Como os mortos vivem

Hoje acordei sem abrir os olhos, feito uma fumaça se dissipando aos poucos .

Eu me levantei como quase sempre faço: Primeiro o pé direito , depois o corpo se estabelece num contra-peso.

Sempre fui muito supersticioso, ao ponto de achar encharcado na máquina de lavar um ou outro pé de coelho esquecido num bolso de calça, de nunca parar de ler um livro na página 13 ou quando os números somados dão 13.

Eu as vezes me pego pensando em ritos e acordos que meus antepassados possam ter feito pra que eu ficasse assim.

Fiquei sabendo a pouco tempo que meu avô me entregou logo que eu nasci num trabalho feito as margens de um rio .

Acho que herdei as sobras e as decadências de várias almas que me antecederam...

Só pode ser isso, só pode...

Voltando a hora em que coloquei meu pé no chão( o direito, é preciso lembrar), eu comecei a notar meu corpo um pouco leve,

como se minha pressão tivesse tido uma queda brusca (e talvez tivesse tido mesmo), ou quem sabe aquele remédio contra

sinusite estivesse me presenteando com seus efeitos colaterais. Segurei com a força a parede , respirando fundo enquanto eu quase era tragado pra dentro de um túnel negro como a noite. Dei mais dois passos , e me encostei pesadamente na parede bege do meu quarto.

Meus olhos brilhavam junto com milhares de pontinhos que dançavam a minha frente como uma valsa de vaga-lumes.

Minha visão foi associando tudo aos poucos , fazendo par com minha respiração funda , pra acalmar meus batimentos e aliviar o cérebro.

Olhei em volta já com a nítida sensação de que algo estava errado. Nenhuma voz, nada na casa, que parecia até ecoar como as velhas casas de filmes de terror.

Minha janela estava aberta, e apesar de ouvir o barulho do vento e de ver como o pinheiro se jogava de uma lado para o outro, o quarto parecia estar lacrado e empacotado a vácuo.

Um suor frio descia pelo meu peito e minhas panturrilhas doíam como se uma chuva de pregos estivesse caindo sobre elas.

Olhei em volta. Aparentemente tudo normal, apesar do silêncio peculiar.

Meus pôsteres do Pink Floyd ainda estavam lá, junto com a bandeira da jamaica e a tradução de Redeption Song de Bob Marley.

A letra fala de redenção e liberdade , e de como um homem pode e deve tomar as rédeas do seu próprio destino.

Eu amava aquela música como nunca amei nenhuma mulher na vida , e enquanto meu corpo expirava de novo o conforto da resposta eu navegava naquela letra como se eu tateasse um corpo feminino.

Abri a porta com a voz de Marley lavando meu espírito, e andei pela sala deserta me perguntando onde estava todo mundo.

Meu corpo ainda estava um pouco tonto , e um bolo subiu rápido como um raio do meu estômago. Arqueei o corpo naquela contração estranha que antecede o vômito , abria a boca e mandei ver.

Pra meu espanto e um fino frio de medo , e apesar de sentir o jorro grosso despencar pela minha boca ( incluindo um cheiro azedo que lembrava queijo estragado),nada tocou no chão. Nada . Era como se uma corda tivesse machucado minha garganta e no fim tivesse dado um arroto curto.

Mas eu senti. Senti o gosto ocre , senti o cheiro de uma estômago remexido e não vi nada.

Agora eu suspeitava que a minha mente me pregava uma peça. Ou quem sabe eu dormia ainda.

Talvez fosse isso .

Eu estava num sono pesado e meu corpo passava por algum problema noturno que me deixava sequelas estranhas.

Não era verdade que os barulhos do ambiente entram nos nossos sonhos como puxados por um imã?

Então , feito.

Era isso...

Apalpei minhas pernas certo de que sentiria o lençol da cama , mas só elas estavam ali .

Eu devo ter chutado eles pra longe durante o pesadelo.

Percorri mais alguns passo e ao entrar na cozinha ouvi um barulho fino logo atrás de mim , como pequenas batidas no chão da casa.

O gato da minha irmã correu focado até onde eu estava um pouco antes , e se abaixando começou a passar a língua um pouco acima do piso.

Era como se ele sorvesse algo , pois sua garganta mostrava um bolo que descia a cada duas ou três lambidas. Olhei pra ele assustado , me lembrando

do vômito imaginário de alguns instantes atrás.

Sai dai Sadam...

Minha voz cortou o ar de uma maneira tão rápida que ele fez com que ele olhasse pra mim antes mesmo que eu soltasse as palavras.

Ele deu um chiado rouco, alguns passos pra trás e arrebitou a rabo , parecendo querer se vingar de mim por atrapalhar sua comida imaginária.

