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I

Nos conhecemos num dos bailes para solteirões, quando ambos já estávamos com trinta e três anos.

Provavelmente, foi durante nossa primeira dança, ao som da deliciosa Skyline Pigeon, de Elton John, que nosso futuro foi decidido. Ambos adorávamos as músicas do Elton, e, como uma coisa leva à outra, logo estávamos casados.

Não tivemos filhos, nem discutimos para descobrir de quem seria a "culpa" ou o quê fazer a respeito. E assim, sempre apaixonados um pelo outro, vivíamos como eternos namorados.

Morávamos numa fazenda que herdáramos de parentes e, numa de nossas noites de namoro, dançando a Rocket Man, "para variar", de Elton John, o inusitado bateu à nossa porta.

Estávamos no final do ano de 1972...

II

André sempre fora brincalhão e extrovertido, fazendo amigos com facilidade, tanto que ainda recebíamos seus colegas da faculdade, onde formara-se em Agronomia, há anos.

Quando não sabia como deveria agir, inevitavelmente soltava alguma piada, às vezes, impensada, de mau gosto...

André tem mania de me dizer:

_ Jerusa, você tem que levar a vida menos a sério!

E eu sempre retruco:

_ Alguém "aqui" tem que levar a vida a sério, e pelo visto, sobrou para mim...

Olhávamos boquiabertos para a loura exuberante parada à porta, quando André disparou:

_ Querida, parece que os céus nos ouviram!

Dei-lhe um forte beliscão para "ajudá-lo" a voltar à realidade.

A loura maravilhosa implorava por ajuda e parecia genuinamente em apuros. Apesar de sua aparência incrivelmente impecável, disse-nos que sofrera um acidente que avariou-lhe o carro, que um parente viria buscá-la pela manhã, e que estava bem. Porém, seu velho cão agonizava, e pediu-nos permissão para passar a noite em nosso galpão, junto ao cão, pois nada mais poderia ser feito por ele. Disse também que não precisava

de nada, pois tinha todo o necessário até a manhã seguinte.

Ainda espantados, concordamos, ao mesmo tempo:

_ Claro, claro! Se precisar de algo é só nos chamar!

Ela agradeceu e, fechando a porta, desapareceu na escuridão.

III

_ Você me beliscou!... Doeu!

_ André, você passou dos limites!

_ Ora Jerusa, meu amor, a gente dançando a música do homem-foguete e nos chega uma mulher-avião, você queria que...

_ Você está me "pedindo" outro beliscão?

_ Você não tem o menor senso de humor...

_ André, esta história está muito estranha. Vamos esperar por umas duas horas depois iremos até lá investigar "discretamente", entendeu?

Aguardamos ansiosos durante algum tempo, depois pegamos uma lanterna e fomos, pé ante pé, até o galpão, distante uns trinta metros de casa.

Abrimos uma pequena fresta da porta e vimos a loura sentada no chão quase de costas para nós. Percebemos seu perfil angustiado olhando para algo que mantinha entre os braços, e que, definitivamente, não era um cão!

Sem pensar, fomos nos aproximando para ver melhor; parecia um boneco grande, como um manequim. Quando este objeto se mexeu e falou com uma voz perfeita e masculina, não resisti ao susto e gritei alto, tentando abafar o grito com as mãos.

Nisso meu marido tão estupefato quanto eu, disparou:

_ Pensei ter ouvido você dizer; "discretamente"...

Mal ouvia o que André estava dizendo. Apenas repetia:

_ É um robô... Minha nossa, ele é um robô!...

IV

Deitando delicadamente o robô no chão, a loura levantou-se, dirigindo-se para nós.

Receosos, demos alguns passos para trás e ela falou:

_ Perdão, não tínhamos a intenção de assustá-los e não lhes faremos mal algum. Meu nome é Samara e o dele é Deniel. Somos viajantes espaciais e sofremos uma avaria. Eu também sou como ele, mas estou bem. Já, ele, precisa de ajuda imediata, ou "morrerá".

_ "Olha, Samara, não tem como não nos assustarmos! Você tem aparência humana, cadê sua nave? Como é que um robô pode morrer?!" Retruquei-lhe, sem concatenar direito.

Samara explicou-nos que se a tocássemos, perceberíamos que a sua estrutura era metálica e igual a de Deniel. Explicou-nos que usa uma projeção holográfica que engana perfeitamente nossos olhos. Disse também que o cérebro deles é herança de milhares de anos, cuja origem é orgânica. Este "cérebro" pode morrer se não receber cuidados constantes. E que na verdade, não "viajavam" no sentido literal, mas se teletransportavam, conforme suas intenções.

Segundo ela, em seu mundo, todas as criaturas inteligentes eram como eles, e havia muito pouca vida orgânica, a maioria, invertebrada.

Eles precisam copiar um cérebro humano e instalar em Deniel o mais rápido possível... Na verdade, seu mundo estava colapsando, pois não estavam mais conseguindo manter os cérebros ativos. Deniel não tinha mais qualquer esperança de cura por lá. Então, decidiram reunir suas últimas forças para tentar alcançar a Terra e copiar novos cérebros para si.

Segundo ela, a Terra, naquele momento, era um dos poucos mundos com vida totalmente orgânica e inteligente, embora já estivesse caminhando para a vida artificial.

