Vida inteligente- 2ª parte

Correu até a altura que não ouvia mais nada,já lhe faltava o ar e as vísceras pareciam estar reviradas ,olhou em volta do lugar em que se encontrava ,era silencioso e calmo, um tanto quanto aconchegante, notou nas paredes certa transparência, conseguia ver formas se modificando a cada passo que seguia adiante, sentiu que ia apagar, a escuridão ia e voltava dentro dos seus olhos, resolveu parar, agarrou-se a uma estalagmite de gelo sólido, cuidando para que seu corpo não tivesse contato direto, pela primeira vez desde que acordou sentiu algum tipo de segurança, aquele lugar parecia maciço e forte, apesar do fato óbvio de estar no interior de paredes de gelo inconstantes, ele não sentiu que fossem desabar, sentiu que podia enganar a morte por mais algumas horas, mas sabia que não duraria muito mais tempo.

Após seus segundos de devaneio, ouviu ao longe algo que parecia com um objeto caindo, aquele som lembrou a noite em que fora a uma festa elegante e acabou derrubando uma das taças de cristal da mesa do anfitrião, o som parecia distante, contudo ele jurou que aquilo não era fruto de sua imaginação, na altura em que se encontrava não havia mais vento, o que só poderia remeter a hipótese de não estar sozinho. Aquilo despertou no rapaz a esperança de ter mais alguém lá que pudesse salvá-lo, por um segundo seu rosto começou a sorrir, mas seu semblante tornou-se sério novamente ao se questionar que talvez o que tinha feito aquele barulho não fosse um amigo. Quem sabe o que vivia naquele lugar? Com certeza algum tipo de predador que não comia há muito tempo, seu cheiro de sangue poderia ter denunciado que lá havia uma presa fácil e abatida esperando seu fim.

Alexander foi tomado por pensamentos alternados, entrou em desespero e seus pulmões começaram a pedir por ar, ficou ofegante, trêmulo, mal conseguia manter-se agarrado onde estava, ao ser inundado de milhares de hipóteses em sua cabeça, resolveu por tentar gritar, afinal devido a sua localização, as chances de sobrevivência mesmo estando escondido seriam poucas. Inspirou todo oxigênio que conseguiu, sentiu como se uma espada entrasse em seu tórax, juntou forças que nem ele sabia de onde vieram, e num sopro sua voz saiu.

- Socorro!! Aqui! Me ajude!!

Logo após pronunciar sua última palavra, pode ouvir o eco de sua voz passear por todas as fendas daquela caverna e ir embora, o que restou foi o silêncio, o tão torturante silêncio de antes.

- “Não pode ter sido minha imaginação, não dessa vez...”- pensou.

Ao tentar andar soltando a mão em direção a uma parede de gelo, tropeçou entre seus pés e conseguiu dar três ou quatro passos.

- Po...por favor não fuja de mim, eu não quero morrer aqui sozinho! – Gritou mais uma vez, com lágrimas de desapontamento correndo de seus olhos

O silêncio tomou conta do lugar por mais alguns minutos, Alexander havia perdido suas esperanças, até que começou a ecoar sons de passos, podia-se ouvir o gelo sendo esmagado e um vulto tentando segui-lo. Ele segurou na parede e começou a acompanhar o som, conforme caminhava notou com certa dificuldade uma silhueta esguia a sua frente, bloqueado pelo muro de gelo, repousou sua mão ensanguentada sob a camada mais fina para tentar vê-la com clareza, seu rosto se aproximou com calma, e o corpo magro e branco do outro lado fez o mesmo, suas mãos se tocaram e ele percebeu que aquele ser tinha uma figura feminina, parecia uma mulher magra e pálida, apesar do aspecto frágil e delicado, vestia somente um conjunto de calça e camisa laranjas já bem rasgados e destruídos pelo tempo, estava descalça, tinha um semblante angelical, cabelos muito compridos e claros, pareciam azulados, mal dava para separar seu perfil do restante da paisagem, era como se a mulher fizesse parte daquele gelo todo.

