Projeto Cidade Transversal - A Travessia

Eu gostaria de contar a vocês uma história. Um conto de como cheguei a este local e, dia após dia, noite após noite, encontro-me absorto sobre todas as nefastas intervenções acerca da realidade e de todas as realidades.

Ainda não compreendo bem todas as vicissitudes inerentes que existem aqui e de como elas, de tempos em tempos, mudam completamente de um estado para o outro, mas esta é a natureza deste lugar. Nada, nunca, dura tempo demais ou tempo de menos, todos estão aqui para fazerem algo, mesmo que estes não saibam o que vão fazer até o último segundo de sua estadia aqui.

Vim para este lugar não de uma forma física. Não se pode entrar aqui apenas por uma estrada, um elevador, pegando um avião ou um barco, mesmo que, literalmente, você precise de algo para viajar para este lugar. Mas este algo não é a sua pessoa que escolhe, mas o lugar em si.

Por tanto tempo que passei aqui e que ainda passo, continuo a mesmerizar-me com a condição antinatural do lugar. Da quantidade absurda de pessoas, prédios, ruas, livros, carros e uma infinidade ainda maior de horizontes... como a Praia Além do Horizonte ou os Campos de Hefastus. Nem por uma vida inteira, mesmo que esta fosse imortal, haveria a possibilidade de visitar todos os lugares desta Cidade.

Sim, este lugar onde eu estou é o objeto de estudo de centenas de milhares de pessoas de uma centena de milhares de multiversos desconhecidos entre si, ou não. Mas todos chegam a mesma conclusão que alguma força muito poderosa criou este mundo, este plano existencial, para que fosse conduzido alguma experiência que está além das nossas capacidades mundanas de entendimento. Mas todos aqui, sejam experts ou não, tem a mesma dedução. A quem é chamado não se pode negar o mesmo, vindo obrigatoriamente para este lugar para achar uma solução ou resolução para com o seu chamado, para, depois, ir-se para algum outro lugar.

E é por isto que eu estou aqui a muitos ciclos, a muitas décadas, a dias e noites, semanas, meses, horas, minutos, trinta e dois anos para ser mais exato, no qual tempo não me falta para compreender as nuances do lugar, mas ainda não consegui enxergar de forma concreta a minha missão para que eu possa acabá-la e sair daqui.

Não que este lugar, esta Cidade, seja um lugar ruim, muito pelo contrário, de tempos em tempos temos algo bombástico, interessante que me faz abrir os olhos para observar o que ocorre e pessoas que vem e vão, como gotas de chuva, folhas ao vento, lágrimas num oceano.

Todos nós somos um caso eventual na Cidade, não vivemos nela, apenas estamos de passagem. Alguns, no entanto, parecem estar aqui a tanto tempo quanto este local fora construído, mas outros são breves, perpassam por nossas vidas, arrancam tudo o que temos dentro de si e vão-se rápidos como relâmpagos e trovões.

Estar aqui é como não estar aqui por muito tempo. Sinto a necessidade de fazer algo mais, mas estou preso com a dissonância incompleta da minha vida por não encontrar os meios necessários para entender, compreender, absolver o que eu preciso fazer para seguir em frente. Enquanto isto ocorre, estou parado, como uma placa de NÃO ESTACIONADO de algum multiverso qualquer, fixo no mesmo lugar por toda uma eternidade.

Gostaria de poder fazer mais, ser algo mais, ter algo mais, mas preso eu estou num ciclo de vícios e tendências que impus a mim mesmo, onde, a cada temporada nova, os mesmos problemas voltam e outros tanto mais velhos estão aí a bater na porta. Será que eu me tornarei um cidadão velho, decrépito, inconsciente de si, como tantos outros aqui na Cidade?

Alguns de vocês, que chegaram tão distante neste meu relato, devem estar se perguntando como era a minha outra vida? Assim como muitos de vocês que puseram as mãos neste artefato, que o marinheiro disse que seria possível chegar em algum ponto do meu multiverso, vivi uma vida de altos e baixos, muitas vezes mais baixos do que altos.

Não sonhava com muito, mas sonhava bastante, mas quase todos os sonhos eram-me aquebrantados por decisões erradas minhas, ou por momentos dificeis na vida de todos. Enquanto muitos seguiam em frente, eu ficava para trás, sentia-me um peso morto daquilo que havia me tornado. Uma sombra daquilo que imaginava.

A vida dava-me os limões, mas eu não conseguia fazer a limonada. Então, findo a mim, encontrando-me no quarto, abafado, obscuro, sem qualquer sentido, sentimento, apenas uma dor vazia entre a alma e coração... então aconteceu.

Cheguei a este local, vi suas maravilhas, senti o cheiro das emoções, observei milagres acontecerem e seres resolvendo os seus problemas, mas continuo aqui...

Na Cidade Transversal.