Ingrata dádiva humana

Muito havia se perdido quando eles chegaram. A água salgada consumira um legado irreparável. Existências inteiras reduzidas, despertadas de seus egos, reunidas às demais. Muita coisa se fora, mas o pouco que restara fora explorado minuciosamente.

Como sarcófagos em nosso tempo, fomos estudados. Se tivéssemos tido a chance, deveríamos sentir-nos honrados. Não nos sentiríamos, mas deveríamos sentir-nos, caso tivéssemos tido a chance. A delicadeza, o avanço científico, a curiosidade inofensiva, atributos que nos faltavam tanto. Não éramos sequer dignos daquele povo, que agora se dedicava tanto a entender-nos.

Fosse n’água, fosse em terra, mesmo que na pouca que sobrara, jamais interferiam, jamais retiravam do lugar senão por um curto período de tempo, para realizarem suas análises; simplesmente não compreendiam a intervenção em algo que não lhes pertencia. Os veículos não emitiam um ruído sequer, não afetavam uma gota de orvalho, não moviam um grão de areia. E chegavam aos montes, vindos das estrelas que há muito já não víamos, livres para explorar cada gota de orvalho ou grão de areia.

A raça humana se fora. No fim, não se levou nada do que se produziu em vida, mas foi o que se produziu em vida que provou nossa existência quando já não nos encontrávamos. Quanto a esse novo povo, de nada necessitava para explorar mesmo as regiões mais hostis. Adaptava-se a todo e qualquer clima e terreno. Assim, separaram-se ao redor do planeta azul.

Aos poucos, iam chegando cada vez mais fundo, iam abrindo cada vez mais caminhos. Porém, quanto mais fundo chegavam, mais aumentava a sensação de que ainda havia muito a se cavar; quanto mais abriam caminhos, mais portas se fechavam. Cada livro ou instrumento musical encontrado era analisado com a mesma estranheza que as armas de fogo; cada galeria de arte ou palco de teatro descoberto, era explorado com a mesma curiosidade que os grandes presídios e memoriais de guerra. A dualidade lhes confundia tanto quanto cada elemento de maneira individual. O empenho para criar era tão incômodo quanto o ato de destruir. Foi uma raça estranha, essa tal de humana.

Cada quilômetro quadrado, cada mostra de civilização, cada coleta daquele material parcialmente transparente, de textura não definida e degradação demorada, foi coletado e estudado pormenorizadamente. Os resultados foram os mais confusos de toda a história desse antigo povo, que há muito surgira e que muito ainda viveria, e que agora nos estudava. A raça humana era, ao mesmo tempo, boçalmente semelhante e complexamente oposta entre si – e vice-versa. Os anseios eram, no geral, os mesmos, mas todo o resto, que preenchia o tempo entre a realização de um anseio e outro, era notoriamente diferente. Cada vida que se perdera, em cada diferente canto do mundo, expunha uma semelhança imutável para com todas as demais vidas perdidas; ao mesmo tempo, trazia uma necessidade igualmente imutável de evidenciar ao universo sua singularidade.

Aos poucos foram compreendendo que a raça humana já veio fadada à desgraça. Mesmo que essa não viesse pelas mãos da natureza, ela própria se responsabilizaria, ela própria garantiria sua queda. Quanto mais entendiam esse povo – com aquele olhar clínico, possível somente a quem vê de fora –, mais percebiam que, se esse deixou um legado, tal legado também foi o que o levou à extinção. Compreenderam porque viram, claramente, que, quando a natureza resolveu atuar e acabar de vez com nosso misereio, nós já havíamos há muito sucumbido por conta própria, de modo que só aguardávamos o golpe final. Compreenderam, também, porque se pasmaram diante da complexidade e imensidão de detalhes dos mais antigos castelos e edifícios; foram hipnotizados pela insistência e sentimentos transmitidos em cada obra de arte e escultura que fizemos questão de deixar; descobriam novas emoções nas linhas incompletas de poemas de todas as épocas, que eternizavam, burlando a morte, a mão que os escrevia. Compreenderam isso porque, acima de tudo, todos esses sentimentos que lhes faltava, e que os impedia de criar e mesmo sentir tudo aquilo que era belo e único, também os impedia de colocar a individualidade acima de qualquer outro membro de sua própria raça. A ausência desses sentimentos, como autenticidade e singularidade, não os deixava criar com a mesma eficácia que os proibia de destruir.

Foi de pé, fitando aquela grande construção, que eles encerraram as buscas, voltando pra casa com mais dúvidas que respostas, perguntando-se, uns aos outros, enquanto admiravam entre os musgos e marcas de sal oceânico aquela que, para eles, transformara-se num símbolo da infinda e inimaginável capacidade humana, e no quão infinda e inimaginavelmente mal ela fora usada. O esqueleto da estrela do mar já não cobria o letreiro de ferro, que, ainda fixado nas paredes de pedra daquele grande símbolo, mantinha em relevo a palavra COLOSSEO. E, sem que para isso emitissem um som sequer, tiveram uma última conversa antes de voltarem às naves:

“Só o que lhes faltava era alguma lógica.”

Ainda em silêncio, o transmissor obteve sua resposta:

“E abrir mão de todo o resto? Talvez fosse um preço grande demais a se pagar.”

Juliano Guillen Pupo
Enviado por Juliano Guillen Pupo em 06/01/2013
Reeditado em 17/07/2018
Código do texto: T4070803
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