Amor

O som do metal contra o solo rígido ecoava pelo silêncio da noite. Um homem com uma armadura improvisada com restos de ferro avelhantado cavava ininterruptamente. Apesar de não se poder ver sua pele, transpirava bastante. Todo seu corpo era coberto por essa armadura. Embora fosse improvisada, o vedava bem.

- ‘Cê realmente não se esforça enquanto não tiver gente te olhando, né? – Falava o outro homem, ao mesmo tempo em que tentava limpar sua pistola enferrujada com um pano sujo. Ao menos não tão sujo quanto à arma. – Termina isso logo, já ta de noite.

- Então cale a boca e venha me ajudar – Ele repousa sua pá contra a terra enquanto se apoia na mesma – Com certeza iríamos voltar mais rápido.

- Só vou terminar de limpar essa belezinha. Já vou te ajudar.

O trabalho era árduo. Ambos precisavam achar algo útil no lado de fora, mas sempre prezando por sua vida. Voltar sem encontrar ao menos algo aproveitável era inaceitável. Cada um prestava sua parte para que pudesse haver de fato uma sociedade funcional. Porém, os mais vividos diziam que perambular de noite fora da proteção da cidade era como assinar sua morte. Embora essa informação ainda fosse passada a todos, o exterior não estava mais tão perigoso como outrora. Após a chegada do Astronauta, um marco para a sociedade de sobreviventes da Enclave -- ou Cidade Fortaleza, como era conhecido pela maioria -- as mortes diminuíram demasiadamente. Isso graças ao sumiço da segunda maior ameaça daquele tempo. Nunca mais ninguém havia sequer encontrado rastros do Caçador Ilusionista. Embora Ártemis fosse extremamente ameaçadora, nada conseguia superar a devastação que a radiação poderia causar a alguém. Infelizmente o Astronauta morreu prematuramente e não foi capaz de passar muita informação de quem era exatamente, mas os deixara com grandes esperanças.

- Por que a gente não vai embora? – O homem parecia exausto – Podemos dizer que vamos conseguir o dobro da cota na próxima vez. Também podemos dizer que vamos ser voluntários na procura de Lucy.

- Fale por você! Não faça essas promessas idiotas. É muito melhor que a gente consiga qualquer coisa agora. Podemos dizer também que aproveitamos para fazer a patrulha no Setor D-23. – Ele volta a limpar sua arma e a resmungar – Chatice. Vou te dizer, não quero acabar como o ultimo cara. Coitado daquele bastardo. Achar que aquele dissolvente fosse água...

- Você deveria parar de tentar limpar essa arma e arrumar um dissolvente – Ele da uma risada tímida – Ou melhor, vir me ajudar com isso. O detector captou algo aqui, lembra?

- Isso deve estar quebrado. Com certeza.

- Tenho que limpar minha arma – Imita o companheiro com um tom de deboche – Babaca...

A pá finalmente alcança uma superfície diferente. O som metálico parecia remeter a uma lata. Naquele exato momento um tom de euforia tomara conta de ambos. Riam de alívio e felicidade. As longas horas naquele terreno hostil não haviam sido em vão. “temos latas”, falavam com orgulho.

A euforia é interrompida pelo tiro certeiro na cabeça do velho amigo que portava a arma. O projétil atravessara sua frágil armadura. Sangue jorrava do enorme buraco feito em seu crânio. Seu corpo sem vida cai pesado e sem beleza. Seu companheiro cai para trás com o susto, e não consegue focar o olhar em só uma direção. Estava atordoado e apavorado. O som da colisão entre o projétil e a armadura ainda ecoavam em sua cabeça.

Cinco silhuetas aparecem em sua frente, organizadas em formação militar. A lamparina no chão não iluminava o suficiente; não se podiam ver detalhes, mas pareciam portar armaduras bem desenhadas e moldadas ao corpo. Aquelas não eram armaduras improvisadas. A voz da silhueta da frente parecia ser filtrada com um tom levemente robótico.

- Olá garoto, considere-se sortudo – A silhueta larga uma moeda ao chão – Agora se levante! Tenho perguntas a serem respondidas.

