O MODELISTA

Arnaldo era um senhor respeitável, desses que tem amizade com todo mundo e todo mundo conhece e gosta. Fazia o tipo italiano “bonacho”, possuindo uma protuberância abdominal pronunciada, estatura mediana e a calvície bem evidente. Era bem conhecido no mundo do hobby que cultivara desde os tempos em que era servidor público e agora, já aposentado, era presença constante nas exposições e concursos. Arnaldo era plastimodelista. Construía modelos de aviões, tanques, veículos militares da segunda guerra, barcos e tantos outros. Carros antigos e outros temas também faziam parte dos modelos construídos por ele. E não só a diversidade de temas, mas a perfeição e o nível de detalhes de cada modelo ou cenário – que pelos modelistas é conhecido como vinheta ou diorama - impressionava sempre. Na grande maioria das vezes em que expunha seus trabalhos levava o primeiro lugar. Em concurso que o Arnaldo participava, os modelistas mais experientes e já conhecidos, sabiam que podiam contar só com as premiações, quando muito, do segundo lugar.

Havia também um boato que Arnaldo, além de modelista, era um desses “cientistas de plantão”. Inventava coisas, fazia pesquisas por conta própria, assinava tudo quanto é revista científica e até, diziam também, chegara a vender um dos seus inventos a um dos colegas modelistas. Ajudava o fato de ser viúvo. Por isso, dispunha de todo tempo e dinheiro que precisasse para suas “maluquices”, inventos e seu hobby. Assim era Arnaldo.

O último concurso, no entanto, foi uma verdadeira surpresa para os amigos e colegas de hobby. Ele simplesmente não apareceu. Não foi. Nem sequer um modelo, diorama ou vinheta. Um dos modelistas mais experientes, Miguel – O Miguelão dos barcos (obviamente a especialidade do Miguel era a parte náutica) - amigo pessoal de Arnaldo decidiu então ir até sua casa e verificar se havia acontecido algo com o velho amigo. Afinal, Arnaldo já estava na casa dos setentões e Miguelão sempre achou que Arnaldo fumava demais. Não custava dar uma olhada. Pegou o carro, disse à mulher que ia até a casa do amigo e foi saber do sumiço do parceiro de hobby. Ao chegar, parou na frente da casa de Arnaldo e viu tudo muito quieto. Arnaldo gostava de assistir à TV às vezes num volume um pouco exagerado e dava para saber quando ele estava ou não em casa. Abriu o portão baixo – a casa era dessas antigas, de muro e portões baixos e um pequeno jardim na frente – cobriu a pequena distância até a porta da frente com três passos e bateu à porta. Ninguém. Achou ainda mais estranho quando experimentou a maçaneta e achou a porta aberta. Entrou na pequena sala e viu a TV desligada, abajur apagado, cortinas fechadas e tudo o mais mergulhado na penumbra do fim da tarde. Andou pela casa para verificar se havia algum sinal do amigo, de arrombamento, ladrões, E.T´s, qualquer coisa. Na cozinha, o bule e coador ainda em cima da pia, o café frio. E nada de Arnaldo. Lembrou-se então que o amigo tinha seu “laboratório” – era como ele gostava de chamar o pequeno espaço onde construía seus modelos - no andar de baixo da casa, uma espécie de porão. Já tinha ido uma vez com Arnaldo para ver seus modelos e então imaginou que ele estaria lá. Pensou que o amigo estivesse finalizando algum modelo e estaria ocupado, que talvez a tinta lhe tivesse intoxicado e ele estivesse desmaiado, que ele até teria sofrido um ataque cardíaco ou algo semelhante e não tivesse tido tempo de pedir ajuda. Tudo passou pela cabeça de Miguel num segundo, por conta do silêncio e do mistério da situação. Abriu a porta que dava acesso ao porão e desceu. Enquanto descia, recordava a única vez que tinha estado lá e de repente se deu conta de que nunca havia visto uma tinta, lata de solvente ou caixa de modelo a ser construído. Como