Essência

A última coisa que me recordo é de estar dirigindo tranquilamente pela BR-282, próximo de Alfredo Wagner. Eu conhecia a estrada, era um caminho que sempre fazia, pois meus pais moravam no interior. Era aniversário de minha mãe. Estava realizando uma curva fechada, desacelerando, para faze-la com segurança. Então apareceu um caminhão desgovernado, na contramão. Não havia como desviar. Deste momento em diante não me lembro de mais nada. Até abrir os olhos novamente.

Primeiro senti um cheiro ruim, parecia água sanitária. Depois sons de pessoas bem ao fundo, conversando, baixo. Puxei o ar para dentro de meus pulmões e tentei sentar na cama, porém não conseguia. Minha cabeça girava, a desorientação me gerava enjôo. Resolvi fechar os olhos, na esperança que o mundo parasse de girar. Então escuto uma porta abrir levemente e uma voz masculina, grave, fala.

“Já acordou! Que ótimo! Por favor fique na cama, não se esforçe muito. O enjôo e a tontura vão passar, apenas descanse. Parece efeito de beber demais, não é?.”. Então se sentou em uma cadeira próxima de minha cama. Parecia bem jovem para um médico. A voz não combinava com seu tipo físico. Era grave demais para um homem magro. Essa voz deveria pertencer a alguém forte e até mais velho, mas não a ele. Segurou com firmeza um tablet e começou a ler a tela.

“Então, acidente de carro, um motorista bêbado veio na contramão hmmmm. Uma pena, devo admitir. O outro motorista só teve ferimentos leves. Você foi a única fatalidade. Meus pêsames.”

“Fatalidade?”, falei bem baixo, no máximo de volume que eu conseguia emitir. Minha voz soou estranha demais nessa altura. Parecia ser de outra pessoa.

“Fatalidade. Esse momento é difícil, sempre é.”, disse coçando a cabeça. “Quando vim para cá também não conseguia acreditar. Levei um tiro, sabia? Bem aqui na testa.”. Ele indicou um local na testa que não possuia cicatrizes e nem nada. “Pois bem, acordei aqui e acreditei que era um hospital. Isso aqui, na verdade, é feito para parecer com um hospital, para diminuir o choque. E eu não sou um médico, como imagino que você deve ter concluído. Está mais para um aeroporto, e você acabou de chegar de uma viagem longa, muito longa.”

“Você é louco, quero ver o diretor, falar com alguém. Qualquer outra pessoa.”, falei gastando todo meu fôlego. Quando fechei a boca que me dei conta: minha voz estava masculina. “Mas o que é isso? Minha voz!”. E comecei a me desesperar, a apertar um botão, daqueles de chamar enfermeiros. “Tem mais ninguém aqui? Que porcaria, minha voz não é essa!”. Olhei para minhas mãos. Também não eram minhas.

Chegou então uma moça vestida de branco. O homem olhou para ela, “Vou precisar de sua ajuda. É uma daquelas pessoas. Fiz o mesmo quando cheguei”. Terminou em um sorriso de canto rosto.

“Me ajuda! O que há comigo? Minha voz! É de homem e eu sou uma mulher! Olhem minhas mãos, não são minhas! E esse louco vestido de roupa branca disse que faleci! Que lugar é esse? É um hospício e vocês deixam seus pacientes andando por aí, dizendo aos outros que eles morreram? Que brincadeira é essa? Esse corpo não é meu!”

“Se acalme por favor, se acalme. Me deixe explicar. Não somos médicos, este não é um hospital. Esta é a realidade. A sua vida anterior não era real. Era como se fosse um sonho.”

Fiquei perplexa. Ou perplexo.

“Depois você entenderá com maiores detalhes, tudo será explicado com rigor científico, mas lhe devo algumas explicações. Vivemos em uma realidade com várias dimensões físicas. O que chamamos de reencarnação não existe. Você estava em uma nível de realidade mais baixo”. Ela falava com uma doçura e com um certo tom maternal que me senti calma pela primeira vez. Sua voz transparecia quem ela era.

O homem jovem continuou.

“Todos nascemos e tomamos consciência no que chamamos de Realidade A1. É quando somos concebidos para o universo multidimensional, só que nunca temos consciência que estamos inseridos em vários, como posso dizer, planos. A morte não é uma morte real, é um desprendimento dessa realidade enevoada para uma outra mais clara. Aqui é a Realidade A2. Algumas religiões chamam de Céu ou Paraíso, mas continua a ser vida. Sua existência cessa para o Universo apenas após 3 outras realidades, onde nossas capacidades de compreensão são bem maiores. Não é possível saber o que se passa em realidades mais altas, apenas traços são detectados a partir das realidades mais baixas. A estranheza dos quarks era uma dica, um resquício disso aqui”.

Tentei absorver o máximo que podia. Então eu não morri? E minha família, amigos? Porque aqui sou um homem, se eu me lembro de ser uma mulher? A enfermeira me olhava pacientemente, parecia que iria dizer algo, mas falei antes.

“E minha família? Eu tinha filhos. Eu era casada. E meus amigos?”

“Eles vão chorar por sua morte, querida. Não há o que fazer. Estamos todos recomeçando. Eu recomeçei, Carlos também. E quando partimos daqui para uma nova realidade, o ciclo vai reiniciar.”

“Mas porque sou homem? Eu me lembro de ser uma mulher”, falei em desespero.

“Querida, imagino que em sua outra vida, você era uma mulher homossexual, correto?”

“Sim, eu era.”

“Geralmente deixamos para explicar isso depois, porém no seu caso preferimos explicar logo. O gênero na Realidade A2 não reflete na Realidade A1, o que explica a existência do homossexualismo. As vezes a representação das pessoas na Realidade A1 não reflete a sua verdadeira essência. Não existe genética e nem ambiente. É o Universo que decide, querida. Ainda não temos uma explicação do porque acontecer. Alguns argumentam que na Realidade A3 haja uma explicação para isso. Aqui não acreditamos em gênero. Você é o que você é. Algumas pessoas utilizam seu novo eu para se sentirem completas. Outras vivem como antes.”

Me sentia impactada. Por incrível que pareça, minha tontura e enjoo desapareceram. Era muito para mim. Desmaiei.