A pouca iluminação revelava algo que nunca havia visto antes. A armadura parecia conter duas camadas negras. Uma camada colada ao corpo, simulando músculos torneados. A segunda era localizada na cabeça, como um capacete; nos ombros e na clavícula, para proteger o pescoço; Nos antebraços, nas coxas e onde percorria o começo inferior da coluna vertebral. Os joelhos e o resto das pernas haviam sido completamente substituídos por membros mecânicos alongados e ligeiramente mais finos.

Não acorde de seus sonhos, pois ainda é cedo. Preso em labirintos em sua cabeça; O quão estranho seria se ele já soubesse, o quão estranho deveria ser essa luz de tirar o fôlego. O quão estranho seria essa luz?

A luz do sol que raiava passava por entre frestas das densas nuvens; tocava e aquecia delicadamente a face de Thom. Embora os pelos de seu rosto fossem grisalhos, a falta de luz costumava disfarçar. Thom não gostava muito de ser visto como alguém velho. Por muitas vezes, porém, deixava escapar que a idade o havia atingido -- geralmente em longas caminhadas ou improvisos de parkour -- mas logo, constrangido, mudava de assunto. Apesar de detestar ser visto com tanta clareza, conseguir um pouco de contato com o sol era raro, portanto o deixara tocar ali. Algo que só conseguira nos últimos meses. Misteriosamente as nuvens que antes cobriam completamente o céu por anos estavam lentamente se dissipando. Dia após dia -- ou semanas após semanas, para ser mais exato -- notava-se uma pequena diferença. A razão de tanto constrangimento poderia se dar pelo fato de acompanhar uma pequena jovem por volta de seus quinze ou dezesseis anos -- saber a idade exata de alguém era algo bem complexo. O termo “pequeno” só poderia, no caso, ser dado à sua estatura. Pequena de tamanho, grande de cérebro e coragem. As condições do mundo faziam com que uma pessoa, para sobreviver, conhecesse exatamente como funcionavam as coisas. Levando em conta que o mundo estava sobe nova jurisdição. Jurisdição do mais forte passar por cima do fraco, às vezes literamente. Sophie sabia exatamente como funcionava a mente de Thom, então tentava se controlar com as piadinhas sobre idade e esforço físico. Embora ele não fosse realmente tão velho. Cinquenta e poucos anos. Naquelas condições estressantes e de constante esforço, a idade parecia ser somada. Seja na aparência, ou nos ossos.

- Ora de acordar, Sophie – ele cutuca a pequena que dormia em um sofá velho ao seu lado – Café está pronto.

- Um dia eu vou acreditar realmente que você fez algo para o café da manhã – Ainda sonolenta, ela boceja e se põe sentada com evidente preguiça – Ainda temos realmente algo pra comer?

- Um dia eu talvez te surpreenda com um belo pedaço de pão – Ele diz com uma pequena risada acompanhada – Mas respondendo a sua pergunta, ainda temos água.

- Nada de comida, ahn?

Ambos subitamente desviam sua atenção para latidos que ecoam de longe. Thom toma a frente de Sophie com um imponente “nem pense nisso” que a mantêm paralisada por alguns segundos. Os latidos continuam por um breve momento, até se cessarem junto a um repentino disparo seguido de outro com míseros segundos de diferença. Sophie leva as mãos à boca e segura sua emoção enquanto Thom a olha de maneira analítica. Ela, agora, caminha em círculos pela sala improvisada no segundo andar de uma casa abandonada demonstrando uma tremenda angústia. Thom estranhara, e com razão. Sophie nunca havia demonstrado qualquer tipo de compaixão com estranhos.

- O que foi? Era só um cachorro! Malditos!

Continua a encarando por alguns segundos. Podia-se dizer que ela havia adquirido uma compaixão instintiva de meninas por coisas pequenas e bonitinhas -- segurou o riso, não parecia apropriado.

- Vamos sair para procurar comida assim que os maníacos estiverem longe o suficiente – exclamou – Prepare-se.

