Projeto Guardião

Rodolfo viu-se diante do trampolim. Aquele era o símbolo do único período de glórias que teve em sua vida, antes de se tornar um dependente do neurotrip.

“Foram bons tempos”, pensou ele. A época em que descobriu sua grande vocação – o salto ornamental.

Tomar impulso balançando sobre a plataforma para depois cair na água como uma faca.

Perfeito.

Era um momento em que não parecia haver mais nada ao redor, quando ele se sentia integrado ao universo. 

Mas sua promissora carreira chegou ao fim com o neurotrip. Aquela era uma droga que ia além de todas as outras ao fazer um ser humano sentir-se como uma divindade, distorcendo todas as noções de tempo e espaço. Era a resposta dos narcos à realidade virtual e aos neuroimplantes que permitiam a criação das mais variadas sensações por meio de impulsos elétricos diretamente dentro do cérebro. Esse

alucinógeno propiciava uma amplificação e complementação dos cenários e sensações criados pelos projetores de RV. Ou seja, tratava-se da combinação perfeita entre impulsos artificiais químicos e elétricos. 

 O neurotrip foi criado por um químico suíço chamado Nathan Herdy.  Seus efeitos incluiam uma sensação descrita por um usuário como a de pairar no espaço sideral e tocar a superfície de estrelas pulsantes que mudavam de cor como semáforos.

Os danos físicos eram consideravelmente menores do que os causados por drogas como a cocaína e o crack. Entretanto, esse LSD hi-tech podia provocar severa dependência física e psicológica e crescente distanciamento da realidade. 

Rodolfo começou a usar doses cavalares do alucinógeno fornecidas por um químico farmacêutico chamado Osvaldo. Era uma opção mais barata e mais segura do que o quase monopólio do Comando Unificado da Capital, apesar da qualidade um pouco inferior. Mas pelo menos você não corria o risco de ficar em dívida com a

máfia. Osvaldo era um pacifista, mas nunca recorreria a métodos extremos para cobrar de seus devedores. Talvez por isso tenha quebrado e mudado de ramo. 

 Rodolfo, em meio a uma crise de abstinência, sem poder contar com os préstimos do bom Osvaldo, que havia encerrado suas atividades, tornou-se cliente assíduo do CUC. E aos poucos foi acumulando uma dívida impagável.

 Bem, mas não era o momento de pensar naquilo. Ali estava o trampolim. Ou talvez não estivesse. Aquilo podia simplesmente ser uma viagem provocada pelo neurotrip. Ou um sonho.

Mas não importava. 

Rodolfo tomou impulso e saltou finalmente. E em microsegundos ele viu o azul da água tornar-se o cinza do asfalto. Não havia mais tempo. Aquela era a última coisa que veria em sua vida.

***

Matias sentou-se diante do monitor. Era um dia frio e chuvoso e ele não pretendia sair de casa. Seu objetivo naquele momento era trabalhar um pouco, garimpando informação. Na verdade, era o que fazia profissionalmente, como agente do Serviço de Inteligência da União Sul Americana. Ou seja, Matias fazia investigações

sobre casos que interessassem aos governos da Confederação, que se estendia da Patagônia até as fronteiras do Caribe. Para isso contava com uma rede de contatos.

Sua principal colaboradora deixou uma mensagem no e-mail:

 “Matias, entre na Brainet e no Virtual Life, seu babaca. Tenho novidades pra você.”

Gabriela trabalhava no Diário Litorâneo, o maior jornal do estado, como repórter. Essa profissão permitia a ela desencavar informações interessantes, que compartilhava com Matias, o qual, por sua vez, as analisava e, se julgasse conveniente, postava nos Wikiarquivos, um serviço de compartilhamento de dados mantido pela

União Sul Americana. Se alguma das instituições no âmbito da confederação fizesse uso da postagem, o que ocorria com frequência, Matias recebia um pagamento adicional ao salário, que dividia meio a meio com sua colaboradora. Aquele era um sistema criado

pelo governo para cortar custos e dinamizar a produção de informações. 

