Esperança Negra

Logo no início da Nova Era todos os humanos foram cadastrados, catalogados, seus óvulos ou espermatozoides foram coletados e seus órgãos reprodutores foram esterilizados. Com o avanço da biotecnologia e o aprofundamento do estudo da genética, já era possível alterar o DNA de acordo com a vontade dos cuidadores. Cada casal poderia ter apenas uma criança. O que era mais do que suficiente, já que as doenças, imperfeições físicas e até desvios de caráter foram abolidos da genética humana.

Mais um dia monótono e irritante começava na maior e mais cara clínica de fertilização in vitro do país. O Dr. Frank Enstein, um senhor de idade avançada, de cabelos brancos e charme latino, um dia já amara apaixonadamente o seu trabalho. Agora estava cada vez mais enjoado com a estupidez, vaidade e futilidade das novas gerações.

-Então Sr e Sra. Silva, vocês estão prontos para decidirem como será o bebê?

-Estamos sim doutor. Já estudamos o catálogo e entramos em um consenso.

-Ótimo. Vamos começar então.

Os Silva estavam ansiosos, depois de muita conversa decidiram que seria bom criar uma criança. E a melhor parte seria escolher cada aspecto físico e psicológico.

-Vocês podem optar pelos vários pacotes promocionais, damos até cinquenta por centos de desconto em etnias pouco procuradas como a negra, asiática, latina, entre outras. Vocês estariam interessados?

-De jeito nenhum doutor. Queremos o melhor que o dinheiro pode comprar. –Disse o Sr Silva parecendo ofendido com tal proposta.

-Claro, claro. Como quiserem. Já decidiram o sexo?

-Vai ser um menino. – Diz o Sr Silva com uma voz grave e orgulhosa, que combina bem com seu aspecto forte, saudável e de aparência distinta, mas muito comum naquela época.

-Tem certeza? O número de meninas tem caído drasticamente nos últimos tempos, se continuar assim vamos ter que intervir, senão a espécie humana estará em risco.

-Mas doutor, nós preferimos mesmo um menino. Fazemos questão! –Disse a Sra. Silva, olhando para o marido em busca de aprovação. Tinha uma aparência impecável e sem graça, que combinava muito bem com sua falta de inteligência espontânea e criativa.

-Tudo bem. Vamos continuar.

O doutor não sabia onde a humanidade iria parar se os futuros cuidadores continuassem seguindo modinhas e apenas gostos pessoais na hora de encomendar uma criança. Não podia nem pensar isso em voz alta, mas achava que desde que os homens começaram a brincar de ser deus que a espécie humana entrou em queda livre. Ele não queria estar presente quando a futilidade humana alcançasse o ápice. Parou de devanear e prestou atenção ao trabalho que estava fazendo.

-Etnia?

-Branca, é óbvio. –Disse a Sra. Silva revirando os olhos.

– Altura?

-Um metro e noventa e cinco centímetros. –Disse o Sr Silva prontamente.

-Índice de massa corporal?

-Vinte.

-Tem certeza? Com quase dois metros e só vinte de IMC, vai ficar desproporcional.

-Desculpe doutor, mas os cuidadores somos nós, queremos que ele seja muito alto e magro. –Disse a Sra. Silva com ar um tanto ofendido.

-Claro. –Disse o doutor reprimindo a desaprovação e enfado que sentia.

-Cabelo?

-Liso e loiro, é claro.

-Estrutura facial?

-Ocidental, mais precisamente a europeia.

-Cor dos olhos?

-Azuis.

-Porte físico?

-Atlético.

-Ótimo, acabamos o aspecto físico. Vamos tratar do intelecto. Qual vai ser o Q.I?

– Na média, não queremos que ele seja discriminado por ser inteligente demais ou de menos. –Disse a Sra. Silva com um ar de quem entendia do assunto.

O doutor teve que usar toda a sua ética e profissionalismo para não rir e continuou:

-Crença?

-Ateu.

-Visão política?

-Capitalista de esquerda.

-Profissão?

– Pensamos muito a respeito disso e queremos que ele tenha uma profissão que dê muito dinheiro e tenha pouco trabalho, então decidimos que a melhor opção é a política. –Disse o Sr Silva com muita convicção.

-Sei. Um político com um Q.I mediano é tudo o que precisamos.

Os Silva pareceram não notar a ironia.

-Personalidade?

-Sanguíneo e Colérico. Acho que dá pra misturar, não é doutor? –Disse a Sra. Silva ansiosa.

– Claro, porque não? Acho que já temos o suficiente. Amanhã vocês poderão voltar para o procedimento.

-Mas já, doutor? No catálogo ainda tem várias perguntas.

– Já deu para perceber o que vocês querem.

– O senhor poderia tirar algumas dúvidas?

-Claro. –Disse o doutor com irritação aparente.

– Ele não terá o nosso DNA?

– Não. Claro que não. Como está explicado no catálogo, para cumprir todas as suas expectativas teremos que usar partes de vários DNAs.