Com anos e anos de experiência, Thom Matos aprendeu a sobreviver nas condições extremas que a Nova Terra, como era chamada pelos mais velhos, proporcionava; aprendeu, através da tentativa e erro, como escalar, procurar comida, se esgueirar e achar abrigo que proteja o suficiente da radiação. Machucou-se apenas algumas vezes, por sorte -- um bom preço a se pagar pelas habilidades mais valiosas que alguém poderia ter nesses tempos. Matos é filho de brasileiros, mas nasceu em Nova Iorque e foi naturalizado americano. Só conheceu Sophie muito tempo depois de a Terra ser devastada pela radiação causada pela Terceira Guerra Mundial -- não sabe muito sobre seu passado, mas se ela deu conta de sobreviver, sozinha ou não, até o momento do encontro, podia ter certeza de suas habilidades. Matos nunca revelou porque a salvara dos mutantes. Talvez nem ele mesmo soubesse, mas agiu rapidamente e com precisão cirúrgica ao atirar suas ultimas quatro balas que portava na época.

Após um breve período de espera, ambos saíram na busca de suprimentos -- talvez Sophie esperasse encontrar algo a mais pelos arredores, como demonstrava a expressão cravada em seu rosto. Nos últimos dois anos, gradativamente, foram se precisando usar cada vez menos as máscaras de gás e a proteção contra a radiação, deixando-as somente em alguns pontos mais perigosos. Mesmo assim, ainda carregavam com si as máscaras presas na cintura. Preocupavam-se tanto com os maníacos de outrora que acabaram não notando o homem velho e sujo que se esgueirava por detrás.

- Parados aí – grita o homem – E continuem de costas!

- Não queremos problemas, senhor – Diz Thom enquanto disfarçadamente girava seu corpo de frente para o outro – Vai com calma. Só quero achar comida para minha filha.

- Ela é sua filha?

- Sim, ela é. Uma adorável garotinha.

- Tudo bem – diz o homem, hesitante – Também preciso de comida para o meu filho.

- Tudo bem. Irei virar lentamente e podemos procurar por comida juntos. O que acha disso?

- Ok. Com calma.

Ao completar seu giro, Thom fica de frente para o homem com suas mãos levemente abaixadas. Ele parecia estar muito sujo e usava um boné antigo do Los Angeles Lakers, time de basquete. Portava um rifle de caça com as duas mãos, e em sua longa barba havia um pouco de lama seca -- mesmo de uma distância segura, o seu cheiro horrível podia ser sentido. Não era muito comum tomar banho, mas esse homem parecia ter batido o recorde de tempo sem água. Sophie estava visivelmente incomodada e o homem percebera. Ficou ofendido por um breve momento, mas logo relevou. Mesmo em tão deploráveis condições, Sophie buscava sempre ficar o mais limpa possível. Vaidade não era muito relevante, mas ela parecia não ligar. Sempre prendia seu não tão longo cabelo castanho e evitava tocá-lo. Fazia questão de deixar um pouco da água que achavam para lavar o rosto e as mãos -- Thom não reclamava, pois gostava da visão de alguém relativamente limpo ao seu lado. Já havia brigado com ele, quando tinha, no passado, tentado lhe fazer um cafuné.

- Fã dos Lakers, ahn? Mas o que faz alguém de Los Angeles aqui?

- Sim – O homem solta uma risada – O mesmo que todos. Procuro a Cidade-Fortaleza, ou como era chamada...?

- Enclave.

- Isso! Enclave. Ouvi dizer que um tal de Gustav manda por lá, e é realmente uma pessoa notável.

Thom e Sophie trocam olhares sem dizer mais nada.

- O que houve? Vocês sabem onde fica?

- Pedi para que Thom me levasse – Sophie se intromete – Talvez meus pais ainda estejam vivos. E se estiverem... Com certeza estarão por lá.

O fã dos Lakers baixa a guarda, e antes que possa proferir mais alguma palavra, Thom saca sua pistola e o acerta com um preciso tiro na garganta. O homem cai ao chão, e seu sangue jorra -- tentava desesperadamente tampar a ferida, mas de nada adiantou. Em segundos seus movimentos cessaram.

- Por que fez isso? Ele ia nos ajudar a achar comida e a Enclave – grita Sophie enquanto bate no braço de Thom com toda a sua força e desespero – Ele ia nos ajudar!

