A ceifa - Capitulo 1

Riordam olhou mais uma vez para o céu. O dia era de um azul quase translucido. Nenhuma nuvem no céu. Só um risco de fumaça branca cortando a abobada celeste de um horizonte ao outro. A fumaça já começava a se dispersar com suas bordas cada vez mais imprecisas, desfazendo-se sob o efeito de alguma corrente de ar nas camadas mais altas.

As montanhas já estavam se cobrindo de flores de sangue, mudando o branco das neves invernais para o seu tom escarlate que anunciava a chegada da primavera. A profusão de flores de sangue indicava que teriam uma primavera boa e que os alimentos seriam fartos. Caça farta significava pouca ou nenhuma disputa entre os clãs. No extremo esquerdo da encosta a Queda do Trovão resmungava enquanto as primeiras águas da primavera começavam a romper o gelo do inverno. O som do gelo se dilatando espalhava-se por todo o vale, mas o rio ainda estava sob a camada maciça de gelo, uma faixa reluzindo sob o sol matinal como uma faixa prateada que se perdia nas curvas distantes no sopé das montanhas Almirante. Foram longos doze anos de inverno, o rio da artilheira congelara até o seu nível mais profundo.

Riordan estava animado, ele entrara nas trevas do inverno como um pré-homem, mas doze anos depois, ele emergia para a primavera como um adulto. Ele passara por seu Dork Avul Rha, o ritual da maturidade, durante as noites perenes do inverno. Lutara e matara seu primeiro Urso Lobo com uma faca de obsidiana e fizera sua capa de inverno com a pele cinza, quase branca, do Urso Lobo, tudo como mandava a tradição. E agora que a primavera chegava poderia tomar uma mulher para si. Riordam sabia de sua sorte, tornar-se homem na noite invernal era uma honra. Durante a primavera os Ursos Lobos ficavam lentos, ainda mortais é claro, mas nem de longe parecidos com a avalanche de garras, dentes e rabo em esporão que eram durante o inverno.

Ele flexionou os músculos dos braços e sorveu o ar ainda gelado com prazer. No vale, à encosta do morro, ele podia ver os filetes de fumaça saindo das quase duas centenas de casas. As mulheres estariam preparando sopas de Nabos azuis, e carne de Ovelhas, queijos e linguiças de carne de bodes. Aqui e ali ele podia ver um e outro caçador retornando. Dava para notar pelo andar, mesmo a esta distancia, que o peso que carregavam era grande, indicando caça farta.

Ele esticou e contraiu seus braços mais algumas vezes. Satisfeito simplesmente por estar vivo. Sorvendo cada respiração com um prazer quase sexual. A caçada havia sido dura, o macaco aranha havia sido uma presa de respeito. Mas ele fora mais capaz. Sua caçada lhe rendeu pelo menos 40 Kilgrons de carne azul de macaco aranha, e quase a metade disto de gordura para as lâmpadas de sua família, sem contar a pele do macaco. As peles de macacos azuis eram muito cobiçadas. Não só pela bela padronagem da pele, com os tons variando do azul mais escuro até um branco azulado, mas pela resistência da mesma.

Riordam apertava as correias de sua bolsa de caça quando ouviu o farfalhar furtivo. Apesar da relativa pouca idade, ele tinha os instintos de um caçador. Sem demonstrar que tinha ouvido algo, ele, discretamente mudou os pés de posição, proporcionando uma base firme. A mão esquerda deslizou de forma natural ate a fivela de seu cinturão e empunhou o cabo da adaga de presa de porco gigante. Seu corpo se torceu de forma displicente, entretanto acumulando toda a força de seus músculos nos quadris. Assim nesta posição aparentemente descuidada foi que ele ouviu uma corda de arco estalar e o sibilar de uma seta.

Ele girou rápido enquanto com a mão direita descrevendo um arco perfeito apanhou a seta em pleno voo. Girou ao redor do próprio eixo e aproveitando o impulso do corpo arremessou a seta no mesmo local de onde ele saíra. Ele não tinha muita esperança de acertar seu agressor. Mas o movimento faria com o que o atacante se movesse e revelasse a sua posição.

- Ei, cuidado com isto. Você pode acertar o olho de alguém!

- Leordam seu idiota!!!!

Riordam bradou, visivelmente irritado. Sentia cada músculo tremendo devido à descarga de adrenalina, ainda sentindo o maxilar retesado e a musculatura pedindo a luta que não viria. Um jovem, aparentando a mesma idade de Riordam saiu de traz da arvore à direita de onde a seta fora devolvida. Trazia um sorriso imenso no rosto. Seus braços eram tão musculosos como os de Riordam, mas sua cabeleira era de um vermelho vivo, enquanto a de Riordam era negra. Ambos traziam nas cinturas adagas de presas de porcos gigantes. Tirando as cabeleiras de cores diferentes poderiam ser imagem especular um do outro.

- Irmão, você esta muito estressado. O tom de Leordam era visivelmente jocoso.

- Você sabe que poderia ter me matado com aquela droga de seta?

- Hah, eu já tinha te visto ficar em posição de alerta. Alem do mais, eu atirei a vinte centímetros à sua direita. Nunca iria te acertar.

