O outro lado do bem

Abrindo os olhos, a claridade a assustou, com a voz rouca da manhã, sussurrou:

“Onde estou? “

A resposta veio sarcástica:

“Tola, observe, depois pergunte!”

De súbito virou-se para voz, pensou que fosse seu reflexo, entretanto não havia espelho no recinto. Ficaram ali, ambas imóveis, de frente uma para outra, até que o suposto reflexo perguntou:

“Está surpresa, Ayra?”

Sim, Ayra estava surpresa, buscava sua memória, mas a mesma fugia. Girou o tronco, cerrou os olhos, nada havia além de branco, um retângulo branco de paredes fofas e, claro, a garota a sua frente de pele desbotada e cabelos negros. Sem saber o que pensar ou dizer, indagou:

“Como posso te chamar?”

A garota sorriu.

“Fulana, me chame de Fulana! Jurava que fosse perguntar quem sou!”

Ayra deu de ombros:

“Neste momento não sei nem o que eu sou!”

Munida de uma fina expectativa fixou seus olhos de piche na moça:

“Fulana, você sabe quem sou?”

Fulana sorriu e assentiu.

“Sim Ayra, eu sei quem és!”

Ayra suspirou aliviada com o que sua cópia lhe dissera.

“Fulana, continue, e lembre-se que não me recordo de nada!”

“Tudo bem Ayra! Mas sente-se porque a história é longa. Você é voluntaria para testes genéticos da corporação ILUMINES, este projeto específico envolve clonagem, mas não estética, e sim ideológica, para provar que é possível formar humanos idênticos moralmente. Você apresentou ser ética, pura e passiva, o que fez com que a escolhessem, mas Ayra, nos testes descobriram seu lado ruim, suas mentiras, traições e suas ideias revolucionarias. Eles não poderiam utilizar seus genes, foi então que me criaram, eu sou humana, também fui voluntaria, apagaram minhas memórias, fizeram plásticas e depois me transmitiram a pureza e passividade; sou Fulana a Ayra perfeita, e agora eles irão matá-la!”

Fulana fez uma pausa para que Ayra pudesse absorver a narrativa, ela estava perplexa.

“Mas eu não me recordo de nada, por que ceifarão minha vida?”

“Ah, Ayra! Sua maldade está nos genes, agora você pode não sentir, mas em demasiado momento você se rebelará. Aceite, Ayra, você é mau, você faz coisas ruins! O objetivo dessa corporação é criar um mundo melhor, o que pode ser melhor que humanos com a mesma ideologia? Não haverá brigas, todos moralmente corretos e passivos, os donos da ILUMINES irão governar sabiamente e todos serão felizes! Pessoas como você, que perturbam o sossego da nação, não mais existirão.”

Ayra ouvia tudo aquilo e assentia, percebia que o que queriam era o melhor para todos, mas não entendia o porquê de não poder viver aquela utopia também, afinal, até o momento, não foi contra nada. Fulana continuou:

“Ayra, eu sei que sua mente maliciosa já está pensando nos governantes, se eles serão realmente bons ou apenas criarão escravos perfeitos. Não se envergonhe, essas ideias conspiratórias estão no seus genes, você não é culpada, mas também não e inocente.”

Ayra engolia tudo aquilo, mesmo que no momento não sentisse nenhum pingo de revolta, segundo Fulana, uma hora isto despertaria e destruiria os maravilhosos planos da conspiração.

Procurou um canto, sentou e sussurrou.

“Tudo bem, aceito minha condição, Fulana!”

Do outro lado da saleta, Fulana berrou.

“Não! Ayra, você se rendeu muito fácil! Siga seus instintos, grite e mostre a eles que não podem te matar, diga que tentará ser boa, implore por sua vida, use seu lado revolucionário para se salvar!”

A garota sentada olhava para a parede, procurando dentro de si, seu instinto de revolução, mas não havia nada, não sentia nada! Fulana prosseguiu:

“Ayra, se você tentar, talvez possa viver no novo mundo comigo, eu serei sua Irmã e te ensinarei a ser boa, mas se ficar ai sentada, irá morrer sem nem mesmo se lembrar de nada! Ayra agora sentiu uma pontinha de esperança.

“Você me aceitará mesmo como sua Irmã?”

“Claro Ayra! Infelizmente não posso te ajudar, sou Fulana, passiva, não sei me revoltar como eles, não consigo ir contra a vontade deles, não posso lutar, sou perfeita, mas tu Ayra, podes recorrer à vida, vá lá e afronte-os!”

Ayra cerrou os olhos e meneou a cabeça:

“Lutarei, Fulana e tu serás minha irmã!”

Fulana sorriu carinhosamente, repousou sua cabeça no chão macio e observou a sala, sentiu o conforto do ambiente branco: o chão, o teto e as paredes eram fofas, feitos de espuma, pareciam uma grande cama elástica. Olhando para o lado, tentou conter o sorriso, Ayra estava correndo de um lado para o outro, pulando, gritando, e assim passou o resto da tarde. A barriga de ambas roncava, a fome havia chegado e a porta invisível de dentro para fora se abriu; O Senhor do Jaleco branco entrou, calvo, de óculos e acompanhado por mais seis, também de jalecos brancos, mas com uma marcas azuis nos peito. Olhando para o nada, ele disse:

“Chegou a hora Ayra!”

Neste momento, ela gritou, berrou, ajoelhou-se, clamou pela vida, mas olhavam para ela com desprezo. Quatro homens a carregaram, enquanto ela se debatia e exclamava.

“Eu serei boa! Serei como Fulana! Não me mate, eu serei boa, eu serei!”

O Senhor do Jaleco branco viu que Fulana observava a cena, sem demonstrar qualquer sentimento e sorriu maliciosamente.

Ayra foi levada para outra sala, mas nessa não predominava apenas a cor branca, havia também a prata, era uma máquina enorme e lá repousaram o corpo que ainda se contorcia pela vida. Não houve piedade e, depois de entoar um último “Eu serei como Fulana!”, Seu coraçãozinho deixou de bater. E na sala da morte rápida, o Senhor do Jaleco branco esboçava uma careta de vitória, e Fulana no outro cômodo o acompanhava.

“Eu venci!”

Jaleco branco se virou para os companheiros: “Marque uma reunião!”

O auditório estava cheio, havia centenas de Senhores de Terno Preto que aguardavam ansiosos o pronunciamento de Albert, que subiu na tribuna confiante. Depois de obter a atenção de todos, iniciou seu discurso:

-Caríssimos, é com grande honra e felicidade que comunico: Ayra está morta e podemos nos focar no processo de iniciação, neste momento Fulana está na sala branca, sem memória, sem história, sem ideias, não sabe o que foi o que é ou será, cabe a nós moldá-la, ensiná-la! Ela é passiva, um poço de inocência, não discordará de nada, acreditará e fará tudo conforme lhe dissermos.

E todos os Senhores de Ternos Pretos ofertaram seus aplausos, aplausos, aplausos, aplausos...