Matos a segura com firmeza e pede para que se acalme repetidas vezes. Após alguns segundos ele começa a explicar-lhe o porquê. Respira fundo e esclarece. Thom diz que o homem não era de confiança, e com certeza iria os usar para achar comida. Logo em seguida iria os matar para não precisar dividir. Disse também que já encontrara vários homens que haviam feito isso, e por sorte continuava vivo. Revela também, não orgulhosamente, que já havia feito parte desse tipo de grupo. Ele mentira, mas em sua cabeça a mentira valia, e matá-lo seria melhor do que correr o risco de estar certo. Sophie demora um pouco a digerir suas palavras, mas com incerteza resolve acreditar.

Thom caminha até o defunto e começa a procurar em seus bolsos por mantimentos e munição. Encontra uma pequena faca e um livro sujo com sangue. Nada de comida nem água. No livro havia duas marcações que diziam respectivamente “A tua alma ainda há-de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas” e “não passo de uma besta que foi ensinada a dançar a poder de pancadas e fome.”

O livro descansara aberto em cima do corpo do defunto. Thom deixara para trás o livro e levara consigo o rifle, carregado, e a pequena faca. Talvez aquele homem fosse somente mais um -- dos poucos que ainda restara -- desamparado à procura de ajuda. A maioria das pessoas que ainda viviam se juntaram à Enclave, ou recorreram ao canibalismo. Pouco a pouco os canibais acabam perdendo a cabeça e se aproximando tanto dos mutantes, que a única diferença seria a aparência. Estes não eram bem vindos às proximidades da Cidade-Fortaleza. A probabilidade de ter sido um homem honesto era muito remota; muito risco para pouco fruto. Lentamente Thom caminha até Sophie, toca seu ombro, e ambos seguem seu caminho. Seguindo em frente com toda a cautela, chegam à parte da cidade em que ainda não haviam procurado. A parte nova -- que de nova se dava pelo fato de não terem passado por ali -- dava sinais de ser um local bastante hostil. Não parecia ter sido revirado faz muito tempo. As marcas de sangue seco nas paredes e chão davam a advertência suficiente para que pessoas não atravessassem o buraco na lateral do ônibus, único caminho em que visivelmente era possível de passar.

A nova vista era extraordinariamente perturbadora e hipnotizante ao mesmo tempo. Pontes quebradas, carros abandonados, restos de ossos humanos... Tudo incrivelmente cinza e vermelho pútrido. Passam alguns minutos parados, olhando o quão poético aquilo tudo se tornara. Algo tão triste se tornara, de certa forma, bonito.

Caminham por entre as casas. De casa em casa procuram por qualquer -- quase qualquer -- tipo de comida que poderiam encontrar. Canibais ficariam muito felizes em encontrar aquele local. O sinal de tantos corpos incomodava, e não somente pela visão ou odor, mas por quase gritar em seus ouvidos “saiam, esse é com certeza um território de mutantes.” De toda a forma continuavam a procura de qualquer tipo de comida que tenha sido deixada por ali, já que mutantes se acostumaram durante anos com carne humana que qualquer outro tipo de alimento nem seria visto como alimento de fato. O anoitecer estava cada vez mais próximo, e para todo o bom sobrevivente, perambular noite a fora não era a atitude mais sensata que alguém poderia adotar. Geralmente significaria uma tentativa bem convincente de suicídio. Para cobrir mais território de forma eficiente, Sophie era responsável pelo primeiro andar, já Thom, o segundo. Ela abria gavetas, revirava panos e abria geladeiras há muito tempo estragadas.

Uma comoção começara no andar de cima. Sophie saca sua pequena faca, que havia recebido há pouco, e corre pelas escadas até o segundo andar. Ela para na porta de um dos quartos no exato momento em que Thom derruba uma pessoa e bate com uma cadeira repetidas vezes em seu crânio até se despedaçar -- tanto a cadeira, quanto o crânio. O sangue se espalha pelo chão, e se junta com o que pingara de outro homem jogado em cima da cama. Parece que não estavam tão sozinhos naquela área. Matos se vira momentaneamente assustado com a presença de outra pessoa que vinha de fora, mas logo suspira de alívio em ver o rosto dela.

