A terra dos duendes

Acho que esse é o sentimento de um condenado que acaba de ouvir sua sentença. A sensação de impotência. O saber da inutilidade de gritar, reclamar. Não tenho mais possibilidade de alterar nada. Somente posso contar minha história.

Me chamo Leon, tenho trinta e cinco anos, solteiro para o desgosto de minha pobre mãe. Sou professor de história bem-conceituado entre meus pares. Apaixonado pela minha profissão, adoro história antiga, histórias da cavalaria medieval e magias. Por curiosidade sobre magia, andei pesquisando muito as comunidades de duendes. Na verdade, tive mais um motivo para enveredar por esse caminho. Isso aconteceu há exatos cinco anos. Estava andando pelo bosque próximo a minha casa, resquícios de uma mata antiquíssima, com árvores seculares, quando resolvi sentar-me ao pé de uma delas para descansar, na sombra agradável da tarde. Pensei que a raiz estava podre, pois esfacelou-se com meu peso. Alguns segundos depois, estava na minha frente, de mãos na cintura e o palavreado mais sujo que já ouvi em minha vida, um duende. Claro que não repetirei palavreado literalmente.

- Seu ogro, você destruiu a frente da minha casa. Não, destruiu toda minha casa, como posso morar em uma casa sem frente? E agora? Como vai me indenizar?

Ele falava e me seguia, eu nem imaginava o que fazer, atordoado, até propus construir uma casa para ele.

- Você pensa que eu sou um passarinho, acha que posso viver numa gaiola. Quero ver você escavar um carvalho, levei quase duzentos anos construindo minha casa.

O fato é que a pequena criatura me seguiu, entrou em minha casa e nunca mais saiu. Vive comigo até hoje, quero dizer, até ontem.

E para quem acha que duendes só vivem em bosques e florestas, pode ter certeza que não. Duendes são os seres mais adaptáveis que existem, mais do que baratas, vivem em qualquer lugar. Uma casa humana é um palácio para eles, se for alguém desorganizado como eu, aí então é o paraíso. Adoram ficar atrás de livros, em caixas de bagunças.

Sir Leoric é meu hospede há cinco anos. Seu verdadeiro nome é Theophilo, mas ele odeia e resolveu mudar após eu ler para ele alguns clássicos alemães. Adorou o nome e o título. Em agradecimento ele me deu um minúsculo trevo de 4 folhas que carrego desde essa data. Que me lembre, foi o único ato gentil de sua parte. Como diz ele, sustenta-lo é minha obrigação depois do incidente com sua casa na raiz do carvalho. Ele mede quinze centímetros, segundo ele, bastante alto entre os seus. Aparentemente adulto, creio que ninguém saiba sua verdadeira idade. Tem a agilidade de um gato. Nunca aparece para ninguém além de mim, já paguei micos homéricos tentando dizer aos amigos que tinha um duende morando em minha casa. Fotografá-lo? Simplesmente impossível, ele foge da foto-imagem como o diabo da cruz. Extremamente vaidoso, a maior ofensa contra ele é dizer que ele está gordo.

É verdade que ele me faz companhia, mas em geral mais atrapalha minha vida do que ajuda. Suas magias me deixam louco, embora já tenha prometido inúmeras vezes que pararia, cumprir promessas não é seu forte. Depois de conhecê-lo, passei a me interessar por magia. Acabei percebendo que os duendes não são os maiores conhecedores de magia, pelo contrário, tratam-na como brincadeira e com displicência. Quando uma mágica não é executada com perfeição, sobram pequenos resíduos, as Particulae remontorum, e o universo precisa destruí-las ou absorve-las. Devido a isso, nunca sabemos os efeitos colaterais das magias toscas e mal-acabadas. Podem ser pequenas mudanças ou verdadeiras catástrofes. Claro que os Elderes seguem as regras básicas da magia élfica que é válida para duendes, Leprechaus e afins, além disso, os conselhos de Anciões reúnem-se amiúde para a limpeza e destruição das particulae remontorum, coisa que não acontece na minha casa.

