Entropia

Escrito entre 1997 e 1998. Baseado em Neuromancer de William Gibson:

A expectativa era evidente no rosto de todos os tripulantes da nave. Em poucos minutos, as primeiras imagens do Planeta-Mãe apareceriam na gigantesca tela de imagem da ponte de comando e daí para todos os demais hangares.

Era um momento histórico, depois de milhares de amos, eles seriam os primeiros a ver e talvez a pesar no solo do Planeta; o que estava para acontecer seria inesquecível.

Quando o Planeta-Mãe começou a surgir nos monitores da nave, todos ficaram atônitos com o que viram. O Planeta era quase todo coberto por oceanos.

Por alguns momentos, todos contemplaram aquela imagem mítica pelos monitores e cada tripulante se indagava sobre o que teria levado os seus antepassados a abandonarem aquela esfera de um azul tão hipnótico. Ninguém conseguia imaginar por que.

As primeiras varreduras detectaram uma variedade imensa de ecossistemas marinhos e terrestres, mas não foi detectada nenhuma forma de vida inteligente, exceto pela presença de várias espécies de cetáceos.

Apesar disso, os instrumentos captaram o que pareciam ser as ruínas de uma cidade, o mais intrigante é que as leituras indicavam uma intensa atividade logo abaixo das ruínas.

A fim de investigar esse estranho fenômeno, uma equipe de exploração foi organizada para descer à superfície.

A sonda dos exploradores levou quase três minutos para aterrissar. Usando trajes de isolamento por precaução, eles vasculharam as imediações a procura de alguma entrada para o subsolo. Impressionaram-se com o estado de conservação da cidade, era como se ela nunca tivesse sido abandonada. Não havia nenhum animal selvagem transitando e nem mesmo a selva invadiu os prédios. Com certeza era bem antiga, mas não existia nenhum sinal de abandono; a não ser pela ausência de pessoas.

Quando ainda estavam procurando algum tipo de passagem para o subsolo, um dos exploradores ouviu alguma coisa se movendo a passos ritmados para uma rua transversal. Rapidamente ele alertou os outros e todo o grupo começou a seguir um dróide.

Ele caminhava ininterruptamente sem se importar com a presença deles. Depois de uma hora de caminhada, o dróide desceu um lance de escadas que levava até as instalações inferiores da cidade. Sem pensar duas vezes o seguiram.

Depois de uma longa descida por lances intermináveis de escadas, ficaram abismados ao verem a complexidade das instalações inferiores. Por todos os lados, podia-se ouvir o som de máquinas trabalhando a todo vapor e viam-se também robôs andando de um lado para o outro fazendo os mais diversos trabalhos.

As instalações subterrâneas se projetavam por cerca de 20 andares no interior da terra, além de estar infestada por um exército de autômatos trabalhando sem descanso para manter tudo funcionando… Mas com que objetivo? Uma das perguntas na mente dos exploradores.

Para tentar respondê-la e a várias outras, começaram a investigar tudo em volta à procura de algum indício que lhes mostrasse o objetivo de tudo aquilo, só não sabiam exatamente o que estavam procurando.

Dessa vez, o grupo decidiu se separar para tentar cobrir uma área maior e acelerando assim a investigação. O contato entre eles se manteria através dos comunicadores embutidos em seus trajes.

Depois de algum tempo de separação e procura, um deles contactou os outros desesperado e disse para que eles fossem rapidamente para suas coordenadas. Quando lá chegaram, o que os havia chamado estava sentado junto à parede com uma expressão de terror no rosto e os olhos cheios de lágrimas.

Só se deu conta da presença dos outros porque um deles chamou sua atenção e perguntou o que tinha acontecido. Reflexivamente, ele apontou para uma porta logo à frente. Movidos pela curiosidade, deixaram seu amigo sentado onde estava e entraram no lugar para onde ele apontou.

