256-O MISTÉRIO DO MORRO DA MESA-Discos Voadores

A região se modifica notavelmente assim que se atravessa o limite entre os dois estados. As suaves colinas e os planos de altitude, cobertos por canaviais infindos, transformam-se em morros acidentados e serras irregulares. O horizonte fica recortado de formas diversas. As montanhas se interpõem, as mais próximas coloridas de verde intenso pelos cafezais vicejantes, as mais distantes em tons de azul e violeta, confundindo-se com o céu e as nuvens.

Entre a morraria irregular, uma formação se destaca: uma elevação isolada, com paredões a pique e o topo achatado, plano, como se cortado horizontalmente por uma ferramenta descomunal ou uma máquina de engenharia desconhecida. É o Morro da Mesa.

É assim que Eduardo Mitre registra mentalmente a transformação, ao se aproximar da região onde fica o Morro da Mesa. Com o colega Milton Macedo, pretende filmar esse local de formação geológica peculiar e origem de certas histórias ligadas a lobisomens, chupacabras e, nos últimos tempos, a discos voadores,

— Já tamo chegando. Cuidado aí com o barranco. — Tião Galdino, o guia que contrataram em Sapetaperê, sabe de todos os particulares do caminho. A estrada, pouco usada, sobe a encosta do morro. — Não vai dá pra subir de jipe até no tope. Melhor a gente estacionar por aqui, debaixo deste jacarandá-rosa.

Edu salta do jipe e olha para cima. O sol da tarde bate direto no paredão quase vertical com pouca vegetação e áreas completamente descobertas, revelando a rocha vermelho-ferrugem. A copa do alto jacarandá chega a menos da metade do paredão.

— Deve ter pelo menos uns trezentos metros. — Estima Milton, acompanhando de perto o olhar de Edu. — Vamos ter de usar cordas e pontões para a escalada.

— Porque este morro não é natural, não senhor. — Galdino entremeia a conversa. — Plaino daquele jeito, mais parece um campo de futebol, e só pode ter sido coisa feita há tanto tempo que ninguém mais se lembra ou sabe quem fez.

Os boatos insistentes de aparições, nas imediações do Morro da Mesa, de estranho animal que chupa o sangue das vítimas, além de dilacerar a barrigada para retirar as vísceras, despertaram a atenção do diretor da TV Interlândia. Num breve telefonema, incumbiu os dois repórteres de visitarem a região e verificarem o que há de realidade nessa lenda.

— O demo tá sorto por aqui. Vem disco voador todo mês, tem lobisome toda sexta e o chupacabra num tem dia — quer dizer, num tem noite certa para atacar. — Galdino fala pelos cotovelos, mas não mente. Pode até aumentar um pouquinho. Como acredita em tudo o que é sobrenatural, sua narrativa é surrealista.

— E os fazendeiros, que fazem para se defender? — Indaga Edu.

— E o medo, deixa? Estão tão apavorados que não querem nem procurar a polícia. Dar parte desses acontecimentos. São uns frouxos, isso sim. — Mascando fumo, Galdino vai revelando aos poucos o terror que se instalou entre os habitantes da região.

— Você já esteve lá em cima? — Milton acha muito exagero na prosa de Galdino.

— Uma meia dúzia de veiz.

— Viu alguma coisa estranha?

— Não sinhor. É um campinho pelado, que o vento varre dia e noite.

— Mora alguém por perto?

— Do outro lado, bem na falda do morro, mora uma bruxa. É uma preta velha, cuja idade ninguém sabe. Chamam ela de Véia Azardina. Ela fala que é vigia do morro. Completamente maluca, a bruxa.

Os dois documentaristas mostram interesse em ver a preta velha antes de subir ao topo do Morro da Mesa..

— Ela não gosta de visita, não sinhor. E anda o dia inteiro no mato, campeando ervas

— Mas a gente tenta.

Acamparam e prepararam uma refeição rápida. Os repórteres queriam sair logo para visitar a preta velha. Galdino asseverou não haver perigo de deixarem o acampamento sem vigia, pois o lugar era um deserto de gente e de bichos.

— Só se aparecer o chupacabra, mas esse só ataca animal pequeno.

A velha mora numa cafua, uma tapera feita de pau-a-pique. Fica dentro da mata que circunda o sopé do morro e sobe por algumas dezenas de metros pela encosta, que, deste lado, é mais suave.

Aproximam-se devagar, a trilha é difícil, cipós se enrodilham nos braços e nas pernas dos três aventureiros. Os dois repórteres, ainda que habituados a cenas bizarras, surpreendem-se com o que vêem. As paredes da choupana estão se desmanchando, o teto está caindo numa das extremidades. As árvores fazem sombras que se transformam em escuridão mesmo ao meio-dia. Arbustos rodeiam o casebre. Lianas e trepadeiras sobem pelas paredes, firmando-se nas frestas e buracos. O ambiente lúgubre é reforçado por uma fumaça que, saindo pelos buracos do teto, teima em permanecer a pouca altura, pairando como uma névoa de terror.

