Deu branco
O lugar havia sido um cinema... no tempo em que as pessoas frequentavam cinemas. Agora era apenas um grande salão repleto de poltronas empoeiradas e com cheiro de mofo, chão sujo, e paredes manchadas. Por algum milagre, a tela ainda estava no lugar e intacta, embora cheia de nódoas. Entramos pelo corredor central, lanternas em punho, e paramos em frente à ela, numa atitude reverente.
- Você se lembra? - Perguntei.
Ela fez que sim com a cabeça, olhos semicerrados.
- Nós tiramos uma foto aqui... com a tela ao fundo. O filme ainda não havia começado, as luzes estavam acesas.
- Eu me lembro - respondi.
- Você havia comprado pipoca e eu reclamei porque você mandou colocar manteiga. Eu não gosto de pipoca com manteiga...
Hesitou, como quem tenta concatenar detalhes já esquecidos.
- Porque suja as mãos e você não quer ter que sair no meio do filme para lavá-las... - ajudei-a.
Um brilho de reconhecimento passou por seus olhos.
- Isso...
E voltando-se para mim, com surpresa:
- Mas... por que então mandou colocar manteiga?
- Por que sou seu irmão mais velho. E quis te irritar.
Ela cobriu o rosto com as mãos e riu.
- Você é mau!
- Sou um irmão mais velho mau... - reconheci.
Ela me olhou entre deliciada e indignada.
- Por que você fez isso?
Apertei delicadamente o pulso direito dela.
- Para que você se lembrasse. Se houvesse apenas felicidade, estas memórias já teriam se desvanecido.
Ela fez um esgar de dor, embora eu não estivesse apertando com tanta força assim.
- Eu não quero perder minhas memórias!
- Então cante para mim a canção do filme que nós vimos aquele dia...
Ela arregalou os olhos. Apontou o facho da lanterna para a tela enodoada.
- Sim... algo sobre um último beijo e adeus...
Levou a mão livre à cabeça, ar de desespero.
- As memórias... parecem estar se apagando... eu não quero perder minhas memórias!
Passei um braço em torno dos ombros dela, amparando-a, e cantarolei, baixinho:
- "One more kiss, dear, one more sigh
Only this dear, is goodbye"...
Cabeça repousada sobre meu ombro, ela murmurou:
- Promete... promete que não vai deixar minhas memórias irem embora?
- Eu prometo - respondi. - E mesmo depois que você se for, suas memórias estarão comigo.
Ela ergueu a cabeça, olhos brilhantes de esperança.
- Promete?
- Prometo.
- Todas elas?
- Todas elas... mesmo as mais idiotas. Como a do gatinho que você tentou vestir de bailarina... e ele arranhou a sua mão...
Ela abriu a boca, como se tivesse engasgado com alguma coisa. Finalmente, me encarou.
- Como é a morte?
- Como posso eu dizer? Quem para lá vai, não volta para dar detalhes...
Ela balançou a cabeça, negativamente.
- Eu sei como é a morte - afirmou.
- E como é?
Ela declarou, lentamente:
- A morte é esquecimento...
- [18-09-2017]