diabos então Arnaldo construía seus modelos? De onde vinha tanta técnica, tanta perfeição, tantos trabalhos? Começou a rememorar as conversas sobre o hobby, que tinta usar, lixas e cores e efeitos para acabamento. Num milionésimo de segundo, tudo começou a fazer sentido. Foi então que, enquanto descia, acendeu a luz acionando o interruptor junto à parede e o “laboratório” de Arnaldo apareceu. Vazio, não viu nem o amigo e nem modelos, ferramentas ou outro apetrecho do hobby. Só viu, encoberta pela penumbra, uma estante fechada de vidro, onde imaginou estarem os modelos já construídos e tão repetidamente premiados. Num dos cantos do porão, junto à parede apenas uma mesa de madeira, tampo de verniz já desbotado e gasto. Ali, somente um par de óculos de grau. Exatamente os que Arnaldo usava. “Ele esteve aqui” pensou. Logo ao lado viu um maquinário estranho, parecendo uma fornalha desses aquecedores residenciais, mas rodeada por cabos e fios e o que pareciam antenas. “Que diabos Arnaldo estava fazendo aqui?” pensou alto enquanto caminhava na direção do artefato, movido meramente pela curiosidade instantânea. Por um segundo chegou a esquecer o que tinha vindo fazer ali. Quando ia chegar mais perto para ver o que era aquele maquinário tão estranho, esbarrou num cordão pendurado e viu que era um interruptor de uma lâmpada adicional. Acionou-a e quase caiu de costas com o tamanho da geringonça. Parecia uma lâmpada, só que o corpo do negócio todo era de metal e com um monte de tubos saindo de suas laterais. No que parecia ser uma porta de entrada, um painel na lateral com um pequeno teclado e um visor de LCD. Aproximou-se e, mal podendo conter a curiosidade, apertou um botão, no lugar do que parecia ser a maçaneta. Com um silvo de ar, a porta abriu revelando o interior da geringonça. Miguel não pôde conter o palavrão e quase caiu para trás quando a porta terminou de abrir. Dentro da máquina, um assento, um painel de controle com alguns botões e um mostrador, onde se lia uma data e uma hora e outros números que Miguel reconheceu como coordenadas de latitude e longitude. A data era 6 de junho de 1945, a hora 10 da manhã e as coordenadas Miguel, pela experiência que tinha com náutica, achou que devia ser algo entre norte da França e a costa da Normandia. Até mesmo pela data. O dia “D”. Entrou na pequena cápsula do aparelho e ficou ainda mais estarrecido. Não era possível. Não seu amigo Arnaldo. Era, na verdade, inconcebível. Miguel custava a acreditar. A informação era tão absurda que Miguel teve náuseas, tontura e quase desmaiou. Miguel teve que se segurar para não despencar ali mesmo. Aquilo era, sem sombra de dúvida, uma máquina do tempo. Arnaldo tinha inventado uma maneira de viajar pela história da humanidade. Saiu atordoado da cápsula do aparelho, caminhou cambaleante pelo porão do amigo, se recuperando aos poucos, apesar do ar parado do porão. Respirou mais fundo, apoiando as mãos nos joelhos. Olhava para o chão. Recuperava-se. Foi quando viu uma ponta de tecido no chão chamou a atenção. Seguiu com os olhos o pedaço do pano e viu que ele cobria uma espécie de mesa alta. Levantou-se e foi até o conjunto todo e removeu o tecido. Era uma bancada. Vários instrumentos, alguns até bem sofisticados. Ferros de solda, multímetros digitais, geradores de onda e até um microscópio faziam parte dos equipamentos. Num pequeno nicho, algumas revistas científicas, livros sobre física quântica, diversas folhas soltas, uma calculadora científica e – foi o que chamou mais a atenção de Miguel – um diário. Miguel abriu e passou os olhos nas primeiras páginas. Logo reconheceu que Arnaldo anotava todos os seus progressos, descobertas e resultados de testes ali. Folheou, folheou e mais adiante, uma pagina chamou a atenção. Uma lista. Locais