Muito Mais Que Olhar no Espelho

“Conhece-te a ti mesmo.”

– Máxima inscrita no pátio do Templo de Apolo em Delfos.

“Oscar Wilde.”

“Quê?” pergunta o barman, cara amarrada.

“A frase escrita nessa placa, aí atrás de você, é de Oscar Wilde,” responde Nardo, às vezes chamado Leon. Qualquer coisa, menos seu nome extenso – Leonardo. O barman olha a placa com indiferença.

“Pablo, será que você não sabe de algum trabalho por aí? Qualquer coisa serve.”

“Trabalho? Não. Sei de nada não,” responde o barman, enchendo de cachaça o copo de Leo.

Sentada ali perto, uma bela moça de cabelo preto liso pergunta: “Procurando trabalho?”

***

“É um experimento científico,” responde o Dr. Becker, um homem sério, de cabelos loiros. “O senhor vai ser teletransportado, senhor Romani.”

Sem saber o que perguntar, Nardo acaba perguntando a coisa menos importante possível: “Pra onde?”

“Para uma filial nossa, fica uns 5km daqui,” responde a Dra. Vidal, a mesma moça do bar.

“Quanto?” pergunta Nardo. O Dr. Becker mostra um contrato para Leo, que esboça um sorriso.

“Tem algum perigo?” pergunta Leonardo. A moça diz que não, sob o olhar duro do homem loiro.

24 horas de preparação, Leonardo é anestesiado. Nada vai dar errado, garantiram.

***

Nardo acorda, o corpo dolorido. Quando abre os olhos, vê a Dra. Vidal do lado dele.

“Está tudo bem?” pergunta ele. Ela faz que sim, mas parece assustada.

“É a mesma sala... Não deu certo?”

“O experimento foi um sucesso!” exclama o Dr. Becker, entrando pela porta. “Só fala corrigirmos um pequeno detalhe. Venha comigo, Dra. Vidal”. Deixam Nardo sozinho, parece que há algo estranho no ar. Leo se levanta, quando vai abrir a porta, ouve uma voz: é o Dr. Becker.

“Uma overdose do anestésico e tudo fica resolvido. Não é crime, ele está lá, o que sobrou aqui é só um vestígio do processo.”

O vestígio viu que era hora de fugir; ele sai por outra porta, e anda até achar a saída do prédio, quando sai caminha até ficar longe o bastante para se sentir seguro, então senta em uma praça para pensar; “se ele sumir, tudo volta ao normal,” conclui ele.

Leo faz um plano. Espera que anoiteça, vai para casa. Entra pelos fundos, e, na cozinha, procura nas gavetas, acha um revólver.

Caminha com a arma na mão até à sala de estar; do sofá, sai a voz de um homem sentado de costas.

“Disseram que eu podia receber uma visita. Um tipo de vestígio do processo, parece. Disseram também pra chamar eles se isso acontecesse. Prefiro resolver sozinho. Você é o Vestígio?”

Levanta do sofá e se vira com uma arma na mão. Os dois iguais, mesma arma, mesma postura.

Como olhar no espelho.

“Mais que olhar no espelho; muito mais. Não são apenas nossos corpos: nossas mentes também são iguais. Nossas memórias são as mesmas, tudo que você sabe, eu sei.”

“Então me diz: como você sabia que eu tinha comprado duas armas e escondido uma na cozinha?”

“Porque é o que eu faria. E você é eu, então pensei que faria a mesma coisa.”

Eles apontam suas armas um para o outro. Não disparam, abaixam as duas ao mesmo tempo.

“Não posso te matar, você sou eu!”

“Você é o primeiro, tem mais direito de viver, eu acho, mas eu também quero viver, e eu sou você.”

Os dois se sentam, a conversa vara a noite. Uma conversa alegre e solta, cheia de risos e troca de olhares cúmplices. É irônico quando se descobre que duas pessoas que nada ou quase nada precisam dizer uma a outra, são as que mais têm sobre o que falar.

***

“A que mais me entendeu foi... A Sheila! A Sheila era dez!”

“Mesmo assim, não chegou nem perto... De mim. Eu te entendo mais que qualquer um, porque...

“... Você sou eu... E eu sou você.”

Um momento de silêncio.

“Sabe, se você não vai mesmo me matar, devia me dar um nome.”

“Boa ideia! Acabei de pensar em um... Cícero. O nome que você mais gosta.”

Risos. Um momento de silencio.

“Cícero, eu tenho uma coisa pra te dizer... E eu sei o que é. Mas quero ouvir de você.”

“Eu te amo!”

Ele(s) se beija(m). Um mês depois, ele(s) se casa(m), e o casal Narci se torna o mais feliz casal do mundo. Na sala, colocam um quadro:

“Amar a si mesmo é o começo de um romance para toda a vida.” – Oscar Wilde.

Quem ama só a si mesmo vive na solidão, a não ser que o si mesmo vire o outro; se isso acontecer, amar ao outro vira amar a si, e ser amado pelo outro, que é eu, é ser amado por si mesmo, e o amor se torna perfeito, pois amar e ser amado por si e a si mesmo se torna amar e ser amado por outro.

Espero que vocês tenham entendido.

Porque eu não.

FIM

Conto originalmente publicado na revista "Conexão Literatura", número 8, disponível online: http://www.fabricadeebooks.com.br/conexao_literatura8.pdf