Olhei pra ele e vi de relance o relógio digital amarelo da Skol no meio da parede , ele marcava três da manhã do dia 13 de maio .

Porra , olha o 13 aí...

Olhei automaticamente pro Cássio no meu pulso e ele estava lá , sem os ponteiros dos segundos se mexerem, e com o grande no 12 e o pequeno encostado no 3.

Balancei a cabeça querendo desanuviar minha mente que começava a questionar a veracidade daquilo tudo e decidi molhar um pouco o rosto,pra quem sabe assim acordar molhado e aliviado na minha cama dali a poucos segundos.

Abri a torneira da cozinha e a água desceu doce pelo cano , levei minhas mãos até ela e ela passou direto seguindo seu rumo pela pia reluzente de mármore.

Meu coração deu leves sinais de alertas que forem repassados pro corpo inteiro enquanto eu tentava entender o que acontecia na minha frente.

Agora , pelo menos tenho certeza de que é um pesadelo. E dos bravos...

Fechei a torneira e minha testa franzia enquanto eu rodava aquela borboletinha dourada.

Olhei pro lado e vi um maço de Hollywood descansando células cancerígenas na mesa no centro da cozinha.

Agora seria uma ótima hora pra voltar a fumar , porque não? Desde que o doutor Reg........

Uma cachoeira de pensamentos inundou meus sentidos e trouxeram luz para aquela escuridão momentânea.

O último lugar que eu tinha estado era na urgência do hospital municipal de Ribeirão Das Neves, exatos 3 dias antes .

Naquele dia o médico mencionou que os resultados indicavam um tumor agressivo no estômago e em estado adiantado.

Eu tinha tido vômitos durante boa parte da minha vida , mas eles me fizeram procurar um hospital assim que me alimentar se tornou quase impossível..

A Quimioterapia tinha começado a dois adias , mas meu caso já tinha se agravado.

Eu deixei meu corpo físico e podre durante a terceira parada cardíaca, ontem as três da tarde, bem na hora em que outro homem um dia morreu crucificado, mas não menos sozinho...

Onde estraria todo mundo? Porque eu estava ali( agora eu escorregava pelo canto da parede , perto de um papel que caía agora no chão da cozinha).

Olhando atônito um papel surgir do nada e vir lentamente descendo. Coloquei a mão para pegá-lo mas ele, como se tivesse repensado sozinho , reverteu a queda e subiu de novo a poucos.

Alguns centímetros depois que subia, Sadam veio correndo e pulou na mesma direção do papel.

Ele tinha ficado me observado por todo esse tempo..

Só que ele permaneceu no ar , perto de onde o papel tinha sumido a instantes e seu pelo , subia e descia como ondas , ou como se alguém o acariciasse.

Minha nuca se arrepiou quando comecei a juntar aqueles pedaços perdidos com aquela realidade espantosa.

Eu estava morto?

Se sim , onde estaria aquela luz , ou quem sabe Deus?

Num trono de ouro , cercado de criancinhas , e animais a sua volta?

Este foi o fim do primeiro dia.

Pausa .

Último primeiro dia...

Me contento com o improvável e dou luz ao perecível. Eu vivo num mundo paralelo há exatos 13 anos , desde a minha partida. Minha única ponte com os vivos , é meu gato , que pula de um colo a outro , cercado de carinhos dois lados e espaços.

Ele vem até mim , me olha nos olhos e sobe lentamente , como se uma mão o levantasse. Aí ele desce num salto , enquanto eu ouço um sussurro breve vindo de longe. As vezes o pelo dele se eriça e ele corre de mim , outras vezes ele corre na minha direção. Acho que ele anda enlouquecendo . Outro dia ele provou sua ração e a trouxe até mim , deixando cair aquela bolinha marrom aos meus pés . Eu tentei pegar , mas não consegui . Eu tento tocar ,mas não posso. Estou aprendendo a me comunicar com o que pode ser a minha família através de um bicho.

Shakespeare tinha dito que existiam mais coisas entre o céu e a terra do que sonham nossa vã filosofia. E é verdade. Era um sábio. Um, gênio.

Minha vida / morte , se resume a tentar passar emoções através de um ser peludo que nunca sentiu nada na vida, a não ser fome e medo.

As vezes me pergunto: E quando ele morrer? E quando eles morrerem?

Há muito já não sei o que pensar e nem o que sentir.

Porque eu não vou?

Onde está a luz?

Eu não sei...

Eu só fito o espaço branco através da minha alma que enquadra na parede um relógio parado as 3 , na casa velha que descansa com o número 13 na fachada...

Amém...