Sublime Decantação

Não me vem com clareza à memória o instante inicial, o primeiro sopro de consciência. Nem estou certo se foi um instante específico, ou um processo gradual. Talvez na quinta semana, com o desenvolvimento do tubo neural. Não não, ainda não é um cérebro, nao estou certo se eu já era consciente nesta época. Na semana seguinte, com um coração batendo? Esta idéia do coração como centro dos sentimentos do ser é romântica demais, mas bem ultrapassada. Ele sempre foi e sempre continuará sendo apenas uma bomba muscular. A miniatura de sistema nervoso nele presente não passa de um marca-passos natural, incapaz de raciocinar e ter consciência. Não, provavelmente o sopro de consciência foi algo gradual, que começou na oitava semana com o desenvolvimento do meu cérebro.

Era escuro aquele lugar. Mas nossos olhos se adaptam à escuridão! Fui aos poucos tomando consciência daquele tecido quente, dunas de carnes que me serviram como primeiro cobertor em minha existência. No início, envolvido em plasma, era difícil reconhecer o ambiente em volta. Mas, como disse, nos adaptamos.

Um cordão me prendia àquela bolsa cheia de água salgada. Meu primeiro escudo, minha cama... meu teto! Minha primeira casa. E daquele cordão vinha meu alimento! Vinha o oxigênio de que eu precisava, incapaz ainda de utilizar meus pulmões naquele ambiente aquoso. Ah, como eu era grato àquele ser, ainda desconhecido para mim, que me abrigava em meu desenvolvimento, que me fazia pouco a pouco vivo, me preparava para um mundo ainda desconhecido para mim!

Meus olhos ficavam mais complexos dia após dia, bem como meu cérebro! E também já captava sons. Ouvia claramente as batidas lá fora me trazendo sangue rico de alimento e oxigênio, bem como levando embora de meu pequeno corpo em desenvolvimento os resíduos de meu metabolismo. Ah, como eram belos os papéis de parede de minha primeira casa! Aquela cor rubra que já conseguia tocar e chutar com minhas mãos e pés já em desenvolvimento bem adiantado!

Mas o começo de tudo isto realmente me fugia. Seria o instante da junção dos gametas? Não, detalhes disto eu só fiquei sabendo depois, em vida. Na época não passava de uma célula gigante com metade de um DNA se recombinando com outra célula que possuía a outra metade da informação, das instruções para gerar um ser completo. Combinação aleatória? Lógico que não, a tempos a humanidade havia eliminado este risco. Os pares envolvidos eram selecionados em laboratórios, livres dos principais problemas genéticos que poderiam apresentar. Características secundárias como sexo, cor da pele, dos olhos, do cabelo? Não era ético selecionar os gametas por tais características, muito embora fosse tão simples aos laboratórios identificar estas características quanto outras como daltonismo, hemofilia ou síndrome de Dawn. Mas é certo que, mesmo antiético, isto era feito. Se pensarmos bem, que sentido haveria em não se fecundar um óvulo novo com a característica de desenvolver grande massa muscular quando o novo ser estava destinado a trabalhar com transporte de cargas? Ou selecionar um embrião com maior capacidade cerebral num indivíduo predestinado pelo Estado a se tornar gerente ou presidente? Os cientistas faziam isto às escondidas sim, mas FAZIAM!

O olho negro e brilhante daquela mulher agora me parecia bem claro. Olhava pra mim, acompanhava meu desenvolvimento. Aquelas órbitas escuras no teto de minha primeira casa estavam lá para se certificarem de que me desenvolvia corretamente, sem problemas. Um técnico em mineração de asteroides não podia apresentar problemas, sobretudo em seu desenvolvimento ósseo! Certamente passaria a maior parte da vida no espaço, em gravidade reduzida, mas vez ou outra precisaria retornar ao planeta! E não se esperava de mim ossos enfraquecidos pela ausência de gravidade nestas horas. O olho de minha progenitora, no topo daquela bolsa de água, vigiava tudo para que não houvessem surpresas...

Depois de 9 meses de desenvolvimento, me recordo claramente do início de minha decantação. Um vulto passava lá fora, conferindo a contagem do período de gestação das várias mães enfileiradas naquele corredor, deitadas nas cavidades daquela parede. Sim, deitadas, pois se descobriu que era a melhor posição para se desenvolveres técnicos e engenheiros espaciais. Parou diante de minha mãe, tocou sua pele cristálica transparente, dentro da qual crescia uma enorme bolsa cheia de líquido amniótico. A cuba se ergueu, e comecei a decantar. Ah, ainda posso sentir aquele canal, aquela pele metálica e macia por onde passei para ser apresentado ao mundo! Ouvi sons de choro ao redor. Haviam outros bebês! Sim, todos recém decantados de seus tanques de maturação! O técnico (ou técnica? impossível saber com aquela máscara...) me deu umas palmadas. Ouvia toda aquela barulheira em volta, e sentia que agora era a minha vez. Comecei a chorar, meus pulmões começando a funcionar pela primeira vez em minha vida!

Penso em escrever para minha mãe. Sempre sou caçoado por esta idéia doida. Todos me dizem que é uma máquina, que nem existe inteligência artificial nos tanques de maturação. Mas aqueles olhos negros que me acompanharam por nove meses sempre me pareceram bem vivos! Bom, de qualquer forma é uma ideia doida. Os Centros de Incubação e Condicionamento nunca divulgam qual o número do tanque que o gestou. Não saberia com qual deles falar...

* FIM *