Dito isso, deixe-me esclarecê-los, moro em Viçosa, na ladeira das amendoeiras, 28. O nome é autoexplicativo, é uma pequena ladeira, de apenas uma quadra onde existem três amendoeiras. O problema é que desde o último final de semana desapareceram as amendoeiras e em seu lugar surgiram três macieiras e nas minhas correspondências está escrito: ladeira das macieiras, 28 – Viçosa. Mesmo as correspondências mais antigas estão grafadas iguais. Posso estar sofrendo de demência precoce e a ladeira sempre foi das macieiras, ou então alguma coisa muito estranha está acontecendo.

- SIR LEORIC, VENHA CÁ IMEDIATAMENTE!!! - Ele chegou cabisbaixo, sua expressão corporal é uma declaração de culpa. – O que você fez? Você mudou a rua?

- Na verdade, - sorriu ele, - eu só queria arrumar a frente da casa, para cair menos folhas, e aconteceu isso, árvores que derrubam menos folhas.

Eu não sabia o que fazer. Deixar assim? Poderiam haver outras complicações. Liguei a tele virtual e a imagem da repórter saiu da parede e me cumprimentou: – Boa tarde Leon, que deseja hoje? - Notícias econômicas mundiais, - respondi sem entusiasmo. A repórter virtual começou a desfiar as manchetes. “A capital econômica dos Estados Unidos da América, Nova Madri, efervescia com o aumento do preço do petróleo. A bolsa teve alta recorde”. O bom da notícia era que o Brasil acompanhava essa alta. A descoberta do pré-sal levou o Brasil à direção da OPEP, com uma gigantesca alavanca econômica e ao nível das principais potências mundiais, sendo convidado recentemente para integrar o G-5. Nem mesmo a Alemanha na década de 40, após sua vitória na segunda guerra mundial teve um crescimento tão rápido. Não podíamos reclamar. O planeta entrou numa era de prosperidade consciente e estávamos vivendo uma época áurea. A liderança mundial era exercida pelas três principais economias, Brasil, Alemanha e Canadá. Como professor de história, todas as nuances da geopolítica mundial vivem em minha cabeça. Acabei adormecendo entre o jornal e meus pensamentos. Tive pesadelos de culpa por ter gritado com o pequeno duende, porém a culpa logo se foi, quando a gritaria de Sir Leoric me acordou. - Consegui...consegui, – ele pulava e saltitava – venha ver, voltaram as amendoeiras. Eu corri até a janela, onde ele, escondido atrás de um vaso, me mostrava. Realmente agora eram novamente três amendoeiras. Voltei a olhar a correspondência: Ladeira das amendoeiras, 28.

Tantas alterações sem controle, isso não vai dar boa coisa, pensei comigo. Pensei em sair e dar uma caminhada pois ainda tinha algum tempo antes da minha próxima aula. Pisquei meu relógio ocular e não vi nada, pisquei novamente e novamente, nada. Diante do olhar curioso de Sir Leoric pela minha crise de piscos, acabo explicando:

- Não sei o que aconteceu com meu relógio ocular, eu pisco e não vejo nada. O implante ocular é a prova de falhas, nunca soube de um que estragasse.

- E o que é isso no seu pulso?

Olhei assustado, para a pulseira em meu pulso, com marcador de horas, um relógio antiquíssimo, isso não existia há décadas. Tinha visto um igual no museu num passeio pela capital. Sai para a rua meio atordoado, e me dirigi para o senhor sentado num banco e perguntei-lhe:

- O Sr. poderia me dizer que horas são? - Ele olhou seu relógio de pulso e disse: - são 15 horas, – e olhando em meu pulso continuou, - seu relógio estragou?