Matias suspirou e conectou-se à Brainet.

Após o aprimoramento dos implantes neurais, tornou-se possível comandar máquinas e computadores sem a contração de um músculo sequer. Tudo era feito apenas por meio de pensamentos, convertidos em sinais e enviados por chips diretamente ligados ao cérebro para receptores em automóveis, aparelhos de som, televisores, aviões

e toda sorte de aparelhos adaptados para àquele tipo de controle.

Depois foi a vez de conectar esses cérebros turbinados em uma rede, a Brainet, que permitia a um indivíduo localizado no Brasil uma conferência com pessoas localizadas em qualquer parte do globo, sem necessidade de falar ou digitar qualquer coisa. Apenas pensando.

Em uma velocidade vertiginosa, essa tecnologia foi se aprimorando, com a geração de interfaces cada vez mais sofisticadas entre chips e neurônios, entre a velha Internet e a novíssima Brainet. Assim era possível simular todo um ambiente virtual diretamente no cérebro. Era como uma combinação entre o Second Life e o Facebook, mas com uma dose de realismo muito maior.

O nome desse sistema é Virtual Life.

Matias fez seu login. Dentro do Virtual Life havia inúmeras “ilhas”, que podiam corresponder a um país, estado ou região. O agente “residia” na Ilha do Brasil, na comunidade dos funcionários públicos. Aquelas eram pessoas tranquilas que levavam seus cachorrinhos para passear e estudavam para concursos. Bons vizinhos; geralmente não incomodam ninguém. 

A casa de Matias na comunidade ara ampla, com uma varanda. Ali também estava seu escritório, além de salas destinadas a alguns de seus inúmeros interesses:arquivos de música, filmes, livros sobre neurotecnologia, astronomia, antropologia, história...

Na vida real o agente morava em um apartamento de 2 quartos no centro de Florianopólis.

Matias “materializou-se” em seu escritório. A física do Virtual Life permitia algumas coisas interessantes, tais como o teletransporte. Só que isso consumia mais créditos. Justamente por isso a maior parte dos residentes usava metrôs que atravessam paisagens cheias de anúncios personalizados de produtos procurados pelos passageiros

ou transeuntes nas redes, os quais se projetam diante deles nas mais variadas cores, formas e tamanhos.

Se existisse interesse pelo anúncio, bastava tocar a projeção para saber mais detalhes e até mesmo efetivar a compra. 

O agente sabia que Gabriela ia usar o teletransporte, e foi o que ela fez naquele momento. A materialização se faz em salas de recepção, com autorização do dono da casa. Se o transporte fosse de um ambiente público para outro, existiam cabines destinadas àquilo. 

Gabriela apareceu.  

O avatar dos usuários é uma cópia de suas imagens reais. A reprodução era quase perfeita. O efeito do teletransporte trazia uma lembrança a Matias:

 – Oi Gabi. A sua entrada me fez lembrar dum seriado antigo, chamado Jornadas nas Estrelas. 

– Jornada o quê? – perguntou ela.

 – Deixa pra lá. Qual é a novidade?

– Ah, sim. É o seguinte: sabe o Rodolfo Zannata, aquele atleta do salto

ornamental que virou um viciado?

– Sim, tô sabendo. O que aconteceu com ele?

– Fez um salto ornamental da cobertura de um prédio de 12 andares.

– Putz! Foi suicídio? 

– Me parece pouco provável, apesar das circunstâncias.  Foi ontem, aqui no Centro. E sabe qual é o detalhe mais interessante disso tudo? Eu entrevistei o cara algumas vezes para uma reportagem que estou fazendo, e tinha uma entrevista marcada para hoje, no hotel onde ele estava hospedado.

– Sobre o quê?

– Escuta, você provavelmente sabe disso, mas o Rodolfo também era hacker. Um colaborador ativo do Wikileaks.

– Sim, mas, que eu saiba, ele largou essa atividade faz um bom tempo.