- Ele estava armado, mas gastou sua ultima bala nesse pobre infeliz – apontara para o homem morto na cama – Estavam brigando por essa lata de pêssegos. Veja se encontra algo nele, enquanto eu olho este.

- Isso fez muito barulho.

- Pois é. Sejamos rápidos.

Os dois notam, ao mesmo tempo, grunidos e passos que vinham do primeiro andar. Thom rapidamente agarra o braço de Sophie e corre para dentro do armário. Parados no escuro e silencioso armário tentam segurar o máximo sua respiração ofegante e preocupada. Enxugam seu suor cuidadosamente com as roupas velhas que encontraram --transpirar perto de mutantes não era o melhor jeito de se esconder. Os mutantes não enxergam muito bem, visto como a radiação afetara seus olhos primeiramente, mas seus outros sentidos se tornaram mais aguçados. Conseguiam sentir e distinguir cheiros de forma complexa. Sua audição fora elevada à de um grande predador noturno, portanto se acalmar e seguir com cautela era a forma mais eficiente de despista-los. Infelizmente ninguém havia sobrevivido para contar como exatamente era a aparência desses tais, mas tinham uma noção básica do que fazer para evitar contato. Pode-se dizer que só sobreviveu quem manteve distância ou aprendeu na marra como evita-los.

Podiam-se os ouvir entrando. Seus passos rápidos e extravagantes ecoavam por todo o quarto, e possivelmente todo o apartamento. Respiravam fundo tentando manter a calma, mas a preocupação era demasiadamente evidente em seus rostos. Thom, cautelosamente, destrava sua pistola. Gostaria de usar só se fosse indispensável, já que achar munição era algo realmente raro -- com certeza atirar chamaria a atenção de outros mutantes que estivessem por perto. Matos só trazia duas balas, e pelos passos ele contara três ou quatro alvos. Mesmo se acertasse os dois tiros -- o que seria difícil, pois são realmente rápidos -- ainda teria que lidar com mais um ou dois. Ele olha para Sophie e aponta para o rifle em suas costas como se perguntasse se ela sabia como usa-lo. Ela confirma com a cabeça e o pega.

Os mutantes rapidamente se satisfazem em achar o corpo dos dois homens mortos, e os arrastam para fora da casa. Ambos respiram aliviados, se sentam no chão, e deixam escapulir uma pequena risada de bem-estar. Alguns respingos agora colidiam com a janela fechada do quarto; vagarosamente se agravavam, e logo a chuva se tornara constante e poderosa. A chuva era algo muito perigoso e geralmente vinha sem avisar e demorava algumas horas para cessar. Ela chegava diretamente das nuvens tóxicas, portanto ficar a mercê não era o mais sensato. Decidiram ficar naquele quarto até o amanhecer. Com a porta barricada e sussurrando não seria tão perigoso. Só precisavam ser cuidadosos. Justamente ao tédio veio o sono e a fome. A lata de pêssegos não continha tanta comida, mas haviam se acostumado a não comer tanto -- Fora o suficiente para saciar a fome por algumas horas.

Thom Matos sonhava estar em seu próprio paraíso. Paraíso que não era no futuro, mas sim nos cantos claros de suas memórias. Estava com sua mulher em lua de mel -- ele deitado na cama enquanto ela tocava uma bela composição própria no piano. Lilian era a única mulher que ele havia amado por toda sua existência -- Uma linda e simpática mulher, dois anos mais jovem, que conhecera em uma das cúpulas logo após a guerra. Ouvia o som do vento, da música delicada e linda que repercutia através de toda a casa e banhava-o de alegria. Era relaxante, poético e colorido. O sonho o levou a uma imagem mental, quase divina, de sua antiga esposa deitada em um enorme e verde gramado que lembravam a cor de seus olhos, enquanto os raios de sol abraçavam sua pele branca e destacava as sardas em seu rosto. A música continuara tocando em sua mente enquanto vislumbrava seu sonho que cheirava a flores na primavera. Como um solavanco que o empurrou à realidade, Thom acorda assustado com um barulho de explosão que vinha de longe. O lindo gramado verde agora fora substituído pelo teto cinza, e as flores por poeira. Ainda chovia e já anoitecera. Sophie, completamente exausta, não parecia nem ter ouvido o estrondo. Ele caminha e abre um pequeno espaço na janela.