“Meu Deus, mais uma mudança”. Corri até o teletransporte público, e teclei as coordenadas da capital. Após o crepitar característico e um leve formigamento, estava no Rio de Janeiro. Sem paciência de andar pelas calçadas rolantes, preferi correr até a universidade. Sempre que aqui chegava, passava alguns minutos observando, embevecido com a beleza das paredes em mármore branco contrastando com suas colunas coríntias em mármore rosa, mas não hoje. Não tinha tempo nem disposição para tal. O aspecto clássico é apenas na fachada, a universidade é ultramoderna, seus trinta andares subterrâneos são um expoente da pesquisa mundial. Entrei rapidamente, quase correndo pelos corredores e mal cumprimentando algum docente conhecido que cruzava comigo. Dirigi-me ao setor de pesquisa cibernética. Na última sala do 17 andar, encontrei Da Silva. Amigo antigo, Da Silva é um dos chefes de departamento. Entrei abruptamente e o interpelei quase gritando:

- Que horas são, Da Silva?

Espantado pela minha urgência, ele olhou seu relógio de pulso e disse antes mesmo de me cumprimentar: - São três horas e vinte e sete minutos.

- Onde está o seu implante ocular?

- Do que você está falando, Leon?

- Seu implante ocular, para ver as horas, a cibernética criou há dezenas de anos, todos usam.

- Cara, você bateu a cabeça? Bebeu? O que está acontecendo?

- Acredite em mim, Da Silva, até esta manhã todos usavam, foi depois de um feitiço mal feito, simplesmente desapareceu, ninguém mais tem. – Da Silva tinha algum conhecimento de magia, tendo inclusive participado de alguns estudos comigo. Embora nunca o tivesse visto, era o único de meu círculo que tinha conhecimento de Sir Leoric.

- Nunca o levei a sério, mas agora estou achando que ele tem mais poder do que eu ou ele próprio imaginamos. Agora estou com medo do que possa ter sido mudado e eu ainda não saiba. Não sei qual o nível de magias ele é capaz e que transformações da realidade podem acontecer. Pensei que aqui na CiberBras as mudanças não aconteceriam, que houvesse algum tipo de isolamento.

- Espere Leon, vamos refletir. Por que você mantém suas memórias antigas após as transformações? – Sentando-se, ele continuva a raciocinar e como sempre quando preocupado, ele tirava e colocava continuadamente seus óculos, - a não ser que você tenha algo do executor da magia, que sirva como antena isolante.

- Claro, - lembrei abrindo a carteira, - o trevo de 4 folhas.

Enquanto falávamos, o logotipo nos computadores, pastas, em todo o escritório mudavam na nossa frente, de CiberBras para CyberBras. Olhe Da Silva, está mudando, “Y” no lugar de “I”. Não estou entendendo o que está acontecendo.

Analítico, meu pequeno amigo cientista tentava organizar as ideias. - O que pode ter mudado a influência linguística? Do espanhol para o inglês? A mudança teria que ser muito grande. Temos que pensar na colonização das américas. Todos sabemos que foi totalmente espanhola, mas agora, precisamos pensar, como poderia inverter e passar à colonização inglesa.

- Como estaria o mundo se a armada espanhola tivesse sido destruída pela inglesa em 1588? - Me pergunta Da Silva.

- Ora, isso seria impossível, não era sem motivo que era chamada de invencível armada espanhola.

- Está bem, mas apenas faça um exercício de imaginação, quais seriam as consequências?

- Bom, provavelmente a Inglaterra passaria a ser a maior potência da época ao invés da Espanha. E o comércio escravagista seria dominado também pela Inglaterra, bem como o domínio marítimo. A américa acabaria tendo influência inglesa. Talvez, apenas talvez, uma grande potência sem fronteiras com a Europa, não seria invadida facilmente pela frente alemã, podendo defender-se da invasão nazista e Hitler teria então na Inglaterra, um grande oponente.