– Ele obteve muitas informações nesse período, que guardou quase como uma reserva para tempos de necessidade. O ponto de partida da minha reportagem é uma teoria conspiratória sobre um projeto desenvolvido pela Vigilante. Rodolfo ficou receoso de postar algo sobre isso no Wikileaks, quando obteve a informação.

– A empresa de segurança. 

– Que desenvolve tecnologia de ponta para o governo da China, para a

Confederação e mais um bocado de gente. Segundo o Rodolfo, eles estavam envolvidos no desenvolvimento de um software que integraria todos os mecanismos de vigilância que existem hoje espalhados por aí: as câmeras, ondas milimétricas, sistemas de escuta. E inclusive um programa de monitoramento de transmissões feitas via telefone, brainet, internet, sem o conhecimento das pessoas.

Gabriela tomou fôlego e prosseguiu:

– Isso está sendo desenvolvido para a Confederação. Mas não se preocupe, não vou perguntar.

– Você acha que algum dos meus colegas matou o cara?

– É uma suspeita. Minha outra teoria é mais simples: acredito que pode ser dívida de drogas. 

– Não é muito provável. O CUC está construindo uma nova imagem, e isso faz um bom tempo. Atualmente eles querem se identificar como uma opção aos ex-presidiários. Dentro do código da organização, hoje, as únicas coisas que autorizam assassinato são agressões a membros ou familiares de membros. Ou o descumprimento de alguns artigos do Código, inclusive este. A aceitação é condição indispensável para abrir uma franquia. A legalização das atividades dos caras é uma tendência, após todas as transformações do país. A favela deixou de ser aquele espaço onde não havia a presença do Estado. A descriminalização das drogas mais leves, a prevalência do dinheiro virtual e a expertise desenvolvida pela polícia no combate a assaltos levou o CUC a se espraiar, e a organização passou a se apresentar aos presos como uma associação que permite certa inserção e status social. Na realidade, hoje a única atividade ilegal de relevo do CUC é o tráfico de neurotrip, porque é muito lucrativa.

Gabriela sorriu e respondeu:

– Bom, então só nos resta a primeira alternativa...

***

Depois de Gabriela sair, Matias começou a analisar o que tinha em mãos. Claro, ele sabia do projeto, mas não mais do que sua sócia. É para isso que servia a compartimentalização de informações da ASAIN (Agência Sul Americana de Inteligência): manter todos alienados, como peças em uma gigantesca engrenagem, cada uma cumprindo com sua função.  

Em seu escritório no Virtual Life, Matias emitiu um comando vocal:

– Wikileaks. Projeto Guardião.

Surgiram várias projeções a sua frente, com gráficos e textos. O Projeto Guardião era um avançado sistema de escuta que já abrangia 65% das comunicações realizadas por meio dos mais diversos recursos. Ou seja, não era novidade para a comunidade hacker. Aquilo não seria motivo para matar Rodolfo. 

Matias viu um link relacionado que lhe interessava: o título era “Funcionário da Vigilante desaparecido”. Ali dizia que Marcelo Strieber, programador da Vigilante,havia desaparecido, levando valiosas informações sobre projetos de ponta da empresa.

Marcelo era uma lenda naquele meio. Sua carreira começara como desenvolvedor de jogos para RV e ele havia criado, entre outros, Varginha's Alien e Elite Troop, games que se tornaram sucesso absoluto. A habilidade de Strieber na criação de projeções perfeitas, resultado de seu trabalho com os impulsos elétricos cerebrais – a linguagem da mente – trouxera ao programador grande prestígio. E, além de criador, Marcelo notabilizou-se como um grande jogador,

tanto de seus próprios jogos quanto dos criados por outras pessoas.

Era um estrategista brilhante naquelas complexas simulações. Os adversários e aliados nas batalhas o descreviam como alguém capaz de antever os movimentos do adversário. O programador também era descrito como um excêntrico, que colecionava arte africana e espadas japonesas.

