ser gentil com Percival na tentativa de conseguir sua confiança. Até se permitira dizer que gostava dele um pouco.

– Se não posso ser livre? Por que não viver civilizadamente com você? – perguntara ela, certo dia.

– Você sabe que isso não seria possível. As pessoas... comentariam se a visse. E também não há garantia que você não fosse fugir.

– Dou minha palavra que não fugiria.

– Não posso fazer isso.

– Você é uma pessoa má e egoísta. Só pensa em si próprio.

– E você só pensa em fugir. Nem sequer tenta entender meus propósitos.

Sabrina fechou a cara e virou o rosto para o lado antes de responder:

– Não há propósitos decentes nessa atrocidade.

Os dias se passavam e a tristeza tomava conta de Sabrina. Até vontade de fugir que lhe dava forças para continuar parecia minguar. Passava mais tempo na cama. Não se importava com os tremores ocasionais da casa quando Percival se entediava. Ele a mandava fazer algo, ela fazia sem questionar. Estava desistindo.

– Isso tem que acabar! – disse ele, certo dia, enfurecido – Está estragando tudo!

Sabrina murmurou algo, Percival não entendeu.

– O que disse?!

Sabrina não respondeu.

– Não tenho escolhas. Vou ter que arranjar outra.

Isso pareceu causar o efeito que Percival desejava. Sabrina apoiou-se no cotovelo e o encarou.

– Como disse? O que quer dizer? Outra?

– Sim. Outra.

A mente de Sabrina trabalhou nos segundos depois àquela pergunta. Quem sabe com outra mulher tivesse uma chance de escapar... Ou se não escapasse, mesmo assim teria companhia. Talvez não fosse tão ruim assim se tivesse alguém com quem compartilhar as aflições. Não! Em que estava pensando? Estaria ela se tornando tão egoísta como ele ao ponto de aceitar que outra mulher passasse pelo mesmo que ela? Isso não podia acontecer. De maneira alguma.

– Desculpe-me – disse ela, surpreendendo o doutor – Não tenho sido fácil esses dias.

– Que bom que percebeu isso.

– Queria te pedir algo... – disse ela, sentando-se na cama deixando que o lençol a descobrisse revelando os seios para deleite do doutor Percival.

– O que é?

– Se não posso ter meu tamanho de volta, por que você não se encolhe? Assim poderíamos passar um tempo juntos como dois seres humanos normais.

Sabrina viu as espessas sobrancelhas do doutor se erguerem enquanto ele pensava na proposta. A resposta foi a esperada:

– Não.

Mesmo assim ela não desistiu e insistiu naquela ideia. Persistia dia após dia, mais gentil do que nunca. Achava que estava o convencendo. Então numa tarde chuvosa ele chegou da rua e correu para a casinha berrando:

– Sabrina! Sabrina, minha pequena...

– Estou aqui, meu bem – disse ela, adotando a nova maneira de tratá-lo.

– Não me agüento mais! Desde que você colocou essa ideia infernal na minha cabeça. Não consigo me concentrar em mais nada do que tê-la em meus braços. Oh, Sabrina. Eu a amo tanto. Prometa que nunca vai me trair! Prometa que nunca vai tentar escapar...

Sabrina levantou-se da cama. Vestia o vestido favorito do doutor. O cabelo estava preso no topo da cabeça caindo em cachos pelas costas. A maquiagem estava impecável no rosto.

– Sinto-me ofendida que depois de todo esse tempo ainda duvida de mim, meu bem. Não tenho mais ninguém que não seja você. Deixe-me amá-lo da forma que desejar. Como uma filha, ou como uma esposa.

– Sim! Sim, Sabrina! Enfim consegui o que queria em todos esses anos.

Percival, embasbacado pelo que acabara de lhe acontecer correu para a caixa de madeira que mantinha trancada sobre a escrivaninha. Destrancou o cadeado e lá de dentro tirou dois comprimidos, um roxo e um azul. O azul o tornaria tão pequeno quanto Sabrina e o roxo lhe traria o tamanho normal. Era sempre bom prevenir. Contudo, ele acreditava nela. Confiava no amor dela.

Percival sentou-se na beirada da mesa e engoliu a pílula azul à seco. Sentiu espasmos e contrações por todo seu corpo e no momento seguinte estava minúsculo. Tão pequeno para passar pela porta da casinha. Percival olhou em volta por um momento fascinado por aquela perspectiva. Seu coração martelava no peito de ansiedade por sentir o cheiro de sua amada, o calor do seu corpo. Poder aninhá-la em seus braços e tocar seus cabelos. Caminhou tropegamente em direção a porta da casinha, teve um tolo impulso de bater e riu disso. Ao levar a mão na pequena maçaneta da porta, esta se abriu de supetão. Ele gritou quando viu Sabrina irromper em sua direção com o que lhe pareceu um pedaço de agulha. Ao tombar para trás com o metal encravado no seu peito, antes que seus olhos se escurecessem ele pôde ver que ela tinha tirado o vestido e vestia as mesmas roupas que tinha chegado a sua casa para trabalhar a cinco anos atrás. Seus cabelos estavam soltos e caíam-lhe nos olhos faiscantes de ódio, compaixão e alegria. Enfim, Sabrina estava livre. Em um último gesto de amor por sua amada, Percival enfiou a mão no bolso da calça e tirou a pílula azul. E foi assim que morreu.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 03/05/2012
Reeditado em 11/05/2012
Código do texto: T3648023
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