Galdino bate palmas de longe.

— Ô de casa! — Um murmúrio que vem do interior é interpretado por Galdino. — Ela mandou a gente entrar

Entram os três. A cabana, circular, não tem janelas. Apenas vãos indicam as portas de entrada e saída, nos fundos, coberta de sapé, que apresenta algumas falhas. A preta está agachada na obscuridade. Os homens sentem o cheiro forte de fumo misturado com outros elementos indecifráveis. Sentem-se meio tontos, tal a intensidade dos odores.

Pelas paredes de barro estão dependurados os mais estranhos objetos. Coisas de bruxaria? Nem Galdino sabe explicar.

No centro da cabana um braseiro indica que havia fogo até pouco tempo. A velha está agachada defronte às brasas. Magérrima, seus ossos são visíveis, cobertos por pele fina e enrugada. Pouco cabelo, é quase careca. Os fios teimosos são totalmente brancos. O rosto está encarquilhado , os olhos no fundo de escuras órbitas, opacos, o nariz achatado e a boca completamente desprovida de dentes. Coberta de andrajos, é uma figura que está alem do tempo e do espaço: imóvel, muda, os olhos fixos em algum ponto remoto. Encontra-se num transe e aparentemente não se dá conta dos homens.

De repente, a figura imóvel adquire vida. Começa a falar uma linguagem difícil de ser entendida até mesmo por Galdino. Os três ficam atentos ao que ela resmunga.

— Preta véia já espera sunceis faz muitas lua. Para prevenir que sumana de lua cheia não é tempo bom pra subir no morro.

Queima algumas folhas secas nas brasas do chão, que se avivam. Uma fumaça acre enche o ambiente. A velha prossegue falando, na sua fala que não passa de um murmúrio.

— Vem roda-da-lua de noite. Os home da roda-da-lua desce pelo morro de madrugada, leva gado e bicho do mato.

Depois da previsão, coloca colares nos pescoços dos três homens. — Proteção contra os home da roda-da-lua, diz afônica.

Os repórteres saem meio tontos. Não têm certeza do que realmente é realidade e do que é fantasia da velha. Mas têm a evidência dos colares, que permanecem em seus pescoços – colares de pedrinhas estranhas, sementes secas, penas e lascas de madeira de diversas cores.

— Proteção...contra o quê?

— O senhor não ouviu o que ela disse? Protege dos homens que chega nas rodas voadoras.

— Rodas voadoras?

— É, muita gente já viu, por aqui. Chegam tarde da noite, lá por volta da meia-noite, e saem de madrugada, antes de clarear o dia.

— Alguém já viu esses homens das rodas voadoras?

— Ninguém viu.Mas quando eles chegam, some animais do pasto, porcos de mangueiros e até os bichos da roda de casa – galinhas, patos, cachorros e gatos´. É um sumiço geral. O melhor cavalo do Zé Monteiro, um alazão de porte, sumiu. Ninguém deu noticia dele.

O mistério fascina os dois repórteres.

— Vamos subir o morro.

— Já tá tarde, escurecendo. Melhor deixar pra amanhã. — Galdino ficou impressionado com as palavras da velha.

— Vamos hoje mesmo. Se você quiser ficar aqui em baixo, pode.

— A bruxa disse que tá perigoso por essas noites.

— Se “eles” vierem, melhor.

Os repórteres sobem. A trilha é difícil, por vezes têm de se agarrar com as mãos nas pedras e nos troncos das árvores mirradas. Ao chegarem no topo, o sol está se pondo. Uma luz quente e forte pinta de alaranjado a paisagem, que parece incendiar-se. Assentam-se à borda do aplainado, descansando e, ao mesmo tempo, admirando o espetáculo. Quando o sol se põe, são os últimos seres que recebem os poderosos raios, cuja freqüência lhes transmite um vigor inusitado. Absorvem a energia em haustos longos e profundos.

A vista abrange, de um só golpe, todo o descampado que é o topo do Morro da Mesa.

— Justifica o nome. Parece um campo de futebol.

— Só que muito maior.

— Eu diria que deve ter a extensão de uns quatro campos de futebol.

Não há uma única árvore ou arbustos, nada que possa abrigar os dois homens do vento que começa a varrer o platô. Percorrem o topo em toda a extensão. No centro, Eduardo sente que o solo ecoa sob suas passadas. Bate firme o pé no chão

— Parece que é oco — constata, com surpresa. Ao mesmo tempo observa que o capim rasteiro está crestado, completamente seco, como uma estranha cor lilás.

— Tudo muito sobrenatural. — Milton murmura, como se quisesse esconder a impressão.

Resolvem descer pelo outro lado do morro, onde descobrem uma ravina coberta de mato. Quando estão na fimbria do platô, notam uma luz diferente no céu: um pisca-pisca, alternando as cores laranja e violeta.

— Um helicóptero?

— Não ouço nenhum ruído.