É uma jornada sem volta, mas necessária, pois é como se os mundos tivessem um prazo de validade para acabar com toda a vida. Quando o planeta suporta as destruições naturais, sem explodir ou implodir parcial ou totalmente, pode-se passar milhões de anos para a vida "brotar" novamente.

Com uma boa manutenção, eles poderiam viver eternamente, mas houve problemas que se tornaram incontornáveis. Samara explicou que está com Deniel há muitas eras, que são um "casal". Explicou que são nossos amigos e que jamais pretenderam nos forçar a nada, esperando para relatar seus dramas e aguardar nossa permissão para o escaneamento. Disse que muitos do mundo deles, desesperados diante da morte iminente, têm vindo à Terra para "abduções", sem permissão dos humanos.

André é um engenheiro inteligente e quando não está inventando piadas, surpreende por sua perspicácia:

_ Porquê eu e Jerusa? Porquê nos escolheram? Não é preciso ser muito esperto para perceber que vocês têm cérebros humanos, e, como não colonizamos nenhum outro planeta ainda, só posso imaginar que você veio do futuro. Futuro da Terra...

V

Enquanto André falava com Samara, aproximei-me de Deniel. Ele olhou para mim e esticou a mão como que querendo me tocar. Abaixei-me e ele tocou o meu rosto, olhando dentro dos meus olhos. Por um momento pensei que estava sonhando ou louca, levei alguns segundos para perceber que aquele robô à beira da morte era o meu André, ou pelo menos, parte dele!

_ "André!", gritei. Precisamos ajudá-los imediatamente! Prepare tudo Samara.

_ "André, ouça", pedi. Eu não sei explicar, mas sei que aquele robô é "você", e, suponho que Samara, seja eu... Toque-a e olhe bem nos olhos dela.

_ "Samara, o quê está acontecendo afinal?! Que loucura é essa?" André passava as mãos na cabeça, desnorteado, enquanto olhava fixamente nos olhos de Samara.

Então Samara nos disse tudo...

Eu e André chegaríamos até aos oitenta e cinco anos de vida com excelente saúde e forma física. Diante disso, nosso médico nos convidaria a participar de uma experiência de escaneamento do cérebro e de toda nossa memória, para ser usado numa experiência que visava a vida eterna. Mesmo após nossa morte, os dados dos nossos cérebros poderiam ser implantados em outros corpos. Como não havíamos tido filhos, toparíamos participar da experiência. Seria como se tivéssemos deixado "descendentes", caso a experiência viesse a ser bem sucedida no futuro.

Muitos anos após nossas mortes, a experiência foi bem sucedida e passou a se tornar comum guardar uma cópia do cérebro, para uso futuro.

Então ouve um período com grandes catástrofes que dizimou continentes inteiros e a partir daí, começou-se a implantar os cérebros arquivados. No princípio usava-se clones humanos, mas como a vida dos clones era muito curta, aos poucos foi-se adotando a vida artificial.

O problema é que não existem mais humanos no futuro para manter um banco de cérebros, e passaram a usar o mesmo cérebro em vários robôs, o que levou o sistema ao colapso, e disse:

_ Eu e Deniel recebemos as cópias originais dos seus cérebros, mas o sistema está todo confuso e não consegue mais nos atualizar. Tenho tudo o que preciso para a operação. Vocês não sentirão nada, nem terão quaisquer prejuízos ou sequelas.

E P Í L O G O

Samara pediu que nos despedíssemos de Deniel, pois iria desligar todo o sistema dele, implantar o novo cérebro e só iria religá-lo após 24 horas. E que não tinha como garantir que o traria à "vida" de novo, infelizmente.

Seu próprio caso seria bem mais simples, pois estava ainda no contole total de suas funções, embora operando bem mais lentamente do que o normal.

Os procedimentos foram realizados rapidamente e, de fato, nem deu tempo de sentir algo, já havia terminado!

Oferecemos-lhes o nosso quarto para que desfrutassem ao máximo das experiências do casal "original". Pois, apesar de serem máquinas, possuíam todos os sentimentos e emoções humanas como se fossem eu e André.

No terceiro dia, Samara desceu de mãos dadas com Deniel que, agora, mostrava uma aparência física parecida com a de André, como se fossem irmãos.

Deniel pediu que saíssemos todos para o jardim pois eles estavam de partida.

Pediu que nós quatro nos abraçássemos e avisou que eles apenas desapareceriam dos nossos braços. E assim foi...

André, abraçado ainda a mim, disparou:

_ Bem que eu achei desde o começo que era muito areia para o meu caminhãozinho...

Dei-lhe um beliscão de leve, rindo.

Sempre vivêramos como se nosso amor fosse eterno e nos bastasse, jamais sentindo a necessidade de termos filhos...

Agora temos o hábito de nos sentarmos no terraço depois do jantar e ficarmos tentando adivinhar como estão indo os nossos "filhos"...

Que loucura...

Ainda faltam tantos anos para fazermos a tal experiência científica e, no entanto, numa determinada dimensão ela já foi feita e já produziu frutos...

André e eu sempre discutimos, sem nunca chegarmos a uma conclusão; seria possível que tudo isso acontecesse apenas através da Ciência, ou haveria uma "ajuda" de Deus, fazendo com que tudo acontecesse exatamente segundo seus planos?...

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Allba Ayko
Enviado por Allba Ayko em 07/12/2015
Reeditado em 08/12/2015
Código do texto: T5473266
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