O que viram lá dentro os deixara horrorizados. Tanques e mais tanques cheios de algum tipo de solução criogênica com pessoas mergulhadas em posição fetal dentro de cada um deles.

Cada pessoa estava conectada a um emaranhado de fios e dispositivos tecnológicos indo da cabeça até o final da espinha dorsal e por sua vez, cada tanque estava ligado a um artefato tecnológico em forma de estrela no centro da sala, este último de acordo com a leitura de seus instrumentos. Há quanto tempo estavam ali? Estavam vivos ou mortos? Perguntas como essas assaltavam a mente de todos naquele momento.

A aparência daquelas pessoas era angustiante, embora ainda se parecessem com os exploradores, seus corpos estavam deformados e desnutridos... Por que estavam naquela situação?

A dúvidas eram muitas e as respostas para elas não viriam com facilidades, seria necessário encontra-las, mas nem mesmo sabiam por onde começar.

O primeiro passo era manter a calma e pensar racionalmente. Sabiam apenas que a sala era imensa e possuía centenas de tanques criogênicos com pessoas mergulhadas neles, dispostos em círculo ao redor do artefato no centro.

Através dos sensores de seus trajes, descobriram que a ligação entre os tanques e o dispositivo central era feita por cabos de algum tipo de fibra ótica, o que era estranho, pois esse tipo de material não conduz energia elétrica, apenas informação.

A partir disso a única conclusão lógica a que puderam chegar foi a de que aquele artefato estrelado era a chave para suas dúvidas. Concentraram todos os esforços na análise do dispositivo.

A primeira vista ele não tinha nada de especial. Prateado, cerca de um metro de diâmetro e fixado numa coluna de um metro e vinte; totalmente perfeito, sem fissuras, emendas ou junções.

Sua estrutura interna era notável. Milhões de nanoprocessadores trabalhando em conjunto, mantendo os tanques devidamente refrigerados e outras funções ainda desconhecidas.

Havia algum tipo de mecanismo interno de ativação, só que os instrumentos dos exploradores não encontraram nenhum contato entre esse mecanismo e o estranho metal que recobria a estrela.

Existia também uma marca em forma de mão localizada perpendicularmente ao centro da estrela. Um dos exploradores toco-a por impulso para ver o que aconteceria, mas não houve nenhum resultado, logo em seguida um outro tentou a mesma coisa, mas desta vez sem luvas.

A reação foi imediata, o metal por baixo da mão do explorador moldou-se a ela como água, permitindo-lhe sentir o funcionamento dos mecanismos internos da estrela. Um pouco assustado, ele rapidamente retirou sua mão da marca e recolocou a luva como se esta fosse necessária à sua sobrevivência.

Em seguida a parte superior da estrela começou a se abrir e de dentro dela uma plataforma com formato de losango com um pequeno cristal no meio emergiu.

Imediatamente, o cristal passou a emitir um brilho pulsante; logo a imagem de uma pessoa idosa se formou imediatamente acima do dispositivo.

No início, a imagem era estática, um senhor de idade avançada, cabelos brancos e com uma expressão de tristeza no rosto. Segundos depois, ela adquiriu vida e começou a falar, sua expressão ficou ainda mais triste e pensativa:

- Se estou falando agora, então alguém ou alguns estão escutando esta gravação. Por favor, ouçam com atenção o que irei relatar, pois disto pode depender o destino de sua raça.

- A história de nosso mundo que vocês não conheceram está repleta de conquistas, dores e sofrimento; e espero que tal história já tenha sido esquecida por todos vocês, pois são lembranças de um passado terrível demais para ser lembrado. Contarei apenas o mais importante desta história.

- Por milênios a fio, nós nos degladiamos em guerras se sentido e dividimos o mundo com tantas fronteiras que no final, não sabíamos quem era amigo ou inimigo.

- Durante muito tempo também, nossa tecnologia avançou de forma extremamente lenta, mas a partir de uma certa época milênios atrás, nossa civilização passou a avançar rapidamente para o que somos hoje.

