Vidas Passadas

Na Caverna (10.000 ac)

A tribo tinha fome e frio. Fora da caverna a neve cobria todo o vale. Dentro todos se mantinham acocorados em volta da grande fogueira. Sua mulher, encostada nele, rechaçou o xamã quando este tentou puxá-la para longe. Ele nunca confiou no bruxo, mas sempre tivera receio de sua magia e agora, mais do que nunca a tribo precisava dela. A rejeição o irritou e ele afastou-se com seus chocalhos, danças e grunhidos.

Um brilho tênue anunciava o novo dia e os homens começaram a sair. O desanimo estava estampado em cada rosto. Homens rudes enfrentariam mais uma vez o frio com suas poucas peles. Precisavam encontrar caça com a maior urgência. Os mais fracos, os velhos e as crianças começavam a morrer de fome. O xamã exigia um sacrifício humano e até então o conselho da tribo recusara. O grupo retorna exausto ao anoitecer. Seus semblantes abatidos demonstram o resultado da jornada. Seria mais um dia de fome.

Ao entrarem na caverna deparam-se com um coração ensanguentado, cercado de contas, folhas e pequenos gravetos. O xamã fizera afinal seu encantamento de prosperidade para as caçadas. Entrando mais, ele viu o corpo de sua mulher com o peito dilacerado, por onde fora arrancado seu coração.

Sua lança transpassou o peito do bruxo e a visão dele caído esvaindo-se em sangue foi a gratificação suficiente pelo seu crime. Nem tentou defender-se quando a tribo o atacou. O primeiro tacape quebrou seu nariz. Muitos golpes o seguem. O assassinato de um xamã era uma heresia paga com a própria vida. Seu corpo já sem vida cai ao lado da esposa.

Cidade estado de Eridu - suméria (3.800 ac)

Todos diziam que ela não tinha coração, mas ele nunca acreditou. Ela sorria quando o via, e esse sorriso o sustentava. Vivia apenas para vê-la. Seu trabalho não era importante, sua vida não era importante, apenas ela importava.

Sua profissão não era de todo desprezível, não era qualquer um que chegava ao status de escriba e ele tinha apenas vinte e um anos. Sempre foi responsável e esforçado e com isso evoluiu dentro do palácio. Trabalhava no setor de anotações de estoque e compras. Ficava na parte inferior do palácio, e sempre mexendo com barro ainda mole, onde marcava a escrita com as varetas. Às vezes a via passar e suspeitava que ela arrumasse pretextos para ir até o estoque, onde ele se encontrava, apenas para ve-lo. Nem passava por sua cabeça que ela simplesmente achasse engraçado seu nariz torto.

Em seus devaneios noturnos, desejava ser um guerreiro, um general, para ter livre acesso a residência da princesa.

Naquela manhã ela passou pelo estoque e lhe sorriu. Mais do que o vinho, o sorriso o inebriou fazendo perder sentido da realidade. Segurou-a pelo braço, com a mão suja de barro manchando sua túnica e tentou beijá-la. O grito de repugnância da princesa alertou os guardas que a acompanhavam e de pronto colocam-se entre ele e a princesa. Sem atingir seu intento, não foram as espadas que mais o agrediram, mas o escárnio no rosto da princesa ao vê-lo cair mortalmente ferido.

Uma vila rural na França (1.300 dc)

Desde que se lembra, todos na aldeia faziam troça de seu nariz quebrado. Na verdade não era quebrado, nascera assim. Todos com exceção de Charlotte. Bem, ela não zombava dele quando queria alguma coisa, caso contrario juntava-se a horda que o infernizava. Louis era seu capacho, ela o fazia de gato e sapato. Seus amigos sempre diziam: - esqueça dela Louis, ela não tem coração, deve ter um vazio no peito. - Mas quando ela queria uma fruta ou um trabalho em sua casa, bastava um sorriso e o tolo estava a seus pés.

Ele morava sozinho e seu único bem era o casebre deixado por seus pais. Trabalhava na lavoura, a labuta era árdua. Os impostos do reino de Felipe IV sangravam os trabalhadores rurais. O único alívio eram as palavras sagradas, o saber que a pobreza levava ao reino dos céus. Com exceção de Louis que tinha seu conforto nos sorrisos de Charlotte.

Muitas vezes, e chegou a contar isso a ela, sentia como se a conhece de uma vida diferente, eram outras pessoas, mas eram eles mesmos. A sua estupidez não permitia uma melhor explicação. Ela sorria de sua ignorância e retrucava: - Claro que nunca nos conhecemos, que ideia, só se eu fosse uma rainha e você meu vassalo. Seu deboche o entristecia. Se ela não tinha coração, ele de bom grado lhe daria o seu.

Mas seu coração era o que ela menos desejava. Para casar com o filho do oleiro, ela precisava de um dote. Como vizinha, tomaria posse da casa se algo acontecesse com o parvo lavrador. E assim aconteceu. Uma denuncia de bruxaria o levou ao temido cárcere cristão. Certamente, segundo o inquisidor, era o diabo que lhe mostrava visões de outros mundos. Condenado, como de praxe, sua pena era a fogueira da purificação. Sem conseguir odiá-la, apenas uma lágrima exprimia sua dor ao vê-la feliz, enquanto o fogo o consumia.

Moon City - Lua (3.178 dc)

- Vocês têm sorte em viveram nesse século. Sem o avanço que tivemos na medicina nos últimos cem anos sua filha jamais sobreviveria.

A mãe acaricia a filha em seu colo, agradecida ao médico. A pequena completa três meses de vida sem nenhum problema.

- Com o diagnóstico precoce, continua o médico, pudemos interromper a gravidez aos sete meses e operá-la imediatamente. A prótese que já havia vindo da terra, era o que existia de mais moderno em transplante cardíaco artificial. Pessoalmente nunca tinha visto um caso de atrofia cardíaca como esse. É como se não tivesse coração. Não resistiria ao termo da gestação. Felizmente ela está muito bem, já não inspira mais cuidados, vocês estão liberados.

Em outro setor do hospital, um garotinho de dois anos recebe alta. Foi curado de uma urticária que o atormentava desde o nascimento. Referia sensação de queimação no corpo todo. Os médicos aproveitaram o internamento para corrigir um desvio no nariz, parecendo uma fratura, que também trazia de nascença.

Vinte anos se passam, ele viajou muito, Terra, colônias de Marte, satélites de Júpiter e finalmente voltou à Lua. Ela sempre viveu em Moon City. Se conheceram em uma lanchonete, ela escorregou e ele a segurou. Ao tocá-la sentiu imediatamente sua pele queimando, sensação que nunca mais tivera desde criança e uma dor intensa no meio do nariz e ela por sua vez sentiu uma pontada no peito, na região do coração, como se algo lhe faltasse e o ar sumisse. Por instantes ficaram assim, estáticos, cada qual com sua dor até que lentamente se sentiram melhor. Não apenas melhor pela dor que se foi, mas um sentimento maior. Realmente um bem estar. Daqueles que nos faz sorrir sem motivo.

- parece que estou te esperando a tanto tempo, - ele balbuciou.

- uma eternidade, - disse ela, sem realmente imaginar quão perto estava da verdade.

Treze mil anos passaram para poderem ser felizes juntos.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 28/03/2016
Reeditado em 28/03/2016
Código do texto: T5587920
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