Matias estava intrigado. Não era comum alguém trocar de lado assim. A filosofia dos hackers, especialmente dos muito bem sucedidos, geralmente era totalmente avessa ao Estado onipresente.

Por que Strieber trabalharia com a Vigilante? E em quê?

Era hora de descobrir.

***

O Porto Digital de Florianópolis ocupava uma área de 229 hectares na Baía Norte. Lá estavam concentradas dezenas de empresas que atuam no desenho de códigos para computadores e redes, criação de games virtuais e produção audiovisual. 

O Virtual Life teve origem ali, como um pequeno empreendimento. A expansão ao longo dos primeiros anos foi vertiginosa. Depois de grandes aberturas de capital, a sociedade homônima criadora desse mundo virtual, tornou-se uma empresa multinacional de grande influência. 

Darlan Guedes era um dos sócios fundadores do Virtual Life. Já naquela época ele detinha 5% das ações da empresa – o que poderia representar uma aposentadoria muito confortável. Mas ele preferiu continuar a desenvolver projetos na sede da empresa em Florianópolis. 

Matias encontrava-se na representação do Porto Digital no Virtual Life, para falar com esse programador, que trabalhara com Strieber no desenvolvimento de games virtuais na Supersonic.

A Supersonic era uma empresa sediada no Porto Digital de Recife. A pessoa com quem Matias iria falar era um dos únicos amigos realmente próximos dele.

Ao longo do caminho até ali, foi coletando mais informações sobre o

desaparecimento de Strieber. O centro de pesquisa em que trabalhava, situado na Serra Fluminense, havia sido, dias atrás, palco de uma explosão que causara a morte de 4 pesquisadores, além de ferimentos em três deles. Esse fato coincidiu com o desaparecimento de Marcelo.

A secretária de Darlan, que atuava como recepcionista de seu gabinete no Virtual Life, era uma forma de inteligência artificial. Suas feições e formas mudavam de acordo com as preferências registradas nas navegações de residentes e visitantes.

Para Matias, ela assumiu a aparência de uma bela morena, de cintura fina, quadris largos e seios fartos, usava camisa branca, saia preta e sapatos de saltos altos.

– Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo? – perguntou a atendente, com um sorriso.

– Boa tarde, moça. Eu gostaria de conversar com o senhor Darlan, sobre um antigo colega dele, chamado Marcelo Strieber. Meu nome é Matias Lopes e sou agente da ASAIN.

Ela prestou muita atenção e registrou todas aquelas as informações. Em seguida pediu a Matias que aguardasse um momento e saiu apressadamente, equilibrando-se sobre os saltos altos . 

As paredes daquela sala exibiam imagens do Porto Digital real: uma verdadeira cidade futurista, com computadores onipresentes.

Havia também ali anúncios de projetos em andamento: advogados e médicos computadorizados, um jogo online chamando Rock and Roll Band – que permitia a pessoas de diversas partes do mundo montar uma banda, além de ensaiar e compor em tempo real –, simuladores de expedições no espaço sideral...

A secretária voltou e disse que Matias podia entrar. Ele agradeceu e cruzou a porta. Darlan estava ali para recebe-lo, em uma sala de paredes totalmente brancas.

Depois de um cordial aperto de mãos, Darlan pediu licença e emitiu um comando para sua sala:

– Modo Firewall. 

Matias olhou para as paredes e percebeu que elas naquele momento estavam estampadas com um desenho de chamas.

– Engraçado e óbvio demais, não é? Vou tentar pensar em alguma coisa mais impactante, visualmente falando. É só uma forma de saber se o comando realmente foi efetivado. O firewall é uma precaução relacionada ao assunto de nossa conversa.

Gabriela me falou sobre você e sua investigação – comentou Darlan.

– Senhor Darlan, acredito que seu antigo colega esteja envolvido de alguma forma em assassinato e sabotagem – respondeu Matias.

– Penso a mesma coisa. E a propósito, pode me chamar só de Darlan. 

