Teletransporte - Parte 2

Charles foi vítima de seu excesso de confiança. Acreditou demais na precisão de seu algoritmo. Havia testado com sucesso o teletransporte de estátuas, celulares, pedras, líquidos, até mesmo gases confinados em cilindros. Todos bem sucedidos!

Ah, pobre Charles! Por que não testou antes numa cobaia? Um chipanzé, ou um pequeno rato. Até mesmo um pedaço de bife! Bastaria tentar teletransportar uma simples maçã para descobrir que a quantidade de informação de matéria orgânica que precisava ser transmitida era incompatível com a largura de banda disponível no canal de transmissão entre os casulos transmissores e receptores... Ele ficou fascinado com os sucessos iniciais, e decidiu ele próprio se submeter como cobaia. Charles, como não pode perceber a diferença entre transmitir um recipiente de óxido de silício banal preenchido de H2O, vulgo copo dágua, e transmitir um objeto orgânico complexo, rico em células diferenciadas, proteínas, processos químicos complexos...

Mas eu sabia onde ele havia errado. Transmitir trilhões e trilhões de moléculas de água e de óxido de silício era fácil, duas substâncias simples, bastava definir suas posições no destino, uma quantidade de informação ridícula precisava ser transmitida para se fazer uma reconstrução fiel no destino. Mas como transmitir células? Cada célula tinha sua própria história, sua própria idade, seu próprio conjunto de organelas. Individuais? Sim, cada célula era uma célula! Uma célula da pele era diferente de uma célula do fígado, diferente de uma célula do coração, por sua vez diferente de um neurônio. A quantidade de informação a transmitir, visto desta perspectiva, era inviável! O que havia de comum entre todas elas? Óbvio, todas as células do corpo de um indivíduo a ser teletransportado possuíam o mesmo DNA. Não precisava transmitir trilhões de cópias de DNA de cada célula, pois todas eram iguais! Só preciso transmitir o de uma delas, o DNA do indivíduo teletransportado, e transmitir uma breve informação adicional informando a idade e os trechos ativos de DNA de cada célula a ser reconstruída no casulo receptor.

- 60 litros de água, Richard. – ouvia a ligação do outro lado do atlântico, onde Charles deveria chegar. – Foi isto que recebemos aqui.

- Sim, pessoal! Me parece claro agora! O equipamento começou a transmissão pelo elemento mais simples que ele conseguiu identificar: H2O, a água.

- O corpo humano é formado por mais ou menos 75% de água! Acreditamos que toda a água dele foi transmitida, mas o restante ficou aí... Pêsames, amigo...

- Charles criou o incinerador mais tecnológico do mundo. Só o que me consola é saber que foi instantâneo, que ele nem teve tempo de sentir dor. Charles, Charles, meu mentor... meu AMIGO! Repouse em paz...

Charles só enxergava a matéria bruta! Transmita o objeto átomo por átomo, que vai conseguir do outro lado uma cópia exata do original, indistinguível do objeto inicial. Eu sempre discordei. Ele desdenhava. Dizia que deveria existir alguma ordem a mais independente dos elementos químicos, que apenas recolocar átomo por átomo em suas posições translacionadas não seria suficiente para garantir a reconstrução dos objetos. Acreditava que funcionaria para objetos inanimados, mas falharia para os orgânicos. Charles ria de mim:

- Por que você acha que objetos orgânicos são mais do que objetos inorgânicos dotados de mecanismos complexos de interação? Que bastando reproduzi-los átomo a átomo, em suas posições relativas originais, não seria o suficiente para reproduzi-los funcionais?

Ele acertara parcialmente. De fato ele não morreu porque sua cópia fora imperfeita. Morreu porque não deu tempo de fazer uma cópia completa, perfeita, ele não fora transmitido átomo por átomo ao destino por simples incapacidade tecnológica, por tentar transmitir mais informação que aquela que o canal de transmissão suportava. Assim não havia como saber se sua ideia estava certa ou errada... Estaria agora vivo se fosse transmitido átomo por átomo, em suas posições originais?

Eu testei antes com cobaias orgânicas. Teletransportei plantas, carnes mortas, vermes vivos, moluscos, peixes, cães, ratos, chipanzés, orangotangos... Meu método funcionava! Minha compactação orgânica era um sucesso! A ideia de transmitir o DNA, e depois apenas transmitir os deltas, os diferenciais de cada célula em relação ao padrão, funcionava perfeitamente!

O filme “A Mosca” é um clássico sempre citado por meus alunos. DNAs fundidos? Impossível, meus caros! A princípio, a fusão nunca funcionaria! Seria uma combinação condenada ao fracasso. Mas o próprio algoritmo que desenvolvi impediria que isto acontecesse. Os objetos não são mescláveis. UM HUMANO E UMA MOSCA TELETRANSPORTADOS JUNTOS APARECERIAM NO OUTRO LADO COMO: UM HUMANO E UMA MOSCA! O algoritmo de separação espacial que desenvolvi garantiria isto!

- Vai mesmo fazer isto, professor?

- Lógico que vou! Tenho confiança absoluta que estou fazendo do jeito certo!

Haviam vários alunos meus na sala. E pesquisadores bem conhecidos! Físicos, biólogos, computólogos... Aquela experiência envolvia mesmo várias áreas. Eu entrei confiante no casulo transmissor, transparente. Sim, fiz questão que ele fosse transparente! Queria saber imediatamente se a experiência dera certo. Bom, tinha todas as provas de que daria certo! Mas... queria ver! Entendem? O casulo receptor também era transparente! Eu queria VER a experiência! Isto era muito importante pra mim!

- Podemos iniciar o teletransporte, professor? – ouvi do alto-falante no alto do casulo.

- Estou pronto! Comecem logo!

Senti o dispositivo escaneando todo o meu corpo, de cima para baixo. A informação de minhas células copiadas, átomo por átomo sendo destruído, transformado em energia para alimentar a transmissão até um laboratório em Londres, do outro lado do atlântico. Ah, impossível descrever a sensação de estar sendo desintegrado, molécula por molécula, célula por célula! Continuei observando o laboratório através da parede turva do casulo, a visão ficando cada vez mais embaçada...

*** continua ***