Oceano Gasoso - parte 8

Com tantas outras escolhas possíveis naquela viagem, a estudante de astrobiologia Mary Jane não podia acreditar ter escolhido, para inicio de um relacionamento, logo um rapaz que certamente devia ter um parafuso a menos na cabeça! Quem em sua perfeita saúde mental gostaria de passear em meio ao inferno escaldante e ácido da superfície de Vênus, podendo passar umas férias agradáveis naquele paraíso flutuante e verdejante? Ainda tentou fazê-lo desistir da ideia enquanto desciam para a pequena cúpula invertida onde ficavam os batiscafos de descida:

- Achei que você tivesse medo de altura. São 50 quilômetros de descida até lá embaixo, lembra?

- Se eu não estiver vendo o chão enquanto desço tudo bem. Certamente não vou abrir os olhos até chegarmos lá embaixo em solo firme.

- Solo firme? É mais provável pousarmos sobre um lago de lava...

- Não exagera, Mary Jane! Além disso, estamos bem longe de vulcões ativos para corrermos o risco de encontrar um rio de lava lá embaixo. Lá embaixo tem uma planície venusiana relativamente calma.

- Eu tentei! Vejo que não vai desistir desta maluquice mesmo.

- Vai ser ótimo pro meu curso!

- Que você faz mesmo? Acho que ainda não te perguntei.

- Eu estudo Arquitetura de Colônias Planetárias.

A plataforma de descida era uma semi-circunferência de cabeça para baixo, bem no ponto mais alto da superfície côncava na parte de baixo da Ilha flutuante. Haviam 12 batiscafos rodeando a estrutura. Eles desciam presos a fortes correntes. Era a única maneira viável de se descer. Com a pressão crescendo à medida em que se descia, por maior que fosse o aeróstato de ar usado ele seria reduzido ao tamanho de uma bola de pingue-pongue quando submetido à pressão de 90 atmosferas terrestres que existia lá embaixo. Precisava ser mesmo em resistentes batiscafos pressurizados descendo presos a longas correntes de 50 quilômetros na base da Ilha.

- Reserva para descer até a superfície? - perguntou o robô, incrédulo. Ninguém queria descer, ele costumava passar meses naquela plataforma no maior marasmo, sem visita de uma vivalma humana. Apenas os trajes robóticos inteligentes desciam até lá, quase sempre vazios, sem nenhum humano como "recheio".

- Também reservei um traje, pois pretendo caminhar sobre a superfície.

O robô ainda não acreditava.

- A mocinha vai junto com você?

- De jeito nenhum! - se adiantou Mary Jane.

- Um minuto, senhor. Vou confirmar suas reservas. Seu nome?

- Aruna!

Os trajes robóticos de Vênus eram na verdade escafandros robotizados com interior oco pressurizado e termicamente isolado do exterior, capaz de abrigar um ser humano com segurança (mas certamente não com muito conforto) nas altas temperatura e pressão da superfície do planeta. Tinham inteligência suficiente para se moverem e trabalhar sozinhos, mas quando "recheados" por um humano em seu interior oco se tornavam extensões de seu corpo, exoesqueletos robóticos replicando fielmente os movimentos de seus ocupantes. Inclusive as sensações táteis eram preservadas, mantidas obviamente dentro de uma escala segura: se o explorador resolvesse segurar uma rocha incandescente sobre a palma da mão robótica, sentiria este calor na palma da própria mão, dentro do traje. Obviamente convertido para uma escala humana segura. Além disso a gravidade de Vênus era quase a mesma da Terra, e ninguém seria capaz de mover um traje metálico pesado como aquele usando suas próprias forças. Ainda que usasse ligas nanometálicas leves, o conjunto todo tinha quase 2 toneladas!

- Seu batiscafo é o de número 11, e já existe um escafandro robótico preso em sua ala esquerda. Bom passeio, senhor Aruna!

- Ei, espera aí! Ele vai descer sozinho?

- Por um ponto de vista sim, senhorita!

- Sem instrutores experientes para guiá-lo? E se algo der errado? E se ele surtar, resolver pular num rio de lava incandescente? Ou tropeçar e cair de cara, rachar o capacete...

- O traje robótico vai acompanhá-lo, este é o instrutor! Vai repetir suas instruções motoras com exatidão, exceto se ele tentar fazer algo que comprometa sua segurança. Temos aqui a primeira e a segunda lei da robótica agindo simultâneas.

- Como assim?

- Pela primeira lei, ele não fará mal a um ser humano, o que aconteceria indiretamente se replicasse de seu ocupante uma decisão de movimentos suicida deste tipo. Nem vai permitir por omissão que um ser humano sofra algum mal: ele FILTRARÁ o movimento ofensivo. Pela segunda lei, ele tentará preservar sua própria existência, não reproduzindo o salto para a morte que a senhorita mencionou. E estando o ser humano e o robô ocupando praticamente o mesmo espaço, fazendo isto ele nunca estaria entrando em conflito com a primeira lei. Muito pelo contrário! Obedecendo à segunda lei ele automaticamente também cumpre a primeira! Preservando sua própria existência, ele também garante a segurança do humano que ocupa seu interior naquele momento.

A lógica da máquina era perfeita. mas ela ainda não estava segura. Ela confiava na máquina. Ela não confiava muito era no humano maluco que a comandaria.

- Eu vou descer junto!

- Não é possível, senhorita! Onde arranjaremos agora um escafandro robótico livre para...

- Eu vou! De qualquer jeito! - se agarra a Aruna, quase aos prantos. - Acabei de conhecer este meu namorado novo, e não vou deixar ele morrer sozinho lá embaixo.