– Desculpe. Quais são os motivos que levam você a acreditar nisso?

– É uma longa história. Eu me tornei um grande amigo dele quando trabalhamos na Supersonic. Fiquei sabendo que Marcelo era filho de militares, e que seguiu durante algum tempo a mesma carreira, de forma brilhante. Foi rapidamente galgando patentes, e tornou-se coronel. Inclusive, a maior parte do realismo dos jogos em que trabalhamos se deve a sua experiência acumulada em treinamentos e combates reais. 

– E por que ele saiu do exército?

– Porque queria desenvolver coisas novas. Ele aprendeu muito sobre

neurotecnologia, desenho de código, linguagem do cérebro, e pretendia empregar esses conhecimentos em algum empreendimento que trouxesse a ele alguma realização intelectual. Era uma forma de aproveitar a efervescência da nova economia que surgiu depois do advento das interfaces mente-máquina. No exército não existia nenhum espaço pra isso.

– Diante disso, a pergunta que não quer calar é: por que um cara tão bem sucedido profissionalmente de repente decide trabalhar em um projeto financiado pelo Estado para espionar pessoas? E depois muda de ideia novamente, e explode seu ambiente de trabalho com seus colegas dentro? – indagou o visitante.

– Esse é o ponto: Marcelo estava no Projeto Guardião como um agente

infiltrado. Ele pretendia obter todas as informações sobre o programa e depois denunciá-lo. Toda semana ele me enviava cópias de anotações suas sobre o andamento do projeto, que apresenta graves ilegalidades. Mas alguma coisa no meio do caminho deu errado, e Marcelo perdeu completamente sua sanidade mental. Criei esse firewall que estamos usando agora, além de vários sistemas de defesas, porque ele tentou invadir nosso sistema. A verdade é que o Guardião vai muito além daquilo que foi noticiado pelo Wikileaks. Isso os americanos fazem há mais de 40 anos: é o sistema Echélon, que

já monitorava as transmissões via celular, internet, telefone e fax. É de se supor que com a brainet o sistema funcione da mesma forma, pois a rede também se baseia em transmissões via satélite, fibra ótica e rádio. A grande diferença nessa rede de cérebros consiste obviamente nos emissores e receptores. E é nisso que o Projeto Guardião vem trabalhando. Marcelo disse que havia uma divisão rígida de tarefas para cada centro envolvido, e que o objetivo de sua equipe era identificar padrões mentais de pessoas prestes a praticar certas condutas criminosas, de modo a criar a capacidade de prevenir crimes violentos. As implicações disso são óbvias: o Guardião vai além do que está sendo transmitido, hackeando cérebros. É, literalmente, um invasor de mentes. Hoje isso pode abranger a maioria da população da Confederação, pois quem considera os implantes muito invasivos usa os sensores, que também oferecem acesso às ondas cerebrais, de modo ligeiramente menos preciso.

Matias ouvia a tudo com muita atenção.

 – Assim, o objetivo traçado para essa unidade constitui uma séria ameaça à privacidade e à liberdade das pessoas. Tudo isso soa como um pretexto para o desenvolvimento da ferramenta definitiva de espionagem e guerra neurotecnológica. De qualquer forma, Strieber estava trabalhando nesses padrões mentais. Ele vasculhava o cérebro de criminosos presos, em liberdade condicional ou sob investigação, em busca desses traços identificadores. Numa dessas incursões, entrou na mente de Gilberto Miranda. Isso parece ter sido fatal.

– O Bomba-Relógio – observou Matias.

– Exatamente. O terrorista que atacou centros de pesquisa da Embrapa, Embraer, Monsanto, Petrobrás, e Neurotech, entre outras. 