À medida que ele falava, imagens foram surgindo à sua esquerda, mostrando a evolução daquela civilização desde os seus tempos mais primitivos até seu apogeu tecno-social.

- Mas a mesma tecnologia que tornou nossa vida mais confortável, não foi capaz de nos libertar de nossos instintos mais primitivos.

- Não digo isso com orgulho, mas além de usarmos a tecnologia para melhorar as condições da vida de todos, também a utilizamos para semear destruição e guerra por todo o planeta.

- A violência sempre fez parte de nós e sempre nos dividimos em grupos, porque nunca fomos capazes de permanecermos unidos. Ao dominarmos o meio-ambiente que nos oprimia, ficamos apenas mais capazes de destruir aquilo que nos ofendia: o nosso próximo.

- E como se não bastassem a guerra e a destruição, também transmitimos a fome e sofrimento a tudo que respirava.

Novamente, à medida que ele falava, imagens surgiram à sua esquerda mostrando cenas incrivelmente chocantes de guerras, fome e violência impensáveis para os exploradores:

- Mas apesar de tudo, houve momentos de paz na nossa civilização. Momentos em que pensamos ter finalmente alcançando a harmonia entre todos os seres.

- Só que essa harmonia veio tarde demais, pois, nós a alcançamos, porque não havia mais nada para destruir e nenhum povo para ser conquistado ou dizimado. Não havia mais nada para consumirmos com nosso ódio mesquinho, transformamos o nosso planeta num monumento à tristeza, ao sofrimento e a desolação.

- Vivendo mim mundo decadente e sem esperança, muitos de nós optaram por esquecer a realidade que nos oprimia e fizemos isso criando nossos próprios mundos através dos computadores.

- Foi a solução perfeita para muitos, desde que haviam sido criados, os computadores não pararam de evoluir, chegando a ponto de podermos criar através deles, um tipo de realidade alternativa a qual denominamos, no princípio de realidade virtual, mas depois de vários avanços, essa realidade ficou sendo conhecida como CIBERESPAÇO.

- No início, nos conectávamos a esses mundos virtuais apenas para escapar um pouco da nossa dura realidade. Só que mais e mais pessoas começaram a ficar defendentes disso, passando mais tempo dentro do “Ciberespaço” do que na realidade exterior, tornaram-se incapazes de viver fora da sua ilusão consensual.

- Mas havia aqueles entre nós que tiveram mais força e preferiram tentar consertar um mundo que estava praticamente morto.

- Através de seus esforços, conseguiram descobrir uma forma de recuperar o ecossistema do planeta e assim alcançar seus objetivo máximo. Mas a alegria da descoberta veio com uma preocupação: levaria muito tempo para que o ecossistema planetário se recuperasse totalmente mesmo com suas descobertas, seriam necessários alguns milhares de anos.

- Isto pôs dúvidas em suas mentes. Será que estaríamos dispostos a esperar tanto tempo para ver o nosso mundo renascer? E mais, as gerações futuras teriam paciência para esperar a recuperação completa do planeta antes de usufruir seus recursos renovados? A resposta era simplesmente, não.

- Nossa civilização estava se deteriorando rápido demais para esperar por tanto tempo pela recuperação do planeta, e eles temiam que outras gerações regressassem à antiga violência de nossa raça. Então, seria melhor abandonar o nosso mundo e deixá-lo se recuperar sozinho assim, a nossa raça e ele poderiam sobreviver.

- Ma foram necessárias algumas décadas para que desenvolvessem a tecnologia necessária para a construção de naves estelares, pena que esta tecnologia chegou tarde para muitos de nós.

- Durante todo esse tempo, houve várias tentativas de reabilitar aqueles que não conseguiam mais viver fora do ciberespaço, mas nenhuma teve sucesso e o número deles continuava aumentando a cada dia. Por causa de nossa doença mental, nenhum de nós aceitou embarcar nas naves.