- Bingo. Influência inglesa, Cyber de cybernetic em Inglês. De imediato ele acessou seu computador e procurou: “invencível armada espanhola”. A resposta veio em segundos. Após uma detalhada descrição da armada, quase 200 navios com capacidade de transporte de 8000 marinheiros e 50.000 soldados e outros detalhes, ao final estava: “ destruída pelos ingleses na batalha no canal da mancha. O episódio da armada foi uma grave derrota política e estratégica para a coroa espanhola e teve grande impacto positivo para a identidade nacional inglesa”. - Viu? Aqui está a mudança. Foi criada uma nova realidade factual, a Espanha não venceu como sabemos. Deverão haver muitas consequências a partir dessa mudança.

- Preciso voltar. - Em pânico, mal conseguia concatenar minhas ideias, mas uma coisa tinha certeza, - não posso deixar mais Sir Leoric sozinho.

Mas quando sai da sala, o corredor era antigo, os elevadores também. Estava no terceiro andar, acima do solo. O prédio ainda era de mármore, isso não havia mudado. As calçadas rolantes haviam desaparecido, corri até o tele transporte público mas havia apenas uma agência vendendo passagens. A viagem de volta a Viçosa tem um tempo estimado de seis horas. SEIS HORAS? Eu vim em 2 segundos. O ar não era mais puro, fedia a fumaça e havia lixo pela rua. Não havia mais tele transporte, não vi no céu nenhum aero comboio ou aero carro, porém rodando pelas ruas, carros absurdamente barulhentos e eliminando uma quantidade sufocante de fumaça. Sem acreditar no que via, comprei todos jornais do dia disponíveis e tomei o comboio terrestre. Era assustador no que o meu mundo se tornou. Tinham notícias inacreditáveis, pareciam piadas de mau gosto. Policiais acusados de assassinato. Políticos presos por corrupção. Guerras, fome, miséria. Os jornais me ajudam bastante a tomar conhecimento das mudanças. Agora os Estados Unidos são a maior potência militar e econômica. A Europa unida não consegue vencer o terrorismo religioso islâmico. Eram tantas as notícias e mudanças se sucediam, que mal percebi o tempo de viagem.

Já era noite quando cheguei em casa. O temporizador sumira, a casa estava extremamente quente. Tentei acionar o tele-virtual mas o botão havia desaparecido. A água que saiu da torneira cheirava a cloro, não tive coragem de bebe-la, optei por uma cerveja. Embora a geladeira estivesse com outro formato ainda funcionava. Preciso pensar, e com Sir Leoric descobrir alguma maneira de desfazer tudo e sair desse pesadelo. O problema agora é encontrar Sir Leoric. Não o vejo em parte alguma, quando ele deseja, é impossível encontra-lo. Pensei em resolver isso na manhã seguinte. Dormi mal e acordei sobressaltado. Diferente de toda manhã, o pequeno duende não está na cozinha. Nenhum barulho. Isso está realmente me assustando. Talvez se encontrar uma colônia de duendes ou elfos consiga convence-los a reverter os encantos. Começo a procurar e não encontro em nenhum catalogo ou lista que possuo em casa, nenhuma referência a protetorados de duendes. Desanimado, acesso o computador e após alguns segundos obtenho a resposta na tela:

“Duendes são criaturas mitológicas que aparecem em várias histórias do folclore europeu. Apesar de sua origem não ser completamente conhecida, o mais provável é que os duendes tenham surgido junto com elfos, anões e outros seres do além em lendas da mitologia celta e escandinava, em países como Inglaterra, Noruega e Suécia ... “

Meu Deus, ele ultrapassou o limite. Um mísero duende conseguiu fazer uma transformação irreversível. Os duendes desapareceram. Não existe mais magia. Não existe retorno, e eu estou condenado a viver aqui.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 07/06/2016
Código do texto: T5660325
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