O outro lado (para quem leu "Crime")

- Douglas.

- Douglas.

- Douglas, meu anjo, acorde.

Acordar com a voz materna sempre deixa Douglas relaxado.

- Acorde querido. Já está na hora e você sabe muito bem disso.

Lentamente, ele abriu os olhos. A luz do quarto estava acesa e a janela estava abrindo neste instante. Ainda se espreguiçando ele, mais uma vez, ficou feliz em sempre acordar com a doce e maternal Elly, para cuidar de suas necessidades básicas.

Sem forma física, mas com um “amor” eterno, Elly era o nome da I.A. que controlava a casa. Ela não era um rosto enrugado, nem fazia carícias, mas era doce e meiga e Douglas sentia-se feliz do mesmo modo.

Sua mãe natural aproveitava a velhice em Belém do Pará e seu pai, um senhor solteirão, deveria estar em algum lugar do sul da Espanha.

Talvez Elly existisse, pois ele era solitário. Nunca recebia ninguém em casa e mesmo companheiras ocasionais nunca eram levadas para lá. No fim das contas seria, no mínimo esquisito, explicar o motivo de sua I.A. não ter uma voz sexy e sedutora, o que seria normal em um solteiro de 32 anos e sim a voz doce e acolhedora de uma senhora bonachona.

- Oi Elly, o que tem para mim hoje?

Apesar de disfarçado em tons educados, foi um comando e a I.A. respondeu prontamente:

- O senhor Thomas marcou uma reunião de emergência as nove horas. As onze e trinta a senhorita Tammy o aguarda para um jantar na torre sul. De resto, sua noite está livre. Deseja que eu encomende flores para seu encontro com a senhorita Tammy?

- Agradecido Elly, mas sem flores. Esse caso durou demais e hoje a gente se separa. – Pensando em voz alta sobre a noite. – Pelo menos será uma noite sossegada, descontando a reunião com o velho. Uhn... o que será que o velho quer?

Antigamente esse tipo de reflexão levaria uma I.A. a tentar ser solícita, mas Elly já tinha muitos terabytes de informações e sabia que quando ele queria uma informação ele era direto e que tinha o hábito de falar para si mesmo.

Douglas podia perguntar a Elly sobre o tempo. Com toda a certeza ela acionaria a sua conexão com a internet e daria todos os dados esmiuçados, mas os velhos hábitos não morrem assim facilmente. Abrir a janela e olhar lá para fora iria ser, na opinião de Douglas, um hábito imortal.

São Paulo estava como sempre. Uma noite fresca, muita iluminação noturna nas ruas das áreas habitáveis, e uma escuridão perene e assustadora “para lá”. Não parecia ter cara de chuva, no máximo a típica garoa fina perto do amanhecer.

Quando fechou a janela, imediatamente ouviu o sussurro do aquecedor. Elly estava sempre muito preocupada com friagens. Mais um detalhe que, secretamente, ele adorava nela.

Entre o quarto e a sala ele abriu a porta azul. Um aposento bem arrumado com alguns aparelhos de ginástica. Isso era parte de seu ritual de acordar e também ajudavam no serviço. Douglas sempre fazia um pouco de exercício assim que acordava. Ele dizia que isso ensinava ao corpo quem manda e que sempre deve ficar preparado para tudo. Correu por dez minutos e puxou ferro por mais dez. Sentindo-se satisfeito com a resposta do corpo, volta para o quarto já falando:

- Elly, quais as novidades?

A tela de plasma desceu como uma cortina, cobrindo parte de umas das paredes. De fato, a tela era praticamente da grossura de uma cortina. A voz doce da velhinha perguntou:

- O de sempre Doug?

Douglas sorriu. Não podia ser diferente. Somente sua mãe e Elly chamavam-no assim e ele permitia. Na verdade ele deixou escapar isso quando o programador da I.A. instalou o equipamento a tanto tempo e nunca fez sequer menção de mudar isso. A única modificação que ele mesmo fez foi que ela nunca deveria usar o diminutivo na presença de outras pessoas.

- O de sempre Elly. Vejamos o que aconteceu no mundo e na cidade enquanto eu dormia.

Enquanto falava isso foi ao banheiro. A rotina ao acordar incluía, entre outras coisas, um bom banho quase frio, mesmo no inverno, assim ele ficava mais ativo.

O sistema de som ambiente era muito bom, saídas de som em todos os cômodos, permitiam que ele ouvisse tudo, não importa onde. Não era nada forra da média. Ele não tinha aquelas telas de projeção em todos os cômodos junto com aquelas saídas de som quase invisíveis, não, isso era para quem podia, não para um simples trabalhador como ele.