– Sei, e o nascimento? –Disse a Sra. Silva com uma apreensão aparente.

– Não se preocupe. A Sra. terá uma gravidez normal e sem incômodos, seu DNA foi programado para isso. O parto será normal induzido por drogas. A Sra. estará dormindo, quando acordar seu bebê estará em seus braços e não haverá nenhuma lembrança embaraçosa ou constrangedora.

-Ótimo. Obrigada doutor.

-Não se esqueçam que não aceitamos devoluções. Paguem o preço integral na saída. Nos vemos amanhã, nesse mesmo horário.

Depois que os Silva foram embora, o doutor ainda ficou um bom tempo pensando. Seu DNA não fora modificado, já que havia nascido antes do começo da Nova Era e dava graças a Deus por isso. Quanto mais ele se aprofundava no estudo da genética, mais se perguntava se era certo tirar o livre arbítrio dos seres humanos dessa forma. Ter outras pessoas decidindo cada aspecto de sua personalidade e caráter era assustador, muito mais até do que a parte física. Lembrou-se de uma citação dos antigos, sobre uma pedra que é lançada por alguém e no meio do caminho toma consciência e acha que está no controle de seu vôo, não sabendo que seu destino já havia sido determinado. Essa geração era como aquela pedra.

***

Tudo correu esplendidamente bem no parto da Sra. Silva, até o bebê ser mostrado para o Sr Silva.

-Mas o que é isso? Alguma brincadeira? Porque o meu filho é negro?

-Foi como vocês escolheram. Tudo conforme o protocolo. E não é ele, é ela. Não é linda? –Disse uma jovem enfermeira, simpática e desinibida.

-Uma menina negra? Mas não foi isso que eu pedi, de jeito nenhum.

-O Sr vai ter que falar com o doutor então.

-Pois então vá logo chamar ele.

-Fique calmo, não é o fim do mundo, o doutor virá quando tiver que acordar a Sra. Silva. Enquanto isso as enfermeiras cuidarão da sua filha.

-Não é minha filha. Mas que absurdo!

A Sra. Silva acordou como que de um sonho bom, estava muito bem humorada e revigorada. Nada como dar a luz para que uma mulher se sinta completamente bem.

-Olá querido! E então? Nosso bebê é o mais lindo de todos?

-Escute querida, ocorreu algum engano, fique calma, por favor.

-Como assim, um engano?

-Você deu a luz a uma menina negra. Querida, o que aconteceu? Por favor, acudam, a Sra. Silva desmaiou!

Quando a Sra. Silva recuperou a consciência, só conseguia pensar em como explicaria para suas amigas a sua situação.

-Querido, como vamos criar um bebê que não fomos nós que projetamos?

– Tudo vai dar certo, assim que o doutor chegar teremos um esclarecimento.

-Não sabemos nada sobre ela. Não somos selvagens para criar uma criança que não temos ideia do que vai se tornar, afinal de contas, quem foi que escolheu essa criança? E porque ela veio parar no meu útero?

A Sra. Silva já estava descontrolada quando o doutor chegou. Entrou calmamente no quarto aparentando ser o homem mais inocente do mundo.

-Me digam, o que aconteceu?

– Olhe o Sr mesmo. –Disse o Sr Silva apontando para o pequeno berço onde dormia alheia a todo o drama, uma menininha rechonchudinha, com cabelinho encaracolado e lábios desenhados perfeitamente. Parecia uma bonequinha.

-Estou vendo…

-O que o Sr tem para falar sobre isso?

-Ah, isso… Na verdade isso foi um erro meu. Já estou velho e cansado, peço que me perdoem.

-Perdoar? Como poderemos te perdoar? Vamos ter que ficar com ela? –Disse desesperada a Sra. Silva.

-Não. Eu ficarei com ela. Vou criá-la como se fosse minha.

-E o nosso filho?

-Daqui a seis meses a senhora poderá voltar para uma nova fertilização, por minha conta é claro. Já reportei meu erro para o corpo médico e me desliguei da clínica. Um novo médico cuidará do seu caso.

***

O Dr. Frank saiu da clínica carregando seu bebê nos braços como se fosse seu bem mais precioso. Na verdade ela era mesmo. Aquela linda menininha carregava em seu DNA toda a pesquisa do Dr. Frank, era sua obra prima, o ser humano mais próximo da perfeição. Apesar do aperfeiçoamento do DNA do bebê, o doutor teve o cuidado de não interferir em sua personalidade e caráter. Iria criá-la como os antigos. Deixaria que ela escolhesse suas crenças e princípios, ela seria livre.

Olhando em seus olhinhos pretos como carvão, parcialmente ocultos por cílios enormes, o doutor sorriu, tinha grandes planos para essa pequena tão especial. Deu um beijo delicado na testa do bebê e foi para casa, onde tudo já estava preparado para a criação e educação da menina.

Seu nome será Sarah Manning, e ela será a responsável pela queda desse império de clones, não clones científicos, mas aqueles ditados pela moda e futilidade. Ela será a esperança da humanidade.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 19/12/2016
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