N-19 (Parte 4)

Os dias iam e vinham e a noção de tempo cada vez mais se perdia. Sei que mais alguns meses haviam passado. A fome e a sede eram sempre as maiores preocupações dos sobreviventes. Já tínhamos sido reduzidos em numero e nossa moral estava cada vez mais abatida. Um de nós havia morrido por causa de um rompante de loucura que o fez correr de mãos limpas contra uma manada de criaturas, que conseqüentemente o devoraram. Isso nos salvou, mas ninguém é herói a esse ponto. Praticamente não dormíamos, pois mesmo quando nos alojávamos em locais relativamente seguros, éramos acometidos por pesadelos e sustos freqüentes. Esse estado de alerta exacerbado era muito estressante e nos enterrava numa cova emocional cada vez mais funda. Não éramos como os heróis dos filmes, fortes e impávidos. Não. Nós muitas vezes chorávamos e sentíamos fome. Lembrávamos com dor dos que perdemos. Tremíamos por frio ou medo. Sempre fomos humanos. Mas era justamente isso que definia a grandiosidade dos nossos atos. A cada emboscada que nós sobrevivíamos, cada inimigo que subjugávamos era um feito exponencial. Chegou um dia que sentimos a necessidade de mais um deslocamento do grupo e isso era sempre muito complicado. Implicava em motores ligados e todo o nosso espólio reunido em um só lugar. Isso nos deixava muito apreensivos, pois podíamos ser abordados por um grupo maior, ou uma quantidade imensa de infectados e perderíamos toda a pouca estrutura que ainda tínhamos. Sempre enviávamos dois batedores com motocicletas na frente para nos avisar de algo que vissem de anormal. Iniciamos a empreitada e seguimos em direção ao norte. Os batedores aceleraram bem a frente de nós, talvez uns cinco quilômetros para nos manter seguros. As pistas paralelas às vias principais eram mais transitáveis e conseguíamos assim, avançar de forma mais rápida. Em momentos fracionados eu me imaginava em uma viagem corriqueira, das que eram feitas antes do desastre. A paisagem suburbana não havia mudado muito. Era pista e vegetação.

Depois de rodarmos durante umas três horas, avistamos a entrada de um povoado, evidentemente desabitado. Paramos o comboio a certa distancia para nos aproximarmos sorrateiramente. Não havia indícios de fogo ou qualquer outro sinal que mostrasse a presença recente de algum outro grupo humano. Não avistamos também nenhum infectado por perto ou o som que eles produziam ao longe. A teoria mais aceitável é que todos daquele lugar haviam fugido antes de se transformarem e ninguém jamais retornou. Começamos a nos instalar e definir expedições em busca de suprimentos. Encontramos numa cocheira, um cavalo que tinha sido deixado pra trás. O animal não teve sorte. Ele estava com o N-19 e já manifestava os sintomas das mutações. Um tiro foi dado entre seus olhos, o livrando assim, de mais sofrimento. Montamos uma barricada com um ônibus escolar inutilizado pelo tempo, fechando a rua em um dos lados. Forramos com palhas para não chamar atenção de nenhum possível inimigo. Encontramos água num poço e alguns grãos de milho e feijão estocados num deposito. Um pouco acima numa prateleira acharam algumas garrafas de vinho. Naquela noite, todos nós jantamos, bebemos e conversamos ao redor de uma fogueira, como faziam os antigos. O alerta constante em que vivíamos, pela primeira vez parecia ser quebrado ou ao menos, diminuído pelo conforto trazido pelo fogo. Sempre fomos humanos.

Max Machado
Enviado por Max Machado em 14/04/2015
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