A Terra Não é Mais Azul - Os Últimos Reis - Mercenários

Desde cedo da manhã o povo começou a sair de casa e se dirigir para os principais pontos da cidade, concentrando-se de preferência nas Avenidas Beira Rio e Borges de Medeiros ou se aglomerando na Praça da Matriz.

Um mar verde, amarelo e vermelho, invadiu as ruas de Porto Guaíba. Mais de duas mil pessoas de todas as classes, gêneros e idades, vindas de todos os cantos, foram às ruas da capital vestidos com as tradicionais cores do Reino do Sul, para recepcionar os mercenários do IEL, Imbatível Exército Livre, que chegaram por volta do meio dia desfilando montados em avestruzes, búfalos ou em bois zebus; traziam também dezenas de carroças lotadas com soldados ou com diversos tipos de armamentos como; espadas, lanças, escudos, arcos, flechas, machados e mais uns tantos outros que ninguém da plateia conseguia imaginar como utilizá-los. Vinham também tropas marchando a pé, que ao contrário dos costumes militares, não se mantinham organizados, nem sérios e muito menos compenetrados, vinham se misturando, cortejando as moças, bebendo de quem oferecia e vibrando euforicamente com o povo, gritando palavras de guerra que reforçavam a coragem da população. Por último, encerrando o desfile, pesados bumbos eram tocados simultaneamente causando arrepio em todos e ditando o ritmo de vinte pesadas catapultas sendo puxadas por gigantes touros marrons sem chifres.

No meio daquelas centenas de homens, se destacava recebendo maiores aplausos o galante Thales Augusto, já conhecido do público por suas façanhas de quando era Coronel da Cavalaria dos Soldados Búfalos. Vinha montado em um cavalo branco, calçava uns coturnos pretos bem engraxados, coisa muito rara de se ver, vestia uma calça vermelha e um casaco de general da mesma cor, devidamente ornamentado com condecorações que traduziam a sua história gloriosa, em suas costas uma capa negra que cobria o quarto traseiro de seu cavalo. Era um homem branco de trinta e cinco anos, de porte forte, cerca de um metro e oitenta e dois de altura. Entre suas principais características visuais, estavam seu sorriso branco, emoldurado pelo seu cavanhaque de cor castanho, um par de óculos de sol com lentes negras redondas que dificilmente os retirava, e em sua cabeça uma belíssima cartola preta, usava luvas de couro da mesma cor em suas mãos, uma delas escorada sobre o cabo da espada que pendia ao lado esquerdo de sua cintura, a outra segurava com leveza a rédea de sua montaria.

Desfilaram lentamente, por cerca de uma hora, sendo intensamente ovacionados com palavras motivadoras durante todo trajeto até a morada do rei, o Palácio Piratini, lá a rainha Ílda, o Assessor Real Ramiro, o Bispo Constantino e o General Ílio, os aguardavam de portas abertas, todos em pé no hall de entrada.

O exército vai tomando conta das ruas dos arredores, misturando-se com a festa do povo que gritava e celebrava. Diante o Palácio, Thales suspirando desmonta de seu cavalo e entrega as rédeas para um de seus companheiros, lentamente caminha imponentemente em direção à entrada com o vento balançando sua capa. Cumprimenta um a um, beija as mãos do bispo e da rainha, abraça o conselheiro e o General, neste último o abraço é claramente mais apertado e demorado. Thales segura com as mãos o rosto de Ílio e diz:

- Nossa senhora como tu tá acabado! Parece bem mais velho do que eu!

- De onde tu tá vindo não tem espelhos? Vai te enxergar!

Os dois soltam uma alta gargalhada, mas o bispo os chama a atenção pigarreando e fazendo movimentos inicialmente sutis com os olhos e em seguida exagerados com a cabeça, apontando para a porta do Palácio.

- Coronel, o Rei está lhe aguardando no escritório! Diz o assessor.

- Coronel já não mais Ramiro! Pelo meu título em Direito o amigo poderia me chamar de doutor! Mas no momento apenas comandante seria o mais apropriado!

- Vamos!

- Antes eu gostaria de discursar! Falou Thales retirando as luvas e batendo palmas chamando a atenção de todos. - É com muita satisfação que articulo estas palavras! A alegria em voltar a Porto Guaíba, é tão grande que de meu coração transborda a felicidade! E eu vejo este mesmo sentimento no olho de cada cidadão! Aliás, consigo enxergar muito mais, eu vejo nos olhos de vocês a esperança brilhando! A Capital do Reino do Sul, Porto Guaíba literalmente parou para receber o meu exercito, heróis com coragem de ferro, guerreiros destemidos que ajudarão a manter suas terras livres de qualquer usurpador! E que com certeza...

