Voz de pato - Parte 1

Apesar de ter apenas 25 anos, já conheci vários tipos de habitats humanos na vida. O primeiro, por volta de meus 15 anos, como acontece com tantos outros adolescentes da mesma idade, foi o lunar. A enorme cúpula geodésica recobrindo a cratera era realmente impressionante, embora, estando ela na lua, nunca tenha entendido o porquê deste termo: GEOdésica... Não seria mais coerente chamá-la de cúpula lunodésida, ou selenodésica, ou qualquer outra coisa do gênero? A língua humana é mesmo misteriosa. O fato é que tais cúpulas, independente de estarem na lua, em Marte, Vênus, Europa, Miranda, etc... eram sempre chamadas de Cúpulas Geodésicas!

Bom, voltemos ao habitat lunar. A escolha de um material transparente era unanimidade: ninguém imaginava sequer a hipótese de não poder observar aquele céu de breu absoluto pontilhado de pontinhos dos mais variados brilhos e cores. Óbvio que precauções precisavam ser tomadas: fora uma estreita faixa do espectro eletromagnético com cerca de uma oitava de diferença separando o vermelho do púrpura profundo, as demais frequências mais baixas e, principalmente, mais altas constantemente bombardeando nosso satélite natural desprovido de atmosfera seriam prejudiciais. A cúpula transparente no espectro visível precisava ser totalmente opaca para todas as frequências eletromagnéticas fora desta faixa. E resistente! Sem uma atmosfera de frenagem, estava-se o tempo todo sujeito a ser alvo de projéteis espaciais que, apesar de pequenos, causariam muito estrago com suas velocidades de queda altíssimas! Em épocas de intensa chuva de meteoros os estalos de micrometeoritos se chocando contra o exterior da cúpula chegavam a ser insuportáveis. Felizmente fui para lá numa época bem calma, com a lua orbitando meu planeta de origem numa região relativamente livre destes pequenos corpos celestes.

A baixa gravidade era intrigante! Como acontece com 90% dos turistas, rápido me interessei durante estas férias lunares pelo vôo livre, conseguido com levíssimas asas de nanocarbono. Era bastante magro nesta época, não era difícil para mim alçar vôo rapidamente sacudindo estas asas artificiais. O sonho de Ícaro, aqui na lua, ao alcance de qualquer ser humano que, digamos, tenha conseguido não extrapolar demais uma constituição física razoável.

Aos 16 anos, férias seguintes, também não fugi à regra. Como acontecia com a maioria dos amigos de mesma idade, minha próxima parada foram as colônias marcianas. Um tédio de viagem! Quase um mês inteiro dentro de uma estrutura em formato de estrela girando sem parar para criar uma gravidade artificial dentro da nave! E pra quê? Para chegar num planeta coberto de areia, gelado, e com um esquisitíssimo céu laranja sobre nossas cabeças... E o pior: apesar de ter gravidade menor, ainda era forte o bastante para não permitir a realização dos vôos livres que eu havia adorado praticar enquanto estive na lua! E o povo nativo então, nem se fala! Simpatia passava longe! Xenofóbicos, separatistas declarados! Se sentiam sobre-humanos! Estavam até desenvolvendo um dialeto próprio, incompreensível, que muitos já começavam a chamar de "língua marciana". Se esqueciam totalmente de suas origens terrestres, até se envergonhavam dela. Homenzinhos verdes de Marte? Bem, os nativos passavam tanto tempo nos subterrâneos do planeta, sem tomar sol, que pareciam mesmo estarem se tornando... verdes! Preferia do fundo da alma nunca ter feito esta viagem. Fiquei tão desapontado que, por quatro longos anos, não quis mais tirar os pés do meu querido Planeta Terra. Sujo, poluído, caótico... que seja! Mas era o MEU planeta! Me sentia seguro nele!

Minto: fui a várias estações orbitais neste período! Inevitável, né? Todo mundo sabe que nos dias de hoje é praticamente impossível não precisar viajar a alguma das centenas de milhares de estações orbitais rodeando o planeta. Seja para algum tratamento médico, algum curso só administrado em órbita, para comprar algum produto interessante fabricado em gravidade zero, ou... seja por motivo meramente burocrático, como conseguir um visto de última hora em seu ID-Card no meio do vôo de um transorbital, para poder entrar legalmente num país destino fundado no meio do seu vôo. E cuja embaixada, por "coincidência", se localiza numa estação orbital a meio caminho de sua viagem. Quando digo que não saí da Terra nestes quatro anos, quis dizer que nunca me afastei mais de 40.000 quilômetros da superfície do planeta.

