Oceano Gasoso - parte 6

A carne sintética de unicórnio tinha sabor e textura indescritíveis. Tinha gosto de... oras bolas, como descrever? Tinha gosto de carne de unicórnio! Como sabiam que era de unicórnio, se unicórnios nunca existiram? Era uma combinação artificial de código genético de equinos com rinocerontes. Embora nunca tenham de fato gestado tal quimera em laboratório, poderiam simular em computadores sua morfogênese, prever que anatomia teria a mistura se desenvolvida em meios bem controlados. O resultado lembrava muito o formato de um cavalo, talvez um pouco mais corpulento que um cavalo normal, com um chifre único no meio da testa.

Uma característica bem conhecida de tais quimeras genéticas era que, mesmo o ser completo nunca podendo se desenvolver completamente, ou viver muito tempo se porventura conseguissem completar suas gestações, o mesmo não acontecia quando usavam apenas trechos de seus DNAs para sintetizar tecidos específicos. E o lombo de unicórnio sintetizado se mostrou bem saboroso e, o mais importante, bastante nutritivo!

- Podemos subir ali? - pergunta Mary Jane, apontando uma enorme torre à frente bem no meio da cidade, na sua parte mais alta. Aparentemente a torre se fundia à cúpula na parte de cima, cerca de uns 150 metros daquele nível do topo da cidade.

- Imagino que sim. E de lá vamos ter uma visão geral da Ilha. Deixa eu só terminar de devorar este unicórnio que... Hummm!! Está uma delícia!

- Achei que você fosse vegetariano...

- De onde tirou esta ideia? Só não como carne de cadáveres, de animais que já foram vivos ou carne criada do DNA de animais que podem se tornar vivos. Não tenho problema algum com carne de animais que nunca existiram.

E continuou devorando com voracidade os últimos pedaços de seu X-Unicórnio. E, a propósito: o queijo era feito com leite de "unicórnia" também!

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Foram logo saudados pelo robô ascensorista ao pisarem no elevador:

- Bem vindos, terráqueos!

- Ah não!!! Até este robô sabe?

- Sei o quê, senhorita?

- Que somos da Terra!! Como sabem disso? Como todo mundo sabe disso?

Aquele ruído baixinho de estática proveniente do auto falante do robô poderia ser interpretado como uma risada bem baixa, bem pra dentro.

- Vocês são baixos. E certamente não são venusianos.

- Baixos? Eu tenho 1 metro e 75, e meu amigo Aruna aqui... Um metro e 70, eu acho. Não somos gigantes, mas estamos na média.

- Na média terrestre, senhorita. A gravidade do planeta não os deixa crescer muito mesmo. Os habitantes de Selene, Marte, Io, Europa, Titã... Eles são mais altos! Vivem sob gravidades bem menores.

- Selene?

- Ah, desculpa! É como chamamos a Lua do seu planeta. É que existem tantas outras "luas" no sistema solar que precisamos dar um nome à de vocês para evitar confusões.

- Mas... a gravidade aqui em Vênus não é tão menor assim que a da Terra.

- Sim, mas... nós sabemos reconhecer nossos próprios cidadão, entende? A roupa que eles usam, por exemplo...

- Ah!! Sabia que tinha algo a ver com a roupa! A primeira coisa que farei saindo daqui vai ser comprar roupas genuinamente venusianas! Já cansei de todo mundo apontando pra mim dizendo: "olha lá aquela terráquea, com aquele vestido antiquado! Parece até que ela vem do século 22..."

- Se a senhorita desejar, posso indicar uma loja que... Ah, chegamos ao topo. Espero que apreciem a paisagem.

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A visão do topo da Ilha era magnífica! Sob certo sentido, era mesmo como se observar uma enorme montanha verde de seu topo, embora fosse uma montanha de uma esfericidade irritantemente perfeita. Como haviam deduzido ao longo da viagem de subida do bonde, era mesma formada de círculos concêntricos de vários níveis, que ficavam maiores à medida em que desciam seus níveis, até atingirem ao longe as bordas da Ilha.

