Plásticos e Acrílicos

PLÁSTICOS E ACRÍLICOS

Parou na esquina, esperou o carro passar, atravessou a rua e foi andando sem pressa pelo outro lado na calçada, contemplando as vitrines coloridas das lojas, todas já enfeitadas para o natal que se aproximava. Havia certa alegria no ar, pois muitas crianças, na verdade garotos e garotas (adolescentes) já estavam de férias e aos bandos, parecendo passarinhos, eles surgiram rindo, fazendo algazarra, todos com seus celulares de última geração, fazendo caras e bocas para as selfies e postando nas redes sociais. Entraram na galeria e foram direto para o cinema onde estava sendo exibido o lançamento do filme “Perdido em Marte”! Com o Matt Damon. Júlio parou e ficou observando aqueles instantes verdes, alegres e cheios de esperança, onde a vida com certeza valia a pena ser vivida, pois tudo estava por vir. O mundo é movido pelos sonhos, sonhos jovens e encantadores. Acreditava nisso. Nada mais belo e nobre do que a pureza das crianças e o olhar apaixonado de jovens enamorados.

A chuva o despertou do seu deslumbramento juvenil, que o fez abrir o seu guarda-chuva e apertar o passo em direção ao antigo prédio da estação ferroviária, onde Júlio tinha uma loja, uma oficina onde trabalhava consertando velhos relógios de corda, relógios de bolso, daqueles que nossos avós usavam. Até mesmo aqueles com enormes ponteiros, que ficavam nas torres das igrejas. Antigos cucos de parede, todos ornamentados com desenhos e gravuras que remetiam a outra época.

Desde criança Júlio era fascinado pelo “tempo” no sentido filosófico, buscava compreender as leis que regem o fenômeno (senhor dos destinos) e com a mecânica das engrenagens dos relógios. Montava e desmontava todas aquelas peças – Pilares, Pinhão, Pino Canhão, Mancal do Pivô, Chave de Breguet e muitas outras. Quando começava a divagar sobre “Isocronismo” passava horas e mais horas viajando nas oscilações dos pêndulos, até adormecer com os óculos caídos na face. Estava velho e cansado, já tinha visto muitas coisas e continuava vendo. Testemunha viva da história e suas transformações sociais, políticas, econômicas e por fim, tecnológicas, onde ele mais se identificava. E o tempo, seu velho amigo, sempre ali fiel e implacável, como num grande relógio cósmico, girando a roda da história, vendo e contemplando os fatos e os feitos heroicos de personagens admiráveis ou de lideres loucos e seus estados totalitários delirantes e apocalípticos. Assim é o tempo indiferente a tudo e a todos, impassível, ele passa como aquele velho trem, naquela antiga estação ferroviária, embarcando a todos rumo ao infinito para nunca mais voltar.

Júlio senta-se naquele velho banco de ferro e madeira no pátio quase vazio da estação, apenas alguns transeuntes vagavam solitários esperando a hora do trem. Ofegante olha para o grande relógio suspenso e percebe que sempre esteve naquele lugar. Por um instante ficou ali pensativo e o pensamento voou pra longe e as lembranças invadiram a sua alma. Lembrou-se do grande amor da sua vida – Eram vizinhos, moravam na mesma rua, chamava-se, Angeline. Era uma garota de cabelos claros e rosto cheio de sardas e grandes olhos expressivos, por onde mostrava toda a beleza interior da sua alma simples e tranquila. Cresceram juntos, foram pra escola juntos e um dia se casaram, viveram felizes até o fatídico dia em que Angeline morreu atropelada por um bêbado maluco.

A partir dai Júlio nunca mais foi o mesmo. Não perdoava Deus e foi-se fechando, refugiou-se no “tempo e nos relógios”. Gostava de ficar em silêncio ao longe com seu cachimbo, olhando o embarque e o desembarque dos viajantes de trem. Todos com os olhares perdidos, cada qual buscando o seu destino, sabe-se lá onde. Sempre se perguntava – Pra onde vão? Viveram felizes? Olhava cada rosto na esperança de ver Angeline. Um dia teve a impressão de vê-la subindo num dos vagões, reconheceu pelos cabelos claros amarrados por um lenço de seda azul que havia lhe dado de presente de aniversário. Correu como um louco e gritou – Angeline! Angeline... Mas a multidão embarcando o empurrou para longe e o trem apitou e foi sumindo lá na curva do tempo do infinito. Júlio ficou estático, com a mão no rosto enxugando uma lágrima, só dizia: - Angeline...Depois mais tarde friamente, pensou. – Acho que foi impressão minha! Lenços como aquele existem muitos...Aos poucos esqueceu desse episódio. Em meio a esses pensamentos envoltos em névoas e sons de um passado distante,ouviu o velho relógio da matriz, escutou suas doze badaladas. Lembrou-se do filme de Ingmar Bergman A Hora do Lobo - “A hora do lobo é o espaço entre a noite e a madrugada. A hora em que a maioria das pessoas morre e que a maioria das pessoas nasce”. Melancólico por natureza, Júlio sempre foi um sonhador solitário por opção. Taciturno e notívago gostava de caminhar pelo parque, pelas ruas desertas e calmas longe do nervosismo diurno dos balcões de negócios e da vida cotidiana da cidade. Um dia quis partir, mas o destino sempre o escolheu para ser o guardião do tempo. E a todo o momento, no passado, no presente e no futuro, Júlio sempre será o “Relojoeiro”, aquele fascinado pelo “Tempo”, o senhor dos destinos. Mesmo que tudo seja de plástico ou de acrílico. De repente o barulho do trem chegando... Levantou-se calmamente, não estava com medo, tudo já tinha ficado para trás. Dirigiu-se ao chefe do trem, que ao vê-lo disse: - Olá Júlio! Quanto tempo! Suba só falta você, para partimos! Júlio olhou rapidamente o grande relógio suspenso da estação como se quisesse se despedir do tempo. Ainda deu para ouvir o som da chuva no zinco no teto. Subiu no vagão e o trem começou a se mover, apitou e sumiu lá na curva do infinito.

17/10/15

Roman Kane