O corpo de cristal

Os raios iluminavam o céu colorido em tons de cinza chumbo e o cheiro de ozônio revelava as primeiras gotículas de chuva. Ela corria a procura de abrigo, pois aquela chuva há tempos não lhe causava mais frescor e sim causava-lhe ardor na pele. Era assim há anos, talvez séculos, não saberia dizer.

Abrigou-se em algumas telhas em um beco escuro, observando a blusa de malha grossa desfazer-se enquanto os pingos lhe caiam, penetrando as camadas de tecido abundante, revelando a pele curtida de sol. Respirou fundo o calor do asfalto, o ar quente que lhe invadia os pulmões, o vapor que subia do chão, o cheiro de terra seca e poluída sempre faziam seus olhos lacrimejarem. Segurava nas mãos o pagamento do mês, uma sacola de ração e um pequeno recipiente com água, o suficiente para trinta dias. Trabalhava em uma produtora de ração, e seu salário lhe era pago com o que produzia, tudo isso veio depois da crise hídrica mundial. A ração tornou-se o único alimento e a água um item valioso, tanto para sobrevivência quanto para transações comerciais.

Uma pequena gota lhe caiu a nuca, criando uma ferida vermelha, os cabelos cortados muito curtos não a protegiam. Levou as mãos ao ferimento sentindo o sangue ralo entre os dedos. Súbito, o céu ribombou mais uma vez acima dela e um clarão de luz a cegou, um raio rasgou o céu iluminando por alguns segundos o beco. Quando abriu os olhos, fios e pedaços de concreto estavam espalhados e havia um enorme círculo cravado profundamente no chão a alguns metros de onde estava. Uma luz emanava de seu interior em um vórtice de luz e sombra, fazendo o ar rodopiar ao seu redor. Aproximou-se como por encanto, em seus olhos refletiam matizes de luzes translúcidas em tons variados que jamais vira antes, vertiam em ondas púrpuras e douradas iluminado a noite sombria. No fundo do concreto rachado uma criatura estava adormecida envolta em luzes ofuscantes, parecia-lhe uma figura humana, quase diáfana da qual não podia ver a face, repousava com o tronco estendido e os braços sobre o dorso, não havia cabelos ou traços distintos pois parecia-lhe feito apenas de luz.

Podia ver ao menos que seu corpo era similar a um material que viu apenas uma vez em sua vida, cristal, assim imaginou. E nela, partes do universo, galáxias, nebulosas e estrelas distantes, cometas e luzes solares podiam ser vistas refletidas em sua pele.

Aquilo era impossível, sua expressão era de puro encanto com o corpo de cristal que mal notou a chuva que novamente lhe salpicava a carne. Ajoelhou-se como uma criança que se coloca a frente de um brinquedo extraordinário, em um misto de medo e fascinação, seus olhos observaram o mover de estrelas e galáxias que logo se transmutaram em outras imagens. Em seguida reconheceu, era o seu mundo, mas em uma época distante, seus olhos captaram imagens desconexas: o brilho do sol iluminando flores e frutos, pássaros radiantes revoavam aos bandos em um céu muito azul, diferente do cinza chumbo que via todas as manhãs, da terra escura brotos verdes surgiam em busca de ar, rios de águas cristalinas brotavam entre rochas, a chuva molhando a terra sem feri-la, eram imagens que virá apenas nos livros. Eram lendas de um passado distante e destruído. Logo novas imagens: homens sem rosto, aos milhares, marchando com armas em punho, ao longe explosões e corpos tombando em fila e ocupando covas. Jovens amarrados são fuzilados e o sangue jorra pela terra, maculando-a, molhando as botas dos generais. Uma criança esquálida devora um cão morto. Um menino injeta uma seringa no braço e seus olhos se apagam. É a perda da inocência. Rios negros devolvem a sujeira caudalosa que lhe foi dada por séculos, animais se decompõem em suas margens e em suas entranhas, lixo. Os rios secam e a sede chega. O sol abrasa a terra. Homens e mulheres marcham em busca da terra prometida e morrem aos milhares, cadáveres e mais cadáveres em uma trilha sem fim. A comida escassa. As grandes guerras eclodem por motivos torpes. O último papa morre pelas mãos de um fanático. Muitas covas para cavar. Uma estrela vermelha risca o céu em prenúncio do fim, mas é o início do verdadeiro tormento. Doenças acometem multidões isoladas como gado em galpões, são abatidos. Não há mais razão apenas a selvageria.

Seus olhos agitados e repletos de lágrimas observam a tudo o ocorreu e o que ainda estava por vir, que mal percebe a figura translúcida desperta a observá-la com curiosidade. Ao notar, afastou-se assustada como por impulso, mas a criatura a segurava com uma das mãos. Sentiu uma força descomunal e a frieza oriunda da criatura. Seus olhos eram muito brilhantes de um azul iridescente dos quais emanavam de sua íris tons dourados flamejantes. Agora frente à frente a criatura, podia ver os traços finos de sua face, o nariz simétrico e os lábios delineados em um rosto triangular e masculino. Pode observar o dorso e o restante do corpo no entanto em proporções descomunais e inumanas. Suas mãos lhe pareciam mais como gelo ou feitas de vidro, no entanto a segurava com extrema delicadeza.

Do centro de seus olhos, novas imagens surgiram, mas desta vez estavam em sua mente, um raio trespassou seu cérebro lhe causando uma dor intensa. Eram muitos iguais a ele reunidos em torno de um globo azul pulsante que estava doente, apresentando milhões de fissuras em sua extensão. Ao lado, uma urna funerária extraordinária e dourada. A criatura lhe falou em voz metálica.

- Seu Deus está morto. Vocês mataram nosso pai – sua voz estava carregada de uma tristeza mecânica mas perceptível e ouvi-la era perturbador, pois era como ouvir diversas estações de rádio dizendo a mesma coisa ao mesmo tempo – processo de extinção iniciado...

Ela sabia. O fim estava próximo. Era a extinção de toda a sua malfada raça. Quantas vezes não havia sonhado com isso, uma maneira de acabar com todo o sofrimento imposto por gerações anteriores. Sua existência acabaria ali, não haveria mais noites de fome, dias de frio ou sede. Não haveria mais incertezas. Não haveria mais um futuro a que temer. Sem oferecer resistência ela soltou os braços e a criatura compreendeu. Ele a tomou sem resistência compreendendo o sacrifício, e com sua própria força desfez cada átomo que a constitua. Pequenas partículas luminosas de carbono se desintegravam, seu corpo se desfazia a inexorável inexistência. Sentiu seu espirito calmo e todas as aflições do mundo se desfizeram com ela enquanto sua imagem se diluía em um sorriso. Seus últimos átomos luminosos ascenderam ao céu, penetrando entre as nuvens escuras buscando as estrelas do firmamento. Ao fim, a criatura elevou-se e abriu suas asas feitas de prata. Observou os raios que riscavam o céu em fúria no horizonte. O exército celeste havia chegado para vingar a morte do seu criador.

Este era o ano de 2020, o ano do fim.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 15/02/2015
Código do texto: T5137708
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