A cúpula seguia esta superfície em média 150 metros distante. Haveria uma função de reciclagem da atmosfera naquele verde intenso que se via em toda parte? A vegetação consumindo CO2 do ambiente, transformando em O2 consumido pelos venusianos,que novamente devolviam CO2 à atmosfera como resíduo de seu metabolismo? De fato não. O paraíso tropical que viam era puramente estético. O volume de atmosfera compreendido entre o "chão" e o topo da cúpula era insignificante comparado ao volume atmosférico que existia "debaixo do chão", que de fato sustentava a cidade, a fazia flutuar naquele oceano de dióxido de carbono. A transformação industrial de CO2 em O2 e carbono reaproveitado era muito mais eficiente que a natural!

- A atmosfera inferior é fechada por uma estrutura de maior curvatura, fazendo a Ilha assumir uma forma de menisco.

- Por que não fechá-la embaixo com um plano?

- Questões de aerodinâmica, eu acho. Uma base esférica de maior raio fechando a Ilha na parte de baixo reduz a turbulência atmosférica. Na verdade, cria uma região de "vácuo" atmosférico que inclusive também contribui com a sustentação, cria um leve empuxo adicional para cima.

- Parece que pensaram em tudo aqui, não é Aruna?

- É uma obra prima de engenharia esta cidade, Mary Jane! Tudo que podiam fazer para aprimorar sua flutuação e estabilidade, foi feito!

- Olha lá aqueles seis lagos enormes no nível logo abaixo, ao longo de toda a volta! Como não percebemos eles?

- Estão separados, provavelmente o bonde passou naquele espaço ali entre os dois mais próximos, vê? - Aruna aponta aquele ponto para Mary Jane.

- Sim é verdade. De onde vem a água que os alimenta? Não deve chover aqui, não é?

- Ainda bem que não! - ele brinca. - Seria desagradável se esta cúpula não nos protegesse das chuvas de ácido sulfúrico.

- Estou falando de chuva de água! Não seja palhaço!

- Vê, lá perto das bordas, aquele círculo de água nos rodeando?

Estava um pouco longe, por isso ela tentou com seu binóculo portátil.

- UAU! Sempre quis um desses. Onde conseguiu, Mary Jane?

- Esse binóculo?

- É óptico, não é? Seu aumento não é interpolado por algoritmos de zoom.

- É eletro-óptico. Ganhei de um amigo.

- Amigo? - Aruna quase não conseguiu disfarçar uma pontinha de ciúmes que começava a sentir.

- Funciona com lentes de refringência adaptativa.

- Nunca ouvi falar disso.

- A tecnologia já tem mais de 150 anos. Surgiu por volta de 2093, se aperfeiçoou em 2175, e foi abandonada por problemas técnicos. Só agora conseguiram fazê-la funcionar de uma forma aplicável na prática.

- Como isto funciona?

Mary Jane adorou a inversão de papéis! Se antes era Aruna o sabichão, escancarando vaidoso seus conhecimentos sobre o planeta Vênus e suas colônias, agora era a vez de Mary Jane mostrar o que conhecia sobre eletro-óptica, sobre o retorno glorioso dos milenares telescópios de refração que começavam a voltar com toda a força.

- Desde os tempos de Galileu Galilei, o avanço dos telescópios sempre acabava esbarrando na dificuldade técnica de confeccionar lentes perfeitas. E falo de perfeição tanto em seu formato quanto na homogeneidade e pureza do material transparente com a qual ela era confeccionada. Uma imperfeição no vidro de uma lente poderia ser confundida nos primórdios da astronomia com um planeta novo, e atrasar o avanço científico em séculos!

- Pelo que sei, um tal de Newton, filósofo natural antigo da época da Europa Clássica, descobriu uma certa aberração cromática de refração que...

- Sim, que fechou o caixão dos telescópios de refração, baseados em lentes transparentes. - Mary Jane interrompeu, não deixando Aruna reassumir o centro da discussão. - Mas, gênio que era, ao mesmo tempo em que mostrou a grande falha, também apresentou a solução: telescópios de reflexão, imunes a aberração cromática.

Ela focalizou o enorme círculo de água ao longe em seu binóculo. Dos lagos superiores, a água descia por vários canais saindo destes seis lagos principais. Se bifurcavam exponencialmente, irrigavam toda a montanha esférica em volta , até confluírem todos novamente naquele enorme círculo, cujas águas... iam para onde?