O noticiário, uma coletânea de informações editada por Elly seguindo os parâmetros já conhecidos e habituais. Preocupação com bolsas, uma ou outra guerrilha por ai, e as habituais manifestações “deles”. Depois que muitos países não deram um espaço só “para eles”, os pequenos conflitos explodiam diariamente. O engraçado que isto diminuiu drasticamente qualquer tipo de conflito religioso. Bem, basicamente, as pessoas precisavam de algo diferente para se divertir.

Quanto a Douglas, ele era um homem prático até o fim. Quando veio o plebiscito nacional, ele achou que era muito simples e bom para todos que “eles” fossem para a Micronésia. Lá eles teriam espaço, liberdade e seu próprio governo. Não perturbariam ninguém e pronto. Infelizmente a campanha publicitária contra foi forte e, com efeito, a maioria votou pelo controle, registro e “manutenção” dos pobres coitados.

De qualquer maneira ele sempre saia ganhando. Seus serviços eram sempre necessários e com “eles” ou sem “eles” o dinheiro continuaria entrando.

O noticiário regional não parecia ter nenhuma novidade. As comemorações ainda estavam em voga e Douglas ficou feliz de ter se isolado de tudo e todos.

- ...e perto da Zona de Interdição, dois homens foram encontrados mortos. A perícia inicial indicar que além de agulhas, eles sofreram o impacto de um grande peso, talvez alguma barra de ferro. A perícia inicial indica que as agulhas que atingiram os Agentes de Registro e Ordem vieram de suas próprias armas, levando a crer que o ocorrido foi uma emboscada mutante. A única pista achada perto do local do crime foi um diamante de formato incomum.

A reportagem continuou entrevistando pessoas que nada sabiam, mas que ficaram muito felizes em aparecer para o grande público. Ainda no banho, Douglas deu a ordem:

- Elly, guarde esta ultima reportagem. Quero revê-la depois que sair do banho, durante o café.

Depois disso, São Paulo seguiu o ritmo de sempre, com festa ou sem festa, alguns assaltos, tiroteio, um carro que despencou, junto com seu motorista embriagado no Tietê e um ou dois mortos, como sempre, aparecendo de forma misteriosa e sem pistas. Em fim, nada de mais que chamasse a atenção.

O “café da manhã” tomado quase as oito da noite era o de sempre, com a diferença que Douglas comia tudo distraidamente, beliscando um pouco aqui e acolá, com toda sua atenção voltada para a notícia que ele escutara no chuveiro. Tudo relacionado a Zona de Interdição, despertava curiosidade.

Como era de se suspeitar, os tais Agentes de Registro e Ordem eram conhecidos. Policiais para alguns, ciborgues para os “manos”, mas para Douglas, eram Caçadores de Cabeças, que pegavam qualquer um, desde que o pagamento fosse bom o suficiente. Realmente eles pareciam ter sido atingidos pelo ricochete de suas próprias armas, mas o pior, realmente foi, seja lá o que, que os atingiu na região do tórax, perto da garganta. Pedindo que Elly congelasse a imagens, desse alguns zoons ou passasse pedaços inteiros em câmera lenta, ele já tinha quase certeza que nada no local poderia ter feito isso.

Douglas acabou por concordar com o repórter. Afinal não havia nada reflexivo no local e nenhum aparato grande o suficiente para acertar os dois daquela maneira. Se bem que emboscada era um termo forte, ele apostava em uma retaliação durante uma perseguição. Sua suspeita praticamente se confirmou no fim da matéria, quando o tal “diamante de forma incomum” foi mostrado. Não era todos os dias que se via algo tão belo, um diamante perfeito em forma de uma lágrima.

- Douglas meu anjo, você tem a reunião com o senhor Thomas em quarenta minutos.

Respirando fundo e deixando as notícias de lado, concordou com a cabeça e, foi se trocar pensativo.

“O que diabos o velho Thomas quer no primeiro dia do ano? Pensei que ele, assim como todos, ainda estaria de ressaca por causa das festas de ontem.”

Botando seu “uniforme”, o sempre impecável terno negro, Douglas arrumou o colarinho. Poucos sabiam que seu terno era à prova de balas, de fogo e de taser. Fora as dez armas que ele sempre tinha escondidas pelo corpo.

Quando se é um caçador de recompensas de alto padrão, precaução nunca é demais.

Na saída, como sempre, a atenciosa Elly não podia deixar de dar as ultimas palavras.

- Bom trabalho e se cuide viu?

- Obrigado Elly.

- E bem, - por um momento a I.A. deve ter calculado as possibilidades antes de dizer – Aproveitem bem esse primeiro de janeiro de dois mil e cem.

Antes de sair, ao fechar a porta, seja por hábito, seja por que considerava Elly quase uma pessoa, respondeu:

- Feliz Ano Novo Elly, Feliz 2100.

(continua?)