A Maldição

Já se fazia três semanas que eu o observava. Encostada no muro do beco próximo a sua casa eu o via saindo de casa para por o lixo para fora, já era bem tarde e novamente vi uma ótima oportunidade para me alimentar, porém, mais uma vez a maldição me fez vacilar mesmo que eu insistisse em não acreditar nela...

Há exatamente nove décadas atrás, depois de duzentos anos de existência, um bruxo ousou me desafiar com uma maldição a qual gargalhei antes de matá-lo por sua petulância, algumas semanas depois meu então humano de estimação me avisará que uma bruxa me procurava, dizia para todos que encontrava que ela seria a causa da morte da criatura que vinha causando uma carnificina na vila.

-- Deixe que venha, ou melhor, traga ela até aqui.

Meu humano que estava sob hipnose não demorou a cumprir o que pedira, no dia seguinte eu a tinha na minha frente e não resisti em perguntar como ela pretendia acabar com meus dias de matança, sua voz era fina e irritante para os meus ouvidos sensíveis, o que contribui para que eu não esqueça suas palavras:

-- Tu pensas que já é uma criatura amaldiçoada, e de fato é, mas isso não te põe impune a outras magias. Matou meu marido por ousar te desafiar, e hoje venho cumprir o que ele partiu sem fazer... Haverá um dia em que ao olhar nos olhos de um humano sentirá algo parecido como quando seu coração batia, será mais forte que uma paixão, o desejo do seu sangue será insuportável, mas será igualmente mortal. Quando provar de seu sangue, sentirá como se fosse uma droga instantaneamente viciante, se o matar será assombrada eternamente por sua lembrança. Terá que fazer uma escolha, vampira, e eu espero que seja a sua morte!

Antes que terminasse de falar as últimas palavras eu já estava em seu pescoço, sangue bruxo sempre fora mais saboroso e o dela era magnífico, enquanto saboreava sua vida esvaindo - se do seu corpo, senti minhas costas queimarem me fazendo cair junto com seu corpo, era como se uma estaca de madeira desenhasse na minha carne, toquei onde doía e senti na ponta dos meus dedos o desenho do que parecia ser um símbolo antigo e só quando vi a bruxa morta com um sorriso nos lábios entendi. A maldição já havia sido lançada, a vida dela era o selo e ela tinha ido ali justamente para que eu o quebrasse. Praguejando, mandei retirarem o seu corpo de lá e nunca mais voltei a pensar naquela maldição, quando me lembrava dela tratava com descrença, nunca acreditei naquela moça e nunca achei que minha imortalidade pudesse estar tão ameaçada. Como zombaria, sempre olhava nos olhos das minhas presas já mortas, arrancava alguns quando sentia bruxas por perto para que elas entendessem e foi assim que cheguei naquela cidade de nome estranho e aparência simples demais, me hospedei em uma pensão e tratei de fazer algumas "amizades" humanas para encobrir meus rastros.