De repente notou que as mãos da criatura seguiam em linha reta tocando a parede de gelo delicadamente, como se lhe mostrassem o caminho a seguir, Alexander não pensou, nada mais via do que aquelas mãos que o convidavam a segui-las, e como por instinto seus olhos penetraram no movimento daqueles dedos, impulsionando o resto do corpo a seguir caminho. Alguns metros adiante a parede de gelo finalmente chegou ao fim, deixando-o cara a cara com quem quer que fosse aquela mulher.

Apesar do medo de toda aquela situação, aquela criatura foi a mais bela e enigmática que Alexander já tinha visto, a jovialidade e vitalidade que saíam daquele ser pareciam de outro mundo, apesar do rosto sério e ameaçador que ela fazia, notava-se uma inocência e ao mesmo tempo marcas de sofrimento naquele olhar, os olhos assim como o resto do corpo eram quase brancos, com um leve tom azulado que os tornava ainda mais profundos e hipnotizantes, tinha mãos e pés delicados e a roupa que vestia lhe parecia enorme, o rapaz notou agora que suas vestimentas lembravam em muito uniformes de presídio, ao lado esquerdo de seu peito, em um pequeno bolso descosturado havia algo escrito, porém indecifrável.

Uma força interior fez o rapaz esticar a mão para alcançá-la, na condição em que se encontrava suas noções de realidade já não estavam lhe servindo bem, queria senti-la. A criatura arregalou os olhos e se afastou rapidamente da mão que tentava tocá-la.

- Me perdoe, eu não quis assustar você...é que tudo isso não parece ser real... – Disse Alexander dando um passo a frente em direção á moça, que assustada esticou seu braço em sinal de defesa

- ...não...não, eu não vou te machucar, eu só quero conversar...

Conversar...de repente a palavra pronunciada por Alexander despertou medo no olhar da garota, ela inexplicavelmente começou a agir diferente, fazendo com que Alexander duvidasse de qualquer hipótese racional sobre o que ele tinha feito.

A garota penetrou seus profundos olhos azuis nos de Alexander, como se silenciosamente estivesse lendo seus pensamentos mais profundos, em seguida seus olhos foram baixando e pousando no peito do rapaz, foi então que uma dor estranha começava a dominar seu coração, como se literalmente alguém o tivesse apertando com as mãos, sua visão foi escurecendo, seu rosto foi se tornando cianótico, e ele não viu mais nada.

A garota sentou-se perto dele, com as costas arqueadas abraçou suas próprias pernas esperando que ele voltasse do seu apagão, porém nada aconteceu. Apesar de saber que o melhor a fazer era deixá-lo lá para que terminasse de morrer, algo dentro dela não aceitava que aquilo fosse certo, ela já havia passado por aquela vulnerabilidade em que ele se encontrava naquele momento, com seus últimos fios de vida lutando para manterem-se protegidos, ela não conseguiria matar mais um. Pôs se de pé diante dele, dando-lhe leves chutes na tentativa de reanimá-lo, estava com medo de perdê-lo, aproximando-se do rosto dele, aconchegou as duas mãos em suas bochechas quentes, não lembrava mais como era sentir calor, esquecera-se de como era sentir o sangue nas veias aquecendo o corpo, a respiração morna e compassada de uma vida pulsante, poderia sentir o carinho de seu calor para sempre, entretanto se demorasse mais ele acabaria não aguentando.

Num piscar de olhos a garota baixou as mãos em direção ao coração do rapaz, em seus dedos podia- se ver um pequeno campo de força que parecia transmitir sua energia vital para o corpo inerte de Alexander, aos poucos sentiu novamente o coração pulsando, o calor de suas bochechas voltando junto com a cor de sua pele. Ela abriu seu casaco e viu que o sangue que ele perdeu era muito, sua força vital foi o suficiente para parar o sangramento mais intenso, notou que o rapaz se contorcia em espasmos contínuos pelo frio...bom sinal...pensou. Sem mais recursos, apesar do pessimismo que a rodeava de retirá-lo daquele lugar no meio de uma nevasca, resolveu arrastá-lo para onde estivesse mais seguro, agarrou com força nos ombros de seu casaco, e arrastou-o para fora.