– Gilberto é um herdeiro das ideias e do modus operandi de Theodore

Kaczynski, o Unabomber, que há quarenta anos enviou bombas a alvos bem determinados: cientistas, companhias aéreas e universidades, nos EUA. Unabomber era um matemático brilhante. E possuía um conjunto muito bem articulado de ideias, que realmente faziam sentido. Ele escreveu um manifesto que traz uma crítica dura à ideia de progresso. Gilberto, além de um grande físico teórico, é um pensador que aprofundou as ideias de seu antecessor. Seus textos, escritos na cadeia, são ainda mais coerentes do que os de Kaczynski. Sua principal crítica, além do aspecto ambiental e da escravização do ser humano pela tecnologia, é que esta não trouxe ainda a formação de

uma comunidade humana realmente unificada: estados ainda gastam bilhões e bilhões em pesquisas para se proteger de “inimigos externos”. Eu concordo com ele em praticamente tudo, menos no que se refere ao método. Explodir coisas e pessoas não é nada coerente com um pensamento humanista.

– Concordo com você. Bem, Marcelo, na véspera de sua “visita” à mente de Gilberto, enviou o último de seus registros. Acredito que o contato com a mente do Bomba-Relógio o transtornou totalmente e ele não estava preparado para isso. E acabou assumindo as mesmas ideias e modo de agir de Gilberto. 

– Isso explica muita coisa. Rodolfo Zanatta sabia alguma coisa sobre o

conhecimento adquirido por Marcelo com o projeto e queria vender a informação ao CUC. Strieber não gostou e invadiu o sistema de segurança pessoal de Rodolfo, desativando os mecanismos de alarme em situação de perigo. Mais que isso: no meio das pesquisas, Gilberto deve ter acessado dados das outras unidades e descoberto alguma técnica desenvolvida pelo projeto para projetar imagens falsas na mente das pessoas, sem que elas percebam, e é justamente essa a informação mais valiosa. É provável que ele tenha criado também um modo de manipular impulsos elétricos para criar realidades virtuais de modo igualmente

imperceptível. Após adquirir essa habilidade, Marcelo gerou alguma ilusão que levou Rodolfo a se jogar do prédio. Um crime perfeito, portanto. 

– É uma boa hipótese, considerando os registros dele, e toda sua história. Marcelo tem uma longa experiência com a linguagem do cérebro e com simulações. 

– Bem, tudo isso nos leva à próxima pergunta: onde ele pode estar?

– Acredito que já possuo a resposta para essa pergunta. Com licença.

Darlan se virou para um painel ao lado e emitiu mais um comando:

– Rastreador. Resultado da última busca. 

Imediatamente o painel exibiu do lado esquerdo um relatório com os parâmetros usados, e do direito um mapa, trazendo a localização de Strieber com 99,9% de chances de acerto. 

– Matias, nosso amigo está a 93 quilômetros de Florianópolis, em Imbituba. 

***

 

O tráfego na na Rodovia Federal estava pesado. Justamente por isso aquela era uma das vias inteligentes da União Sul Americana: computadores, auxiliados por cravos magnéticos ao longo da pista, assumiam o controle dos carros.

Matias seguiu em direção a Imbituba, em sua Yamaha com rodas inteligentes. Aquela belezinha era capaz de fazer mais de 200 quilômetros por hora na pista mais irregular concebida pela imaginação humana. As rodas e a aerodinâmica se adaptavam ao

terreno, e recebiam informações por meio de sensores. 

Muitos motoristas olhavam feio para o agente. Matias estava burlando o sistema de controle da estrada para ultrapassar os outros veículos.

Ele intuiu que não dispunha de muito tempo. Strieber logo iria sumir do mapa, levando a tiracolo uma verdadeira bomba atômica. 

Em novas buscas em seus arquivos, Matias encontrou registros referentes a projetos de invasão mental por meio da brainet: EUA, China e União Europeia já estariam em um estágio avançado. O exército estadunidense inclusive possuiria um destacamento especializado em projeção de alucinações nas tropas inimigas, que agiria como uma mente coletiva. Os outros concorrentes não ficariam muito atrás.

E naquele momento, ao que tudo indicava, a União Sul Americana estava entrando na briga.

