*O VIAJANTE*

– Eu acredito em disco voador, me disse com convicção o senhor Lau.

– Como assim? Perguntei curiosa.

– É, acredito em disco voador e nessas máquinas de viajar no tempo. Ou isso ou a água lá em casa está contaminada por vírus terríveis.

– Mas senhor Lau, isso tudo não passa de fantasia. Ora, que ideia maluca, comentei desdenhando.

E foi então que o velho contou:

– O caseiro sumiu. E de forma muito estranha. Para piorar a história toda, a cozinheira agora está louca de pedra.

O tal caseiro era alto, forte. Possuía uma cicatriz no rosto. Talvez, por isso, se mostrasse tão tímido nas poucas vezes em que se apresentava. Um rapaz de pouquíssimas palavras. Poucas mas firmes. Quando falava a voz era austera, grave, segura. Muito reservado desempenhava o serviço sem reclamar, sem perguntar. Tudo o que lhe mandavam fazer ele fazia com uma presteza impressionante. E era culto. Sim, se interessava muito por livros. O senhor Lau já pegara várias vezes ele lendo e escrevendo às escondidas, com um ar compenetrado e aristocrático.

O caseiro também exibia bons modos, era bem educado e gostava de fazer artesanato. Com madeira e alguns pregos fazia peças maravilhosas. Algumas até hoje sem utilidade, mas com certeza muito bonitas. Também tinha a intrigante mania de fazer exercícios físicos pra lá de diferentes. Ninguém entendia muito bem os movimentos que o rapaz fazia com o corpo. E nunca, nunca ninguém viu aquele homem comendo. Nem uma fruta sequer. Nada.

– Passar fome não passava, porque era forte como um touro, comentou o fazendeiro.

O senhor Lau detalhou que estava outro dia às turras com o filho mais velho perto da cocheira, quando os dois se espantaram ao ver o caseiro correndo sem rumo na parte de trás da casa. Foram ver do que se tratava tamanho alvoroço e deram de cara com o homem aos prantos, sem dizer coisa com coisa, murmurando sandices, e perguntando a todos que dia era aquele.

– A data, ele perguntava.

– A data, que dia é hoje?

Como se acordasse de um pesadelo. O rapaz se debatia, soluçava, chorava numa mistura de medo e incredulidade. Seu Lau e o filho disseram a ele o dia e a hora. E ele pareceu não acreditar. Olhava para as mãos, tocava o cabelo, o rosto, como se sentindo pela primeira vez o peso do próprio corpo. Levaram o homem para o quarto principal da casa, onde teria mais conforto. Conseguiram acalmar o caseiro com um pouco de água de melissa que a cozinheira providenciou. Também fizeram com que se deitasse e ficasse assim por algum tempo. O choro continuou. O murmúrio também. Já não estava mais histérico. A cozinheira ficou velando o sono do jovem que custou a dormir até sucumbir ao cansaço.

Quando finalmente acordou no quarto do patrão, se sentou, tirou os lençóis e estava sem a camisa, com o corpo suado. Revelou as outras dezenas de cicatrizes que carregava. Naquele instante pareceu bonito aos olhos da cozinheira. A moça relatou mais tarde que ele lançou um olhar de menino para ela, com uma meiguice impressionante, como se pedindo socorro. E falou bem baixinho ao seu ouvido coisas que não soube nem descrever. Falava estranhamente de luzes, fogo e estrelas. A cozinheira confessou que até achou engraçado. E pra ela a voz dele tinha mudado um pouco, estava menos rude.

A mulher ofereceu mais água para o caseiro, que recusou, se levantou e lentamente se dirigiu ao espelho da parede, bastante raro naqueles tempos. Admirou-se dele mesmo diante do brilho enferrujado do tal espelho. E finalmente o homem se recuperou do desespero. Voltou ao silêncio de sempre. E ao tradicional ar circunspecto.

No outro dia ninguém mais viu o rapaz. Procurou-se pelas redondezas, por todos os barrancos, até na beirada do rio. Nada. O caseiro sumiu do mapa. Não levou roupas, nem objetos pessoais. O filho do senhor Lau encontrou uma soma polpuda de dinheiro dentro do guarda-roupa como se ali fosse um cofre pessoal. No quarto todo nada foi mexido, nada foi tirado do lugar.

Poucos dias se passaram e impressionantemente, a tal cozinheira começou a adotar o mesmo silêncio do rapaz sumido. Ficou pelos cantos da casa, catatônica. Parou de comer, passou a ter medo de tudo e quando falava dizia coisas estranhas. Gritava a noite inteira avisando que o fim do mundo estava próximo.

– Completamente maluca, sentenciou o senhor Lau.

O médico foi até lá para ver o que se passava. Diagnosticou uma loucura temporária.

Três dias atrás o filho do senhor Lau encontrou um diário escondido embaixo das vigas do quarto onde o caseiro dormia. Nele, relatos impressionantes de vidas, épocas e fatos que não são de nosso entendimento.

– É como se o homem morresse várias vezes. Como se ficasse indo e voltando à realidade. Ou ainda, é como se ele fosse um viajante do tempo, dizia um incrédulo senhor Lau.

O fazendeiro me contou ainda que ele e seu filho desconfiam também que o que está escrito naquele diário se passou em outro mundo, tamanha a diferença com a realidade que vivemos.

Pelo que está escrito no diário, seu Lau acredita que nessas viagens, ou ressuscitamentos, o caseiro se esquece de tudo, até que um dia acorda e não suporta o peso dessa insanidade.

A cozinheira coitada não voltou mais a si. Foi internada pelo senhor Lau que agora cuida de todas as despesas. Ninguém até hoje sabe o que ela viu ou o que o homem falou pra ela.

O caseiro forte e com cicatrizes sumiu. Nunca mais voltou. O senhor Lau e o filho resolveram enterrar a história. Só que com alguma diferença: agora acreditam no impossível.

FIM!

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO SITE ASSOMBRADO:

http://www.assombrado.com.br/2014/01/contos-assombrados-o-viajante.html#more