3.SOBRE SUA LUCIDEZ.

Estava escuro quando ele abriu os olhos, demorou para as pupilas voltarem ao normal e finalmente ele poder ver uma luz branda, estava deitado encolhido dentro do que parecia ser a pele de algum animal, ao longe ouviu um vento forte, parecia uma nevasca das piores. A primeira tentativa de movimento sentiu dor, foi então que aos poucos começou a recordar o que tinha acontecido, não foi boa ideia, nenhuma das ideias tidas até dois dias atrás foi boa, começou a se imaginar onde estava, lembrava da caverna de gelo, lembrava de uma bela mulher que o tinha matado, e se perguntou se aquilo era um tipo de post mortem, questionando se sua alma ficara congelada em algum tipo de vida eterna, em seguida sentiu alguém segurando seu pescoço com mãos congelantes, ergueu sua cabeça até dar-se de frente com aqueles olhos enigmáticos que encontrou pela primeira vez, sua espinha gelou, não sabia qual seria a próxima reação dela, viu que ao seu lado estava uma pequena chama acesa, tão pequena que mal gerava calor naquele lugar que parecia ser enorme, em cima de um armado de ferro retorcido que repousava perto da chama, uma pequena caneca fervia fazendo um som relaxante enquanto soltava fumaça, ele pode notá-la encolher sua mão na manga da camisa para pegar a caneca, levando-a perto de sua boca.

- É melhor engolir, se não quiser que seus órgãos congelem. – Sussurrou a garota tão baixo que ele mal conseguiu notar que ela falou, estava olhando pra todos os lados como se estivesse á espreita de alguma coisa. Queria perguntar a ela como falava sua língua, mas foi forçadamente calado pela água escaldante que foi jogada em sua garganta, sentiu-se sufocado e tossiu desesperadamente sendo logo em seguida coberto pelas mãos frias da mulher pedindo-lhe silêncio, aos poucos sentiu seu corpo esquentando e pôde respirar com menos força, seus olhos foram ficando pesados, ela cobriu sua cabeça e ele entrou em um sono profundo, não sabia se pelo extremo cansaço, ou se ela lhe tinha desligado o cérebro como fizera da última vez.

Ao acordar percebeu que novamente o ambiente se encontrava branco pela neve, a nevasca que ouviu na noite passada tinha se acabado e o silêncio predominava, mais uma vez ele sentiu como se fosse a última pessoa viva da terra, levantou-se sem grande dificuldade, as dores torturantes de antes estavam quase imperceptíveis, percebeu em sua camisa grande quantidade de sangue, apavorado abriu-a, porém seu corpo se mantinha intacto, ao seu lado ainda a pequena chama estava acesa ,fraca, quase se apagando, perto estava um pedaço do que parecia ser uma carne desidratada, aquelas comidas malucas de astronauta, ele resistiu até o ponto que seu instinto de sobrevivência falou mais alto, e devorou aquilo como se fosse a melhor comida do mundo, não tinha gosto de nada, mas serviu-lhe para manter as forças e levantar-se.

Ao ficar de pé notou que estava em uma espécie de caverna, que apesar de bem fechada estava coberta de gelo em seu interior, a luz que penetrava em seu rosto vinha de uma pequena portinhola que dava para a saída, a fenda mal dava para passar seu corpo, mas com alguma dificuldade Alexander conseguiu sair. Lá fora viu a mesma paisagem que vira anteriormente, o horizonte branco e infinito, sem qualquer indício de vida ou de direção, por onde olhava parecia estar sempre no mesmo lugar, e sua assassina e salvadora não parecia estar por perto, não havia pegadas ou rastros, nenhum tipo de sinal.