e datas na história. Nomes, pessoas, situações e, o que quase fez Miguel cair de costas: Modelos, marcas e tipos de todos os veículos que Arnaldo tinha exposto nas suas últimas participações em exposições e concursos. Eram tanques, aviões, carros, locais históricos ou não, situações. Uma lista enorme. Em detalhes. Miguel mal conseguia digerir uma informação, já lia outra e outra e mais outra. Era incrível. Parou de ler, com os olhos perdidos, pasmo. Levantou, andou pelo porão, arrastava os pés, andava em círculos. O que Arnaldo tinha feito? Por quê ele teria feito aquela lista e por quê ela batia com cada modelo exposto por Arnaldo? Miguel não conseguia entender. Faltava peças nesse quebra-cabeças. Foi quando voltou a abrir o diário de Arnaldo. Abriu, tentando buscar algo que lhe ajudasse a entender a situação. Mas, dessa vez, abriu a esmo. Tentou abrir além das páginas que já havia examinado e uma página surgiu e nela um desenho. Um equipamento desenhado. Logo abaixo a descrição, algumas especificações e o nome: Redutoparalisador. Era isso! “Meu Deus” Miguel soltou num sibilo. Continuou a ler e em poucas linhas Arnaldo descrevia o equipamento e seu funcionamento. Tinha descoberto um principio neuro-muscular no corpo humano que ao ser submetido ao principio do redutor da maquina, “congelava” o corpo tornando-o virtualmente uma estátua. Aquilo era demais! Era a peça que faltava no quebra-cabeças que Miguel vinha tentando montar desde que tinha descido ao porão de Arnaldo. Levantou-se empolgado e foi em direção ao equipamento com o painel eletrônico. Foi quando um fio que atravessava o chão do porão fez Miguel tropeçar. Quase caiu, atirando o diário de Arnaldo ao chão. Quando se recuperou da quase queda, reparou que o diário havia caído e que algo também havia caído antes e feito um rastro na poeira do chão. Seguiu o rastro e achou o equipamento – o redutoparalisador – caído embaixo de uma mesa, no canto da parede. Foi quando viu uma miniatura que o deixou estarrecido. Era Arnaldo. Jazia numa posição de defesa, como se estivesse sendo atingido por algo. Estava sem os óculos. E tinha 5 cm de altura. Então Miguel entendeu. Arnaldo havia construído uma máquina do tempo. Voltava no tempo, após estudar cuidadosamente cada situação na história. Cada evento. Cada data e veículo militar. Não podia remover situações, locais e até mesmo veículos e pessoas a esmo. Havia uma coisa que ele chamou de continuum. Remover essas pessoas ou veículos podia alterar a historia, fazer desaparecer descendentes e assim por diante. Arnaldo tomou todas essas precauções. Ia até a data e local escolhido e acionava o redutoparalisador. Aí era só recolher o veículo ou local – que havia sido transformado num diorama – e ir feliz para a exposição, ganhar sua medalha. Mas a explicação do acidente estava ali, em cima da mesa. Arnaldo havia esquecido os óculos em cima da mesa e tropeçado no mesmo fio que Miguel. Certamente o redutor disparou ao cair no chão e atingiu Arnaldo em cheio. Miguel levantou-se, apanhou a miniatura do amigo e foi até o armário de vidro que ele havia visto logo que chegara. Viu que era ali que eram guardados os modelos de Arnaldo. Abriu, achou um espaço entre as miniaturas e depositou o “pequeno” amigo numa das prateleiras. Olhou-o por um momento, depois fitou os modelos, fechou a porta de vidro e se virou para ir embora. Parou um momento, virou-se e sorriu: “Irônico, não Arnaldão? Foi “modelar” e saiu “modelado”. Virou-se, apagou a luz e subiu. Tempos depois, soube-se que uma casa naquele bairro, naquela rua, de um certo aposentado, pegou fogo. Tudo se perdeu no fogo. Queimou até o porão. Exceto as miniaturas. E a miniatura de uma ambulância guardava, agora, em seu interior, uma outra miniatura: Arnaldo.

-* fim *-