- Bombas hidráulicas levam esta água de volta para cima, Mary Jane! Do fundo do oceano periférico, enchem de novo os lagos superiores, levando por encanamentos que ficam embaixo do "chão", no topo do côncavo inferior da Ilha. - explicou Aruna, vendo a confusão da garota. - Agora... me perdoe a ignorância, mas não me lembro muito bem: que são mesmo estas tais aberrações cromáticas?

Ela baixou os binóculos portáteis.

- Já fez aquela famosa experiência de decomposição do espectro com um prisma? Sabe por que ela acontece?

- Sim! Tinha uns 4 anos, e lembro como fiquei radiante ao descobrir a explicação para os arco-iris! Acontece porque a luz não é desviada da mesma maneira num corpo transparente. Quando a luz branca atinge um prisma de vidro, por exemplo, as frequências mais altas do espectro são desviadas mais que as frequências baixas, e por isso vemos a luz branca decomposta em seus componentes coloridos do outro lado.

- Isto mesmo. Embora bonito, e origem dos arco-iris, este efeito era prejudicial para observações astronômicas. Isto fazia com que o foco de sua lente dependesse da frequência da luz que você queria focalizar. Se tentasse focalizar um distante corpo laranja, por exemplo, teria dificuldades sérias! Quando focalizasse o trecho amarelo de seu espectro, a parte vermelha sairia do foco. Se focalizasse o vermelho, o amarelo perdia foco. Estávamos limitados a só conseguir imagens nítidas de corpos celestes que possuíam cores numa faixa bem estreita do espectro luminoso... corpos estes que não existiam!

- E os telescópios refletores de Newton resolviam tal problema, pois ao contrário da luz refratada em meios transparentes, a luz refletida se comportava sempre igual para todas as faixas do espectro. Observações mais precisas de corpos ainda mais distantes, sem as aberrações cromáticas.

- Muito bom, Aruna! É isto mesmo! - disse recompensando o esforço do indiano com aquele olhar verde fatal.

- Mas isto adiou o problema, só que não o resolveu totalmente, não é?

Sim. Observar corpos próximos, como Urano, Netuno, Plutão ou Caronte era fácil. Ou então corpos muito grandes, como galáxias e nebulosas. Mas e se quiséssemos ampliar uma estrela específica de Andrômeda, por exemplo, nossa galáxia vizinha? A radioastronomia ajudou um pouco, já que os radiotelescópios, destinados a observar frequências bem baixas das ondas eletromagnéticas, nem precisavam ser tão precisas assim. Dava para fazê-los "nas coxas" (expressão antiga), que continuariam apresentando resultados aceitáveis. Mas... e se quiséssemos ver uma ESTRELA de Andrômeda? Ou ampliar um PLANETA girando em torno de uma estrela de Andrômeda? Impossível de se fazer isto com quaisquer telescópios refratores ou refletores. E o motivo era um só: não conseguíamos confeccionar nem lentes nem refletores parabólicos de geometria precisa o bastante para a ampliação óptica necessária!

- As lâminas de refringência controlada por campo elétrico resolveram o problema de se precisar confeccionar lentes perfeitas, Aruna!

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Quem poderia prever uma invenção tão antiga como os telescópios de Galileu voltando ao topo dos avanços científicos? Graças a uma inovação num de seus componentes principais: as lentes! A ideia na verdade começou no fim do século 21, precisamente no ano de 2097. O avanço das transmissões ópticas assumira proporções gigantescas. Opto-eletrônica, óptica-quântica, computação fotônica... Os esperados computadores quânticos, tão populares por volta de 2050, na prática não se mostraram tão espetaculares assim como sempre haviam previsto. Proporcionaram sim um certo avanço tecnológico. Mas, ainda mais rápido que a computação micro-eletrônica do século 20, logo seu avanço exponencial foi interrompido pela Barreira de Plank. E ficaram estagnados por décadas, todos empenhados em buscar um novo paradigma de computação. E este paradigma novo parecia estar nos fótons. Ou "partículas de luz", no jargão popular.

Controlar a luz, fazer seus fótons interagirem... este era o novo desafio! E bem complicado! Façam a experiência: apontem de um lado um emissor laser vermelho numa mão. Na outra, um emissor de laser amarelo de tal forma que seu feixe intercepte o primeiro feixe, vermelho. O que você terá nas paredes, onde chegam os dois feixes de luz? A resposta parece óbvia: uma mancha amarela de um lado, e uma mancha vermelha do outro. O fato de um feixe interceptar o outro não os fez interagir! Você não terá um feixe laranja assim, a combinação dos dois feixes. Ambos agirão como se o outro, que o interceptou, nunca tivesse existido. Por quê? Esta era a grande pergunta da época, cuja resposta valeria um prêmio Nobel!