Ele temeu ter sido abandonado novamente, daquela vez para sempre, não sabia exatamente o que aquele ser pretendia com ele, não sabia nem se era humana. Resolveu dar alguns passos pra ver se a paisagem mudava e ele pudesse se encontrar, sem sucesso, nada mudava. Ele andou por alguns metros, e não percebeu que estava perdendo de vista seu único ponto de referência, ao se dar conta e olhar pra trás, já não via mais nada, tentou voltar mas parecia que tudo aquilo havia sumido, pensou até que estava em outro planeta.

- O seu lugar não é aqui. – ouviu uma voz clara e séria atrás dele, pode reconhecê-la de qualquer lugar, assustou-se pela surpresa de encontrá-la, ou dela tê-lo encontrado.

- Você está aqui...- disse sorrindo de alegria como uma criança perdida quando encontra a mãe num corredor aleatório do supermercado.

- Por que saiu? Não vê que pode ser facilmente visto aqui fora? Não vê que seu corpo está quente? Quer denunciar a nossa localização?! – disse a moça num tom firme, tomando o caminho contrário ao que ele estava fazendo, seu idioma era igual ao dele, mas percebeu um certo sotaque que não era russo, era como um modo próprio de pronunciar as palavras- ...Você deixou o fogo aceso...vai nos matar...

- Mas já deve ter apagado...- falou num tom manso, como querendo manter o assunto e tentar parecer lúcido. Ela virou-se para ele com seus enormes olhos claros em sinal de desaprovação. - ...m...me desculpe.

No restante do caminho, andaram em silêncio, Alexander a observava da cabeça aos pés tentando responder algumas das suas infinitas perguntas, ela parou de andar, ele distraído demorou a perceber que já tinham chego, como se estivesse programada para isso, ela começou a cavar na neve, não demorou a encontrar novamente a portinhola que ele havia saído.

Alexander sentiu-se impotente diante dela por um momento, não sabia o porquê dela tê-lo salvo, mas tinha certeza de que ela não o faria mal.

- Eu quero agradecer por ter me salvado...- tentou conversar- ...se não fosse por você eu nem sei o que poderia acontecer... como foi que chegou aqui?

Ela nada disse, apenas afastou-se dele o suficiente para se sentir segura.

Alexander já havia percebido muito bem que ela sabia onde estava, e que tinha todas as condições possíveis para voltar para a civilização sozinha, ela não havia se perdido, nem tampouco fora abandonada lá sem rumo.

- O que é você?- disse se aproximando dela novamente.

- Você não pode ficar aqui por mais tempo.

- Você também não...

Alexander chegou perto dela, segurando levemente em um dos seus ombros, tudo nela era extremamente frio, mas sua pele em nada mais se diferenciava da dele. Ela se virou e fitou seus olhos castanhos, todo calor que eles transmitiam lhe deu muita paz, seu leve toque não lhe causava nenhuma dor, seus lábios lutavam para não deixar escapar um leve sorriso, há anos não tinha qualquer contato próximo com um ser humano, ainda mais com um que lhe tratasse como um ser igual, acariciou- lhe o rosto gentilmente, agarrando em seus belos cabelos negros, estava tão próxima que pode sentir as batidas de seu coração se acelerando, ela não queria ter que fazer aquilo.

Ele sentiu uma estranha sensação que fez seu coração palpitar, queria mais do que tudo poder tocá-la de volta, respirou fundo e fechou os olhos assim que as mãos dela tocaram seu rosto, logo foram caminhando sob seus cabelos, seus olhos se abriram e deram de encontro com os dela, não se lembra de quanto tempo conseguiu ficar olhando pra ela, estava tão perto que seus lábios quase se tocaram... então seu corpo começou a amolecer, sua vista escureceu e ele sentiu novamente que iria desmaiar.

“ De novo não...”

Rafaela Cristina Almeida
Enviado por Rafaela Cristina Almeida em 02/10/2016
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