Lá estava eu, 21 anos, maioridade legal. A pouco mais de um século já se havia percebido que alguém de 18 anos ainda não era capaz de responder pelos seus atos, de forma que uma pesquisa estatística séria da época acabou fixando o número 21 como a média ideal para dar pleno controle de sua vida a um indivíduo adulto. Ponto médio estatísticamente estável, de menor variância possível. Não foi difícil torná-lo lei. Esta variância não garante exceções, óbviamente. Ela só minimiza a possibilidade dela ocorrer. Provavelmente eu estava fora do sigma de variância em torno desta média. Fora de dois sigmas. Não, provavelmente fora de três vezes sigmas em torno da média! Pois minha primeira decisão como sujeito maior de idade não poderia ser pior: visitar um habitat humano em Vênus!

A viagem durou duas semanas. Bem mais rápido que para Marte! Acostumado como estava com a Terra, lá vivendo por quatro anos, adorei pisar um chão de uma gravidade bastante parecida com a do meu planeta natal. Só que a parte boa acabava aí... Quem, em sã coincidência, resolve viajar para um planeta coberto por uma atmosfera de CO2, sujeito a chuvas constantes de nuvens formadas de ácido sulfúrico, a uma temperatura ambiente capaz de tornar líquido o chumbo e uma pressão atmosférica que transformaria qualquer aventureiro que se arriscasse a encará-la sem proteção num pastel de carne (só com o recheio, fique claro!) se debatendo num chão rachado pelo intenso calor? Depois de conhecer Vênus, passei mesmo a acreditar que o Inferno deveria ser o lugar mais agradável do universo para se viver depois que eu morresse. Encararia Satã na boa em seu inferninho de enxofre, contanto que ele não resolvese me mandar de novo para Vênus!

Exagero, óbvio! O habitat era controlado. Mas, pela primeira vez, visitava um habitat totalmente opaco. Nenhum sinal do exterior. "Nada interessante para se ver", era o que todos diziam. Eram 24 horas por dia sob luz artificial. 24 horas? Me desculpem, estou pensando de novo como terráqueo. A propósito, o planeta era tão estranho que seu dia era ligeiramente MAIOR que seu ano!! Conseguem imaginar uma coisa dessas? Bom, foi lá onde eu, de maneira totalmente imbecil, resolvi passar minhas férias depois de completar 21 anos...

Embora com uma excelente isolação do exterior, a temperatura dentro da cúpula geodésica (de novo este nome absurdo!!) girava sempre em torno dos 45 graus! Inclusive, uma particularidade interessante da colônia venérea (não confundam com doenças, por favor) : eram 5 cúpulas concêntricas, uma dentro da outra, com intervalos de isolamento de algumas centenas de metros preenchidos com gases nobres. E, apesar deste isolamento todo, com muita dificuldade a temperatura de 45 graus era mantida dentro do habitat! Por isto não me admiro que não existam até hoje venusianos nativos: todos os atuais habitantes das colônias venusianas são estrangeiros. Cinco anos é o máximo que alguém, muito maluco, consegue viver naquele ambiente ininterruptamente!

Não me aventurei aos planetas exteriores (Júpiter, Saturno, Urano, etc..). As viagens existiam a algum tempo, sem dúvida. Para pesquisadores destemidos. Pessoas, digamos assim, com laços bem frágeis prendendo-as ao planeta Terra. Governos do mundo todo costumavam financiá-los, eles não precisavam mesmo se preocupar com os custos. Mas para as pessoas "normais" elas eram muito caras, tediosas, demoradas! Por enquanto, até que se desenvolvam meios melhores de propulsão, apenas idealistas científicos convictos e fundamentalistas religiosos ligados à Igrega Cosmogonista se aventuravam a regiões tão remotas. Era uma passagem só de ida na grande maioria dos casos: os que se aventuravam a tal ponto, não planejavam realmente voltar de tais viagens. Mas me aventurei depois ao ambiente insólito dos vários asteróides de nosso cinturão. Como Saturno tem seu anel,também nosso Sol o tem. Mas, como não podia deixar de ser, com proporções muito mais titânicas! Previa-se que em questão de décadas as viagens para as luas de Júpiter se tornariam tão corriqueiras como viajar para a Lua ou Marte. Espero que sim! Mas, por enquanto, isto ainda não passa de pura ficção científica...

Por que estou contando a vocês tudo isto? Bem, para deixar claro que já conheci muitos habitats esquisitos! Alguns agradáveis, outros insuportáveis... Conheci vários! Mas conheci outro recentemente! O mais estranho de todos! Nos anteriores, seja pela gravidade, temperatura, habitantes... ainda havia uma ligação ao ambiente que eu estava acostumado na Terra. Mas o habitat humano mais estranho que visitei na vida não estava no espaço! Nem na Lua, nem em órbita, nem em Marte, nem em Vênus... Nem no cinturão de asteróides... O habitat mais estranho que visitei estava aqui mesmo, em meu próprio planeta! Na verdade, debaixo de camadas de quilômetros de água salgada.