***

O agente federal Fabiano e sua equipe estavam no Hotel Águas Claras. O batalhão de operações especiais da PF em Florianópolis recebeu uma missão: um terrorista procurado pelos serviços de inteligência encontrava-se em Imbituba, estava hospedado ali, e eles devem prendê-lo. Tratava-se de Marcelo Strieber, um indivíduo considerado extremamente perigoso.

Era inverno e naquela estação do ano o hotel ficava praticamente vazio. Na verdade, o único hóspede naquele momento era Strieber, conforme informado pelo atendente aos policiais. Aquilo facilitou a operação. A única pessoa a ser deslocada dali era, portanto, o empregado. 

Em instantes os policiais estavam diante do quarto de Marcelo: o 405.

Eles se posicionam. Mateus e André fizeram frente. A conexão neural facilitava muito a operação, dispensando os gestos outrora empregados nessas situações. Os policiais usavam coletes e capacetes. Todos se prepararam para a contagem, quando, de repente, Mateus viu ao seu lado, em vez de André, Strieber apontando uma arma para os

outros integrantes.

Ele reagiu imediatamente baleando o alvo, e em seguida, sentiu em suas costas um forte impacto. Seus colegas se jogaram contra ele, desarmando-o e o imobilizando.

Foi quando Mateus viu, no chão, não Strieber, mas André.

Ninguém entendeu o que estava acontecendo. 

Subitamente ouviu-se um estrondo ensurdecedor.

A porta do quarto estava destruída e havia muita fumaça no local.

A explosão jogara todos no chão. Carlos e Claúdio conseguiram se posicionar e apontaram seus fuzis para a porta. Naquele momento foram surpreendidos por Strieber, o qual, em uma fração de segundos, surgiu em meio à fumaça golpeando suas cabeças, derrubando-os novamente.

Ele estava trajando um exoequeleto blindado Mapinguari, a mais nova

engenhoca produzida pela indústria bélica brasileira. 

Marcelo correu e se jogou pela janela. Fabiano foi até ela e disparou seguidas vezes contra o pesquisador, que estava descendo do prédio com sua armadura aderente.Naquele momento Fabiano percebeu que a tela de seus óculos não acusava nenhuma fonte de calor compatível com um mapinguari na direção dos tiros.

Strieber pregara-lhes mais uma peça: ele não estava descendo por aquele lado. 

***

Matias chegou a Imbituba, depois de percorrer a distância entre as duas cidades em meia hora. Ele sabia que algo grande estava acontecendo ali. O rastreador fornecido por Darlan indicava o Hotel Águas Claras como o ponto em que encontraria Strieber.

Mas naquele momento o sensor apontava seu alvo movendo-se velozmente em direção ao Porto. Um dos seus programas de apoio lhe informou que um mapinguari estava sendo utilizado para aquilo.

Ele sorriu. O agente havia encontrado, há um mês, uma falha no sistema operacional do exoesqueleto, e ganhou uma bolada vendendo aquele dado aos Wikiarquivos. Desde então a Avibrax, fabricante da engenhoca, estava trabalhando em uma solução para o problema. 

O mapinguari em segundos iria cruzar o caminho dele. Era tempo suficiente para Matias invadir sua unidade de controle e infectar o sistema operacional da máquina com uma poderosa carga de vírus. Logo a armadura se tornaria inútil, ao menos durante algumas horas.

 Dito e feito. Matias já podia ver Strieber 40 metros a sua frente, desacelerando cada vez mais. Foi quando ele percebeu que o mesmo estava acontecendo com sua moto. O visor notificava que havia uma falha operacional. Ao mesmo tempo, o Firewall também fornecido por Darlan para proteger a conexão neural do agente deu um sinal de

alerta: a ameaça Strieber foi detectada.

Matias saltou da moto poucos instantes antes desta travar de vez, e correu em direção ao exoesqueleto, do qual Strieber acaba de ejetar. O agente sacou sua pistola e apontou para Marcelo, dizendo:

– Acabou, Strieber. Mãos na cabeça.