Na busca incansável por meios de fazer com que fótons reagissem entre si, acabaram descobrindo materiais transparentes cujo índice de refringência dependia do campo elétrico ao qual estavam submetidos. Ou seja, éramos agora capazes de criar uma "lente" controlando a refringência de uma superfície transparente fina e totalmente plana. Bastava simular os desvios de refração das lentes antigas usando, para isso, variações no campo elétrico em volta dela, mais facilmente controlável e, mais importante, muito mais preciso do que tentar construir uma lente esférica ou espelho parabólico de geometria perfeita! E o mais importante: não dependia da frequência da onda! Lentes perfeitamente construídas, livres de aberrações cromáticas! O sonho de Galileu Galilei!

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- Não acredito que estou aqui!!! - Aruna corria de um lado para o outro no mirante, querendo ver tudo. Que sensação incrível! No topo daquela torre, grudados à cúpula da Ilha, poderiam dizer sem erro que estavam... tocando o céu! Pelo menos, aquele céu artificial que os protegia do ambiente em volta!

Agora Mary Jane perceba muito bem, vendo as pessoas à sua volta. Um metro e 95? Dois metros? Sim, parecia ser esta a altura média dos turistas interplanetários, não terrestres. Como não percebera isto logo? Inclusive detectou logo um terráqueo ao longe no mirante. Como ela sabia que era terráqueo? Bem, um negro com cerca de 1 metro e 80 de altura estava bem abaixo da média dos viajantes humanos interplanetários, como ela bem sabia agora. E aquelas roupas terrestres coloridas de estampas tridimensionais que ele usava também não ajudavam muito, se é que ele estava interessado mesmo em esconder suas origens planetárias...

- Mary Jane! É um sonho estar aqui!

- Estou vendo, Aruna! Qualquer um percebe!

- Vênus, Mary Jane! O planeta infernal! A superfície de 460 graus, 92 vezes a pressão da Terra. E nós aqui, sãos e salvos, acima dele!

Por que Vênus? Ela não sabia nada do planeta! Inclusive, fatos básicos sobre o mundo, ela acabava de conhecer pela boca de Aruna! O que a levava a Vênus?

- Por que veio a Vênus, Mary Jane?

- Ah, Aruna! Não sei... Enjoada da Terra, talvez?

- Eu gosto da Terra! Meu bisavô me contava histórias da terra antiga, poluída, decadente... e de como superamos isto! Ele batia no peito, orgulhoso: "Se até Marte nós conseguimos tornar habitável, por que não repetimos isto em nosso próprio planeta?" E me contava histórias incríveis da recuperação da amazônia, das antigas fazendas do Saara, da colonização do continente Antártico... Estas histórias antigas povoaram minha imaginação de criança! Me faziam ter esperanças de avançarmos mais além! Entende isso, Mary jane?

Ele se aproximo dela mais ousado. Ela gostou, não dava pra negar.

- Mary Jane... - começou Aruna. - Eu poderia...

Ele era bem tímido. Ela percebeu. Tentou ajudar.

- Sim? Que foi, Aruna?

Ele se aproximou da garota, perdida contemplando o horizonte verde lá embaixo.

- Mary Jane, eu posso... - engasgou - eu poderia...

- Desembucha, homem!

- Gostaria se eu fosse seu "Homem Aranha" ?

Era a cantada mais ridícula que havia ouvido na vida! Mas vendo Aruna pálido, tremendo, percebeu que fôra sincero. Só não parecia ter experiência em declarações deste tipo. E... Homem Aranha? Um herói medieval? Dos quadrinhos do século 20?

- Chega aqui, meu Peter Parker!

Primeiro beijo? Não, sem clima para isso! Poderia esperar mais um pouco. Mas o primeiro passo já fôra dado. Aruna e Mary Jane se abraçaram, contemplando o espetáculo verde abaixo deles, debaixo de um céu laranja preenchido de nuvens amarelas...

* continua *