- Mas a senhorita precisa entender que...

Aruna não esperava por isso. Nunca em sua vida vira alguém disposto a tamanho sacrifício por sua causa. Emocionado e resoluto, ordenou ao robô:

- Vamos, rapaz! Encontre e prepare outro escafandro pra moça! Ela desce comigo!

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Um quilômetro separava a plataforma da base também côncava, de maior curvatura, que separava a atmosfera de flutuação do ambiente exterior. Agora sim estavam na BASE da Ilha! Eles realmente estranharam aquele rolo de correntes, não pareciam serem capazes de se desenrolar por todos os 50 quilômetros de descida que tinham até a superfície. Estavam certos.

- O batiscafo vai ser desconectado aqui, para ser preso a correntes mais longas. Óbvio, como não pensei nisso antes? Embora não haja necessidade de pressurização ou despressurização, ele precisa passar por uma câmara intermediária para a atmosfera interna não ser contaminada com a externa!

- Essa atmosfera interna, Aruna... No fundo foi o que me levou até Vênus! Estudar o ecossistema da cidade. Ela é regenerada pelo verde que vimos na cidade?

- Lamento desapontá-la, Mary Jane, mas não! O volume de ar na parte debaixo, usado para manter a cidade flutuando, é incomparavelmente maior do que o da mini atmosfera que vimos lá em cima! A fotossíntese ajuda um pouco, mas o grosso da conversão de CO2 em oxigênio é feito por nanomáquinas mesmo.

- Que decepção! Queria tanto estudar isto...

- Que você estuda mesmo?

- Astrobiologia.

- Nem sabia que este curso já existia. Além disso, em que se apoiam para estudar a disciplina? Em Marte só encontraram fósseis de bactérias muito antigas até agora,nada realmente vivo. Na lua Europa, ainda vai demorar para as sondas descongelarem a crosta de gelo e explorar o mar salgado lá embaixo, para verificar se realmente a vida apareceu por aqueles cantos. E na lua Titã de Saturno... bom, teoricamente é possível existir vida baseada em metano líquido naquelas temperaturas congelantes, mas até agora ninguém tem a mínima idéia de como estabelecer lá uma colônia humana para explorar isto de perto.

- Existem extremófilos na Terra vivendo em condições ambientais que...

- Bom, você mesmo falou: extremófilos DA TERRA! Por mais esquisitas que pareçam, não são formas de vida extraterrestres. Fora os fósseis bacterianos de Marte que estão tentando clonar (e quem garante que esta vida era mesmo baseada em DNA, para poder ser clonada?), não temos nenhum outro exemplo de vida fora de nosso planeta de origem.

- Talvez não tenhamos procurado direito ainda.

- Está certa. Quem sabe se aqui em Vênus nós não...

- Ah, Aruna! Estou falando sério! Vida em Vênus? Aí você está exagerando, né?

- Por que não?

- Posso te dar três motivos, pelo menos: 90 atmosferas de pressão, quase 500 graus de temperatura, e finalmente H2SO4, vulgo ácido sulfúrico.

- As chuvas de ácido sulfúrico se evaporam antes com a alta temperatura, nem chegam a tocar o chão. E de qualquer forma, a vida sempre acha um jeito de acontecer...

- De onde você tirou esta idéia ridí... - um ruído seco de metal contra metal indica que o batiscafo venusiano foi reconectado a uma nova corrente, esta sim com extensão suficiente para cruzar os 50 quilômetros até a superfície do planeta!

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Descendo a 50 quilômetros por hora, era de se esperar que chegassem à superfície em cerca de uma hora. Porém esta velocidade não poderia ser mantida. Com a pressão subindo rápido, logo a própria velocidade terminal de um corpo em queda livre seria bem inferior a esta, e eles teriam que reduzir o ritmo querendo ou não. No fim, leis físicas os obrigariam a isto. A viagem total, no fim, durava pouco mais de 2 horas e meia.

A calmaria da parte protegida da cidade foi rapidamente substituída pelos ventos de 300 km/h da troposfera superior de Vênus. Não havia no caso dos batiscafos um compensador dinâmico de posição, e eles acabariam pousando, lá no fundo, bem longe do eixo vertical central da cidade, arrastados pela turbulenta atmosfera superior de Vênus. Considerando-se esta trajetória desviada, a viagem final era bem maior que os 50 quilômetros lineares originais.

Mas logo perceberam que, com a diminuição da altitude, diminuía também a velocidade dos ventos. Na superfície, não passavam dos dez quilômetros por hora. Em termos terrestres, uma brisa capaz de deslocar apenas plumas bem leves. Mas em Vênus, 10km/h de uma atmosfera tão densa devido à pressão era capaz sim de causar erosões, e até de arrastar pequenos pedregulhos na superfície! A questão aqui não é só a velocidade de deslocamento da atmosfera, mas também sua densidade.

- Por que você decidiu me acompanhar, Mary Jane?

- Vi que você era maluco! - ela brincou. - Não gostaria de ser processada por "abandono de incapaz", hehehe.

Eles se olharam com ternura.

- Vi o quanto isto era importante pra você, Aruna! Lógico que quis compartilhar de sua aventura! - e completa, em tom de brincadeira: - E vai que você conheça uma venusiana bonita lá embaixo! Acha que sou boba, é?

Eles ficam abraçados o restante da viagem. Aruna agradece aos céus pelo fato do batiscafo não ser transparente! Isso o fazia esquecer o fato de estarem agora suspensos 30 quilômetros do chão por correntes dentro de uma bola metálica balançante de 15 metros de diâmetro...

* continua *