A aliança permanecia em seu dedo. Ele a encara por longos minutos sem desviar o olhar por nem um segundo. Não havia para quem disfarçar a tristeza, mesmo assim segura suas lágrimas. Com os olhos vermelhos, ele a retira lentamente. Ela agora repousava na palma de sua mão. Flashes da imagem que sonhara vinham e iam. Vinham e iam. Intercalavam-se com uma memória terrível. Imagens divinas de sua mulher, e imagens malditas da bala que acertara suas costas. Por mais difícil que fosse tomar essa atitude, ele a larga janela a fora em um só golpe.

Algumas horas se passaram, e junto com o fim da noite a chuva fora embora. Sophie, aquele dia, acordara já perguntando sobre a Enclave. Perguntava a distância, e parecia bastante animada, ao contrário de Thom. Ele não sabia exatamente o motivo, mas cada vez que se aproximava mais, menos disposição tinha. Mais triste ficava. A jornada até as proximidades da Cidade-Fortaleza foi constrangedora e silenciosa -- nenhum proferira algo a mais que o necessário. Quanto mais perto ficava, mais barulho fazia. Era evidente que acontecia um alvoroço na frente da grande fortaleza. Barulho de disparos, bombas e fogo estremeciam a terra e vibravam o barranco por onde subiam.

- Fique abaixada – sussura.

Thom espia os fatos e se depara com uma visão espantosa. A grande muralha erguida com entulhos de ferro era bombardeada por apenas cinco silhuetas. Como era possível que apenas cinco pessoas pudessem causar todo aquele estrago, se perguntava. Olhando bem, havia algo de estranho com as silhuetas. Pareciam bem equipadas demais para sobreviventes de fora, ou para qualquer tipo de sobrevivente. Portavam grandes e ameaçadoras armas, e pareciam desviar de disparos defensivos com maestria. Nada daquilo parecia humanamente possível.

Uma das bombas é refletida aleatoriamente em direção ao barranco, causando um grande tremor. A parte de cima cede, fazendo com que uma ampla quantidade de terra deslize e carregue Thom em direção à Sophie. Ela não consegue se segurar e cai do barranco até o chão, batendo a cabeça em um carro abandonado.

Matos se via, como se assistisse sua própria memória, fazendo cafuné em sua bela mulher. As luzes dos prédios que refletiam na cúpula eram lindos -- ela funcionava como um enorme, delicado e fraco refletor que engrandecia o colorido.

- Achava que Deus estava morto – Falava como se conversasse com sua esposa – Quando você se calou, eu entendi que Ele não tinha mais nada a dizer.

Thom abre os olhos e se põe sentado com dificuldade. Parecia não conseguir respirar direito -- parou alguns segundos para que voltasse ao normal. Atordoado, se levanta e cambaleia em direção à Sophie. A segura firme nos braços, e com grande dificuldade caminha para longe.

Passaram-se longas horas até Sophie retomar a consciência já em um abrigo improvisado entre um pedaço de um prédio que caíra e uma loja qualquer. Não era muito, mas era longe o suficiente. Com um teto -- ou quase -- sobre suas cabeças para proteger da chuva que voltara.

- Thom?

- Estou aqui.

- O que aconteceu? – Pergunta Sophie enquanto levanta do chão coberto com um pano – E meus pais? Você os viu?

- Lá não era mais seguro, Sophie. Temo que todos já tenham sido... Mas tenho certeza que seus pais não estavam lá.

- Sabe? Um pouco antes de me perder deles, anos e anos atrás, muito antes de te conhecer, eles haviam me prometido que tudo acabaria bem – Seus olhos se enchem de lágrimas, mas nenhuma cai - Acho que foi apenas mais uma mentira apaziguadora que os pais contam, né?

Thom fica sem resposta momentaneamente enquanto olhava para seus olhos verdes que se destacavam pela sujeira em seu rosto.

- Lamento muito. Lá não é seguro.

- É... Acho que não – Uma lágrima finalmente escorre por seu rosto – Você jura que eles não estavam lá?

- Sim – confirma hesitante.

- Okay.