A cidade que parou no tempo

 
A pequena cidade se chamava Jenost e tinha uma posição geográfica absolutamente singular. Além de ser muito pequena, ficava entre elevações e tinha uma única saída para o “resto do mundo”.  Era uma estrada estreita entre as montanhas. A população não chegava a 1000 pessoas. Foi por isso que quando chegaram aqueles caminhões do exército, naquela linda tarde de março de 1947, todos ficaram sabendo. Eles montaram algumas barracas e nelas se estabeleceram por alguns dias. Enquanto isso algumas máquinas  desengonçadas começaram a ser transportadas para um terreno que sabidamente pertencia ao governo. Finalmente um dos militares começou a chamar o chefe de cada família para uma entrevista. A notícia se espalhou como fogo em  capim seco. O encontro se dava em uma das barracas. O coronel fazia as entrevistas e, a seu lado, duas pessoas, aparentemente cientistas, ficavam ali para esclarecer as dúvidas das pessoas. O governo queria fazer uma experiência científica revolucionária.
Era uma época muito especial para todos. O país acabara de sair vitorioso da guerra, todos estavam orgulhosos das forças armadas e o patriotismo certamente dominava o coração de todos. Jenost, por causa de suas peculiaridades, havia sido escolhida para ser o centro de um grande  e importante experimento. Dali sairia a tecnologia e o conhecimento que permitiria ao país praticamente ficar imune a qualquer ameaça de qualquer inimigo externo provavelmente durante os próximos duzentos anos... Era relacionado com átomos mas nada tinha a ver com bomba. Também não se relacionava com armamentos químicos ou qualquer coisa do gênero. Ciência pura.  Obviamente a natureza da experiência não podia ser revelada por motivos de segurança. Certamente não haveria perigo algum para os habitantes. Haveria um seguro absolutamente alto para os descendentes no caso de haver algum problema, o que entretanto  era quase impossível. Era um experimento seguro, controlado pelos maiores cientistas do país e até alguns do exterior. A cidade ficaria isolada por algum tempo e quem quisesse sair, sem participar do evento, teria toda a  liberdade para fazê-lo antes do início. Não havia conspiração ou qualquer coisa do gênero. Era uma questão de patriotismo. Além disso toda e qualquer pessoa que ficasse na cidade durante aquele curto período, nunca mais teria de se preocupar com sobrevivência. O governo cuidaria deles durante toda a vida. Os velhos, os jovens e as criancas nunca mais teriam problemas financeiros. Tudo que tinham de fazer era assinar os documentos necessários, concordando com tudo. Eram cinco páginas de documentos.
Apenas nove famílias não concordaram e saíram. Também receberam uma pequena indenização mas tiveram de assinar um documento prometendo sigilo. Nesta época de pós-guerra, ninguém ousou ir além disso. Pegaram o dinheiro, assinaram a papelada e partiram. Oitocentas e noventa e três pessoas permaneceram.
Três semanas depois, a unidade do exército abandonou a pequena cidade, deixando para trás uma espécie de pequena fábrica em aço inoxidável com umas estranhas antenas. A saída da cidade foi bloqueada com uma alta cerca de metal. Ninguém saía, ninguém entrava.
cidade+que+parou+no+tempo.png