- Em virtude disso, as instalações que estão à sua volta foram construídas. Aqueles que partiram, não queriam nos deixar a mercê de uma realidade que desprezávamos; por isso, antes de partirem, construíram essas instalações para que pudéssemos viver aonde desejamos: no nosso ‘Mundo Ideal’.

- Era tudo perfeito, os tanques criogênicos nos permitiriam viver por milhares de anos a fio no mundo que criamos dessa da IA estrelada.

- Um exército de dróides havia sido projetado para cuidar da conservação e manutenção de todo o complexo perpetuamente. Não era preciso nos preocuparmos com nada, mas estávamos enganados.

- Milhares de anos depois da partida de nossos benfeitores, o mundo que havíamos criado se tornou vazio e monótono. Nosso sonho havia se transformado em nossa prisão e não podíamos sair dele.

- Não havia mais esperança entre nós porque já havíamos alcançado o que queríamos: a paz. Mas no fundo cada um de nós sabia que a havíamos conseguido nos escondendo da realidade que nos ofendia com sua existência. Era preciso escapar do mundo ideal, tínhamos consciência disso, só que não sabíamos como sair, portanto não tínhamos mais esperança para nós, pois havíamos esquecido o que era ter esperança.

- Então nos conscientizamos de que nos esquecer de algo também é muito importante: nós mesmos. Havíamos esquecido de nossas identidades como pessoas, do que era pertencer a uma raça ou a um povo, por isso não havia mais raça, povo ou civilização, havia apenas um grupo de seres estéreis de mente e corpo que haviam se escondido em seu próprio medo e acabaram tornando-se escravos dele, esquecendo sua identidade, seus ideais e seu espírito de luta.

- A solução para nós seria a morte, no entanto, sabíamos que devido a nossa condição, ela não viria tão cedo, então, teríamos que esperá-la, mas isso não importava, pois não nos importávamos mais com nós mesmos. No entanto, não podíamos deixar que o que acontecera conosco, acontecesse novamente.

- Então, me ofereci como voluntário para deixar esta mensagem gravada no cristal de memória da IA estrelada, pois caso alguém a encontrasse, os erros que nossa raça cometeu em toda a sua história. Talvez não fossem mais cometidos. Não pensem que fizemos apenas por um censo de dever muito forte, e espero que quando esta mensagem estiver sendo escutada e vista, já estejamos mortos.

- Por favor, guardem em suas memória o que acabaram de ouvir e ver. Não cometam os mesmos erros que nós, cometemos, para que sua raça, seja ela qual for, não sofra o mesmo que sofremos em toda a nossa história.

- Enfrentem todas as suas crises de frente, não fujam delas jamais, pois isso só aumentará sua derrota.

Nesse momento o velho ficou calado por alguns segundos antes de dizer: “Fim da transmissão”, então sua imagem desapareceu.

Logo depois, a estrela começou a se fechar e antes que ela se fechasse totalmente, um dos exploradores, cm muita destreza, retirou o cristal da plataforma em forma de losango e o colocou num compartimento em seu traje. Seus companheiros não aprovaram, mas entenderam sua atitude. Sem dizerem uma palavra, desligaram os tradutores e saíram calmamente da sala, haviam lágrimas no rosto daquele que pegou o cristal.

Do lado de fora, o explorador que os havia chamado ainda estava sentado junto à parede, mas suas lágrimas sumiram, agora ele apenas olhava pensativo para lugar-nenhum. Os outros desconfiavam que ele havia visto o mesmo que eles. Pacientemente, o pegaram pelos braços e saíram andando.

Duas horas depois, a sonda já estava cruzando a atmosfera. Dentro dela, todos olhavam uns para os outros sem dizer uma única palavra. Nesse momento, aquele que havia pegado o cristal, o tirou de seu traje e ficou contemplando-o. Percebeu imediatamente que haviam alguns caracteres em sua base, mas eram antigos demais para que pudesse lê-los.

O que os caracteres formavam era a palavra: “ENTROPIA”.