Três dias depois, voltando de uma corrida noturna por volta da cidade, encontrei um homem em um dos becos mais escuros da cidade manipulando uma seringa, parecia agitado e raquítico, o que me fez deduzir que eram drogas, mas antes que ele a aplicasse provando minha teoria, eu já estava segurando seu braço para trás junto com um puxão no seu cabelo expondo seu pescoço onde cravei meus dentes sugando seu sangue O+. Sorrio quando termino saboreando meu tipo sanguíneo preferido quando sinto uma respiração no início do beco, olho para trás e vejo uma figura masculina correndo, coloquei o corpo do homem nas costas e corri atrás do menino até a sua casa, ele tomou cuidado para passar nos pontos iluminados da cidade e todos na rua o cumprimentavam. Isso significa que sua morte chamaria muita atenção, então teria que usar a hipnose, mas precisava me livrar desse corpo então segui até o rio e o joguei lá. O relógio da praça marcava meia noite quando voltei à casa do garoto curioso, subi pela árvore até alcançar sua janela, eu a abri e de imediato me lembrei do dia anterior enquanto eu passeava na praça conheci a dona daquela casa que me convidou a entrar para tomar um suco enquanto me contava histórias da cidade, com um sorriso no rosto passei minhas pernas pelo parapeito da janela e caminho até a cama da minha vítima que já dormia com a respiração pesada. Meu plano era chegar, entrar, hipnotizar e sair dali. Mas eu não contava com um imprevisto, o menino abriu os olhos e me tirou o ar. O símbolo nas minhas costas queimou me fazendo recuar, instantaneamente perdi qualquer desejo de fazer mal a ele, eu queria esticar meu braço e toca-lo, mas num súbito momento de lucidez agarrei seu rosto e o fiz me esquecer com a hipnose, o larguei como se ele queimasse minha carne e pulei pela janela. Corri para o mais longe possível daquele lugar, eu sentia as emoções, sentia desejo de voltar e me jogar em seus braços, sentia tristeza por ele ter me visto como um monstro. Neguei a maldição, tentei desligar essa parte da humanidade resgatada, mas não passei mais do que três dias fora da cidade, eu me alimentava em dobro e comecei a me aproximar do menino o encontrando "sem querer" no parque da cidade, ele me fazia sorrir e eu me sentia humana... Até ver sua veia pulsando em seu pescoço e sair correndo inventando uma desculpa qualquer. Mais alguns dias e eu tinha de controlar minhas presas quando ele me beijava achando estar vivendo uma paixão de colegial, minha garganta queimava por ficar tão próxima ao seu pescoço então novamente arrumei uma desculpa saindo rapidamente dali, mas dessa vez seria diferente, eu estava decidida a acabar com aquilo. Passei uma semana só o observando tentando criar coragem de lhe matar, mas essa semana se esticou para outra e mais outra, e agora aqui estou faminta observando ele olhar para os lados depois de deixar o saco grande de lixo na calçada. "Sou uma vampira, não uma adolescente humana", decidi matar o menino enquanto dormia, mas toda vez que o imaginava morto sentia como se rasgarem minha pele com uma estaca de madeira. Quando o ouvi se deitando, desisto de esperar e corro para a janela, em pé próxima a sua cama o observo entrar em um sono profundo, quase sinto meu coração morto bater no meu peito quando me aproximo e sussurro seu nome alto demais e ele acorda, vê meus olhos profundos e escuros completando minha presas de fora e as veias ressaltadas no rosto, tampo sua boca para que não grite e olhando nos seus olhos enfio minha mão em seu peito alcançando o coração dele e envolvendo ele com minha mão o arranco de uma vez. Senti como se a pele das minhas costas fossem arrancadas junto com o seu coração, minha garganta queimava enquanto reprimindo um grito me deito ao seu lado, toco sua mão fria e sinto como se eu tivesse acabado de ser transformada, eu queria enfiar uma estaca no meu peito, mas ao mesmo tempo não queria sair do lugar. Segurei seu coração diante dos meus olhos e cumprindo a maldição eu o ouvi sussurrar em meus ouvidos:

-- Você é um monstro...

Meus olhos queimavam, eu não queria sentir nada disso, sentia saudades daquele humano, sentia... Remorso. Com um impulso de raiva joguei seu coração na parede enquanto a voz do humano ressoava pelo quarto novamente.

-- Você é uma criatura desprezível!

Quase pude sentir um golpe vindo logo depois daquelas palavras, mas nada mais me surpreendeu quando as seguintes palavras escaparam da minha boca:

-- Me desculpe...

Coloquei a mão sob a boca impedindo que mais algum som escapasse, eu nunca havia pedido desculpas antes, e ali deitada na cama do humano com seu corpo frio ao meu lado, seu coração arremessado contra a parede, e sua voz espalhada pelo vácuo, eu encarava o teto quando uma lágrima escorre dos meus olhos caminhando até meus lábios, não me mexia, não respirava, eu só deixei ela continuar seu caminho enquanto eu ficava ali amaldiçoada, petrificada, e mais uma vez morta.

Bianca Gonçalves
Enviado por Bianca Gonçalves em 25/09/2015
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