Riordam balançou a cabeça desanimado, não adiantava ficar irritado com Leordam. Sempre fora assim, nascidos gêmeos, entretanto Leordam era bem diferente dele. Enquanto Riordam era quase soturno seu irmão estava sempre rindo. Desde criança era assim. Sempre juntos, mas Leordam sempre mais alegre e descontraído. Passaram pelo Dork Avul Rha na mesma época, mas enquanto Riordam entrou no salão dos ancestrais ostentando uma sobriedade serena carregando seu urso lobo, Leordam entrou carregando o seu com o braço esquerdo em frangalhos. Quando todos correram para ajuda-lo ele só disse. - Gente, vocês precisam ver como ficou o outro cara! Isto foi motivo de risos por quase meia hora e até hoje a historia é contada nos encontros de caçadores que estavam presentes.

Riordam não tinha ciúmes. Amava demais Leordam. Mas tinha vezes em que ele simplesmente lhe dava nos nervos.

- Ei venha me ajudar a pegar a minha caça aqui, este troo esta pesado pra caramba.

Riordam olhou espantado para Leordam, suspirou de forma longa e resignada e foi ajudar seu irmão a pegar a sua caça. Leordam moveu-se displicentemente, assobiando uma musica qualquer.

- O que você caçou irmão?

- Macaco aranha, adulto. Boa caça. E você?

- Uau, macaco aranha! Bela caçada, você sempre pega os melhores.

- Sei, sei. O que você caçou afinal?

Leordam acenou de forma teatral, mostrando um enorme embrulho encimado pela cabeça de um rinocero vermelho. O enorme chifre rubro rebrilhando de forma quase obcena sobre o embrulho encerado.

- Um rinocero vermelho! Você matou um rinocero vermelho!!!!!

- Todo mundo dá sorte um dia. Leordam disse de forma quase envergonhada, enquanto olhava para os próprios pés como uma criança encabulada.

- Como você conseguiu? É quase impossível atravessar a couraça deles. Excetuando olhos, boca e a linha ventral eles são praticamente impenetráveis.

- Bom, eu o acertei exatamente na linha ventral.

- Mas como? Como conseguiu?

- Sabe, é até engraçado. Eu estava verificando umas armadilhas para raposas de fogo que eu havia deixado no vale. De repente eu ouvi um trovejar descendo a encosta e lá estava o rinocero vermelho descendo o morro como se fosse uma avalanche. Eu não pensei duas vezes e disparei numa corrida para a árvore mais próxima. Só que árvore mais próxima estava a uns duzentos metros de onde eu estava. Eu saquei minha faca para tentar saltar e ficar pendurado nela, eu sabia que não ia dar tempo de escalar. Só que não estava dando muito certo, bicho corria mais que eu. Eu já estava sentindo fungar nas minhas costas, quando eu tropecei num buraco no chão. Eu cai girando o corpo e com a faca de obsidiana virada para cima. Mais por reflexo que qualquer outra coisa, diga-se de passagem.

- O rinocero passou por sobre mim como se fosse um cargueiro. Por pura sorte minha faca pegou exatamente na linha ventral. O bicho me deu um banho de sangue e tripas e caiu uns cinco metros adiante.

Riordam olhou para o irmão. Os olhos imensamente arregalados e a boca aberta.

- E o que há de engraçado nisto? Foi uma sorte imensa.

- O engraçado foi que eu cai porque enfiei o pé numa toca de raposa de fogo; e a miserável mordeu meu pé. Doeu pra caramba.

Os dois se olharam por um longo minuto e explodiram numa gargalhada uníssona que ecoou por todo o vale.

Riordam tinha lagrimas nos olhos quando finalmente conseguiu parar de rir.

- Vamos descer, tenho certeza que todos ficaram impressionados com a sua caça.

Leordam acenou com a cabeça, enquanto enxugava as lagrimas do riso do rosto.

As duas figuras rústicas desceram a encosta arrastando as duas padiolas feitas de galhos de arvores trançados. Cada qual arcando como o peso de sua caçada. Suas roupas de peles agitando-se no vento frio que subia das encostas das montanhas. As facas de obsidiana rebrilhando enquanto andavam.

No sopé da montanha uma centena de cabanas rústicas compunha a paisagem do final do caminho, suas ruas compostas de pedras cortadas grosseiramente e encaixadas formando um piso grosseiro, mas mesmo àquela distancia se mostrando extremamente limpas.

De cada lado do caminho a vegetação erguia-se quase até a altura da cintura e pequenas borboletas tigre voavam de ramo em ramo, enquanto enxames de abelhas passavam rapidamente, aproveitando o orvalho que ainda pedia dos ramos de capim. O caminho de cascalho muito branco contorcia-se sob as botas rústicas de couro.

No céu azul sem nuvens os dois sóis já estavam à mostra aquecendo de forma suave a atmosfera. Um troar distante crescia continuamente, enquanto vindo do oeste em direção ao leste uma forma prateada crescia rapidamente.

A nave vigia cortou o céu exatamente sobre a cabeça dos dois irmãos.

Nenhum dos dois deu atenção.

Longshot
Enviado por Longshot em 02/07/2017
Código do texto: T6043216
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