 
A primeira noite, após o bloqueio, corria normal. Pelo menos até uns quarenta minutos após a meia-noite quando uma espécie de zumbido infernal acordou praticamente  todos. Não houve explosão, nem fogo, nada. Apenas aquele estranho ruído e finalmente a visão de uma luz esverdeada ao redor das instalações do governo. Depois disso, silêncio total.
De manhã as pessoas começaram suas atividades normais. Apesar do incidente noturno, houve poucos comentários. Eram oito horas da manhã. Inicialmente ninguém sabia explicar, era algo que as pessoas sentiam mas não sabiam o que era. Finalmente, o senhor Fahrid, dono da mercearia da Rua Principal, exprimiu em palavras a sensação que todos estavam tendo. O tempo não passava. Ou talvez  parecia não passar. À oito e cinco, todos tinham a sensação de que estavam ali há pelo menos três ou quatro meses. Olhavam para o relógio e apenas cinco minutos haviam se passado. Aliás, olhar para o relógio era o que as pessoas mais faziam. Naqueles primeiros minutos algumas pessoas tinham verificado as horas centenas de vezes. Os ponteiros não andavam. À oito horas e seis minutos algumas pessoas começaram a se desesperar. Alguns achavam que mais de um ano havia se passado embora o relógio ainda não tivesse chegado às oito e sete. Logo depois das oito horas e oito minutos o boato que corria na cidade era que tudo aquilo tinha a ver com as máquinas que o exército trouxera e com o experimento que o governo estava fazendo.
Algumas pessoas já haviam tomado centenas de comprimidos para dormir. Dormiam horas e horas e quando acordavam apenas  algumas frações de segundos haviam se passado.
Às oito e trinta a situação estava insustentável. Muitas pessoas achavam que tinham enloquecido. Houve alguns casos de suicídio. Tony era um dos poucos jovens da cidade. Havia pouquíssimas crianças e muitas pessoas idosas. Ele achou que tinha de fazer alguma coisa. Ir até “as máquinas” era inútil. A cem metros do local as pessoas começavam a se sentir fracas e desmaiavam. Foi aí que ele se lembrou de uma caverna que acabava dando para o outro lado de uma montanha, quase junto à rodovia. Era como cortar o caminho em cinco quilômetros. Ninguém mais se lembrava dela. Sua entrada havia sido coberta por densa mata há muito tempo.
Foi muito difícil achar o local. Mais difícil ainda abrir espaço entre a vegetação. Tempo era o que não faltava. Entre se preparar para a viagem, fazer a longa caminhada, ficar interminavelmente procurando a entrada da caverna apenas um segundo se passara.
Tony já estava do outro lado e tinha certeza de que já se sentia melhor. Tinha ainda mais dois quilômetros para chegar até a estrada. Só agora notava como o ar estivera carregado antes. Deu uma olhada em toda a paisagem. Havia algo errado. Aquele não era o lugar que ele pensava. Estava tudo diferente. Ainda assim caminhou mais. Definitivamente era muito parecido com a paisagem que conhecia. Era isso, o mesmo lugar, mudado. Outras árvores, outra pista na estrada, outros sinais de trânsito. Reconheceu algumas árvores e notou que a pista havia sido retificada. Como? Em algumas horas, enquanto estivera recluso no vilarejo?
Estava no acostamento na esperança de conseguir uma “carona”. Não demorou para um “carrão” aparecer na curva e depois parar. Sentiu-se aliviado ao entrar no veículo. O motorista era um senhor respeitável, meia idade. Parecia um médico ou coisa assim. Perguntou a Tony como chegara ali, um ponto tão inacessível. Após ouvir a explicação de Tony, ele comentou:
-Não entendo como você conseguiu entrar naquele lugar...
-Como assim?
-A vila inteira está interditada pelo governo há mais de dez anos.
-O quê?
-Houve um incidente com umas instalações do governo, muitas pessoas morreram. Para dizer a verdade, todos morreram, exceto duas pessoas que simplesmente sumiram. Até hoje ninguém consegue entrar lá.
Tony estava atônito. Pôs a cabeça entre as mãos, suspirou e após algum tempo, perguntou:
-Em que ano estamos?
-Como assim, em que ano estamos, você não sabe?  Abril de 1959...
-Esse carro, quando eu vi, pensei por que você fez tanta modificação nele..
-Este ém um Ford 59, eu adoro esse carro..O que você acha?
Depois de alguns momentos:
-Você está sentindo alguma coisa? Algum problema?
Você pode me levar para a polícia?
-Claro. Espero que você esteja bem.
Vinte minutos depois Tony estava numa sala contando sua história para dois oficiais. Esses fizeram algumas perguntas e disseram que precisavam fazer alguns telefonemas antes de tomar as providência que o caso requeria. Depois de uns 90 minutos, três homens entraram na sala e pediram que ele os acompanhasse. Entraram num carro. Ele tentou conversar mas ninguém respondeu. Rodaram em silêncio por mais de duas horas e então um grande propriedade apareceu na paisagem. O prédio era baixo mas extenso.
Era um hospício. Tony tentou reagir mas foi inútil. Deram-lhe drogas e começaram o tratamento. Constantemente o psiquiatra explicava para ele que provavelmente algo horrível havia acontecido em sua vida pessoal. Ele havia criado uma realidade alternativa - o experimento -  pois a sua era insuportável. Ele reagiu muito no início. Após algum tempo e com a ajuda de drogas, ele começou a acreditar que tudo aquilo fora sua imaginação.
Ford+59.png

 
Santiago também morava em Jenost na época do incidente. Ele percebeu o que Tony estava fazendo e o seguiu. Tomou, no entanto,  um caminho diferente. Não perguntou nada para ninguém, seguiu seu próprio destino. Procurou amigos, fez inúmeras pesquisas sobre o caso, e se mudou para um país da América do Sul. Estava preparando um livro sobre o assunto. Todos os detalhes viriam a público. Um editor em Nova Iorque havia concordado em publicar o livro. Santiago estava feliz, além de ficar famoso, iria fazer o que é certo:  denunciar o governo, alertar a população, para que nada semelhante ocorresse no futuro. Naquela manhã, levantou-se mais cedo e foi tomar um café da manhã na lanchonete da praça. Meia hora depois, levantou-se para voltar ao apartamento e dar os últimos retoques no livro. Assim que pôs os pés na rua, um ladrão agarrou sua carteira e  esfaqueou-o diversas vezes. Morreu ali mesmo, todo ensanguentado.
Nunca um roubo ou ataque havia ocorrido naquela parte da cidade. Estava claro que o sistema não queria que a história ficasse conhecida. Exceto por isso, tudo voltou ao normal. Onze anos depois Jenost iria ser reaberta. Novos tempos. Um lindo conjunto residencial para famílias de militares de alta patente estava para ser inaugurado. Desta vez o tempo ia seguir seu curso normal, iria passar rápido, mas nem tanto...