O pesquisador, de costas para Matias, começou a levantar as mãos, quando, em um movimento ágil, girou o corpo e o desarmou. Em seguida ele se jogou o contra seu oponente, fazendo-o se chocar contra  a parede de um bar abandonado.

Matias reagiu dando-lhe uma cotovelada nas costas, livrando-se do adversário.

Quando estava prestes a acertar outro golpe, Marcelo o atingiu no flanco esquerdo. Seu punho se elevou novamente para desferir outro golpe, mas desta vez foi bloqueado por Matias, que lhe acertou uma cabeçada, fazendo-o desequilibrar-se e cair.

O agente investiu contra ele, mas Marcelo girou no chão desferindo um chute rasteiro, que o derrubou. 

No chão, Matias ouviu algo cair. O som era o de uma lata.

Então ele viu uma nuvem de fumaça se formar e encobrir sua visão. Ele tentou levantar-se, mas sentiu o corpo afundando, como se estivesse em um pântano. Em mais alguns segundos, esse pântano transformou-se em um abismo e Matias sentiu seu corpo em queda livre. 

***

Matias acordou em um quarto de hospital. Naquele momento ele podia ver Gabriela ao pé da cama, lendo alguma coisa. Quando ela o viu acordado, abriu um sorriso:

– Oi Matias! Você tá se sentindo bem?

– Mais ou menos. O que aconteceu? Há quanto tempo estou aqui?

– Há um dia. Você inalou uma forte dose de alucinógenos. Marcelo usou uma bomba de neurotrip, em forma gasosa, contra você. Foi o que o Darlan me disse.

– E onde o Strieber está?

– Ninguém sabe. Os federais disseram que ele sumiu sem deixar vestígios.

– Claro, ele deve ter usado algumas habilidades dele pra sumir. 

– Que habilidades?

 – É uma longa história. Quando eu sair daqui, almoçamos juntos e eu te conto.

– Os médicos comentaram que depois da desintoxicação ainda demoraria um pouco pra te dar alta. Mas você parece bem. 

Gabriela caminhou em direção à cabeceira da cama, se inclinou e lhe deu um beijo no rosto.

– Se recupera logo, querido. Se precisar de alguma coisa, é só me ligar.

– Obrigado, Gabi. O que é isso que você está lendo?

– Isso? Ah, o jornal. É da concorrência. Pode ficar com ele.

Gabriela lhe entregou o tablet que tinha nas mãos, se despediu mais uma vez e saiu. Matias começou a folhear a Gazeta Popular e algo chamou a sua atenção. Ele voltou uma página e viu, estampado em letras garrafais:

GILBERTO MIRANDA, O TERRORISTA MAIS CONHECIDO COMO

BOMBA RELÓGIO, AINDA SE ENCONTRA EM COMA NO HOSPITAL FEDERAL.

MÉDICOS DIZEM QUE SE TRATA DE DOENÇA DESCONHECIDA.

E, neste momento, para Matias, tudo pareceu fazer sentido.

***

Um antigo submarino nuclear russo, o Severodvinsk, cruzou o oceano Atlântico, em direção à África do Sul. Na cabine de comando, dois homens sentados conversavam.

Um deles era o comandante. O outro parecia ser Marcelo Strieber.

O comandante disse a ele, em tom de deboche:

– E então, meu caro, eles te deram algum trabalho, hein? O araponga e os policiais. 

– Nada muito fora do que eu havia planejado. Não sei como chegaram até lá, mas não puderam fazer muita coisa. O araponga até me forneceu alguns dados bem úteis sobre os exoesqueletos. O mapinguari. 

– E quanto ao seu velho corpo? Vai deixar ele lá? 

– Não tem mais serventia pra mim. Esse aqui é bem mais jovem e servirá perfeitamente para nosso projeto. Logo faremos todo o mundo deles ruir.

  – Certamente faremos, Gilberto. Ou você prefere ser chamado de Bomba Relógio?