O pisca-pisca aumenta, aproximando-se do morro. Os dois pulam dentro da valeta que desce morro abaixo. Escondidos, um ao lado do outro, observam.

O pisca–pisca agora já mais visível, revela-se a borda de uma nave circular.

— Olhaí a “roda voadora” do Galdino. — Cochicha Eduardo;

— Deve ter uns oitenta metros de envergadura. — Milton sussurra.

Surge uma gigantesca nave circular, chata como uma imensa calota de carro, com dezenas de luzes que piscam, em alternância sincrônica, ora laranja, ora violeta.

— Um disco voador — cochicha Eduardo. O outro não responde, fascinado com a visão.

A nave aproxima-se, descendo silenciosamente. Da parte central inferior surge uma protuberância. Um jato de luz tênue é ejetado. A nave permanece imóvel a cerca de dez metros do solo, como que sustentada pela coluna luminosa

— Um sistema de levitação — cochicha Milton, clicando sua câmera foto-digitadora sem parar.

— Anulando a gravidade — completa Eduardo, varrendo com a filmadora toda a extensão ocupada pela nave, focando nos pontos principais.

Por este mesmo tubo de luz descem seres levitando. São entidades incorpóreas, seres etéreos.Translúcidos, movimentam-se graciosamente, mudam de forma constantemente. Quando saem do campo luminescente, tornam-se completamente invisíveis na noite.

Os dois repórteres preocupam-se em fotografar e filmar, mesmo quando nada vêem. E no afã de tudo registrarem, tardiamente percebem que uma rede finíssima desce sobre eles. São envolvidos pela tela fina mas resistente. Tentam levantar-se, e quando o fazem, são puxados na direção da coluna de luz.

— Fomos apanhados! — Eduardo grita, mas sua voz não se expande. Observa Milton, que reluta com força contra a rede.

— Essa “coisa” tem vida! — Constata tardiamente o outro, não percebendo que, na realidade, são sustentados pelos seres etéreos da nave.

São arrastados para debaixo da nave, para dentro da coluna luminosa. A luz, que parecia sr apenas uma suave luminosidade, de repente aumenta de intensidade e força-os a fechar os olhos. Não conseguem mais se comunicar entre si nem se dão conta do ingresso no veículo espacial.

Dentro da nave, a luminosidade arrefece. Vêem as paredes forradas de indicadores digitais, centens de botões de cores variadas. manômetros, monitores de tv, uma parafernália eletrônica. Isso percebem nos poucos momentos de consciência, pois em seguida são deitados em macas, alguma droga é injetada em seus corpos e perdem a consciência.

— Acorda, Milton! Hei, acorda, homem! — Eduardo sacode o amigo pelos ombros.

— Hein? Que foi? — Milton abre os olhos sonolentos.

A madrugada se anuncia na fímbria do horizonte. Mas ainda está escuro na ravina onde os dois homens se encontram, no mesmo local de onde foram abduzidos. Um ao lado do outro. Ambos procuram se orientar. Zonzos. Não vêem mais a nave. Eduardo sente o corpo dolorido. Milton sente latejar a cabeça.

— Puxa, parece que estou numa ressaca das brabas.

— Eu também.

Notam estranhas manchas rosadas nos pulsos, nos pescoços, nas testas (a altura do terceiro olho). Verificam que as roupas estão cortadas em diversos lugares: à altura do umbigo, no baixo ventre, que estão igualmente avermelhados.

— Que merda! Estivemos dentro de uma nave extraterrestre e nada pudemos documentar!

— Para dois repórteres, é o fim da picada.

— Ainda bem que temos algumas fotos e filmes feitos antes de nos aprisionarem.

Voltaram pelo caminho da ida, encontrando Galdino que passara a noite em vigília, no acampamento, temeroso do que estaria acontecendo lá em cima.

Contam o acontecido a Galdino, que se mostrou incrédulo.

— Fiquei aqui em baixo, demorei pra durmir, mas num vi nada no alto do morro.

Milton examina freneticamente sua câmara digital.

— Mas que merda! Não é possível! — Sua exclamação é um grito de agonia.

— Que foi?

— A câmara foi danificada. Não tenho nenhuma foto do disco nem dos fantasmas.

Edu examina sua filmadora.

— Puta que os pariu! Os desgraçados também inutilizaram minha filmadora.

Constatam que tudo o que haviam documentado fora inapelavelmente perdido. A insólita aventura vivida pelos dois não tinha uma foto, um pedaço de filme sequer, que pudesse corroborar o que haviam visto no alto do morro.

— Não temos condições de continuar nosso trabalho. Vamos voltar.

Sentindo-se totalmente derrotados, desanimados, pegam a estrada de volta à capital. Tomado por um sentimento de fracasso, Eduardo sugere (e Milton concorda sem vacilar) :

— Melhor a gente não falar nada dessa nossa experiência. Vamos ser gozados pelos colegas. Um dia a gente volta.

Antonio Roque Gobbo —

São Paulo, 25 de novembro de 2003

Conto # 256

DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/06/2014
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