Ramiro com um grande sorriso falso no rosto, fingindo estar emocionado com aquelas palavras, interrompe o discurso discretamente apertando o braço de Thales e sussurra:

- Chega, vamos tratar de negócios! O Rei lhe aguarda no escritório!

- Calma! Fala o comandante do IEL com cara de dor esfregando o braço.

Os dois caminham pelos corredores iluminados pela claridade que entrava pelos grandes vidros das janelas.

- Então me diga! O que vai querer? Qual o seu preço? Somente o perdão real não lhe é suficiente?

Thales retira sua cartola, passa mão para dar uma ajeitada em seus cabelos castanhos, passa a língua molhando os lábios e diz:

- Não! Não vim aqui atrás de perdão! Não sou o Tibério, meu preço é somente um, e já está estipulado! Se Oscar se negar, dou ordem para meus homens, que já estão avisados, e em minutos tomamos a capital, entregando ela na bandeja para o Imperador Lácio!

- Não pense que será assim tão fácil! E por favor, cuide o que vai falar! Porque embora estejamos lhe concedendo um perdão real, o Rei jamais o perdoará e um dia vai lhe arrancar seus olhos e pendurar a tua cabeça ali no topo do obelisco! Pra ele tu sempre foi, e sempre será um traidor de merda!

Thales se irrita e desembainha sua espada levando ela em um movimento rápido até o pescoço de Ramiro, pressionando-a suavemente, mas o suficiente para fazer escorrer um filete de sangue.

- Vamos, continue! O Rei está sendo tolerante contigo, mas continua sendo o mesmo! Continue e tu vai te lembrar quem ele é! Então agora guarda esta tua espadinha de merda e vamos de uma vez! Diz o assessor afastando com a mão a espada de seu pescoço. – Vai me dizer o que quer ou não?

Sem jeito, guardando a espada Thales retoma a caminhada.

- Quanta curiosidade! Bom... Além do perdão real já oferecido, que eu gostei e agradeço muito! Gostaria que me fossem doadas as terras do extremo leste da capital!

- As matas e campos de Viamão?

- Exatamente! São a estas terras que me refiro! Este é a única exigência solicitada, caso Oscar se negue pegarei meus soldados e seguirei para o norte, além das fronteiras e explorarei o desconhecido.

- Você quer Viamão, pois acredita na lenda da represa Lomba do Sabão que dizem existir lá não é mesmo? Pelo amor de Deus, você continua um burro idiota que acredita em tudo o que lhe dizem! Não mudou nada! Não existem aquíferos e nem represas coisa nenhuma, nem possa d’água tem por aquelas bandas! Isto é uma lenda! O Rei Osório III gastou muita verba com expedições para tentar encontrar e a única coisa que tem lá é mata fechada! Mas se é uma lenda que você quer como pagamento, tudo bem. Após nos auxiliar na vitória sobre o inimigo, acredito que Oscar lhe dará aquelas terras, e ainda de lambuja levará quilos de ouros, litros de água e gado para poder recompensar seus homens com coisas reais!

Soltando uma risada debochada, Thales recolocando a cartola e ajeitando os óculos na ponta de seu nariz diz:

- Eu vou lhe contar um segredo! Thales passa a língua molhando os lábios e continua.

- Naquelas noites e dias que antecederam a nossa tão bem sucedida fuga da capital. Enquanto todos procuravam por a gente. Dionísio, Tibério e eu nos mantivemos escondidos dentro da Biblioteca municipal, e lá tivemos acesso a muitos livros e documentos! Nos detivemos nos mapas! Mapas de diferentes modelos e conteúdos! Tinha o atlas geográfico, com o Mapa-Múndi bem grande! Ele mostrava como o mundo deveria ser; seus países, continentes, bandeiras e tudo mais! Mas os que mais nos chamaram a atenção foram os mapas hidrográficos. Tinha vários, de todos os lugares, pegamos todos os que se tratavam da América Latina! Mas tinha um deles que nos chamou mais a atenção, digo, a minha atenção. O mapa que digo tinha uma escrita na borda externa, nós o abrimos! Tratava-se de uma represa, há séculos construída em Viamão, no mapa além da localização tinha diversas outras informações sobre tamanho, tipo de terreno etc. Certa vez me embretei naquele mato, e depois de dias sozinho abrindo trilhas a facão eu encontrei a coisa mais linda que eu já vi, enorme, brilhosa, algumas algas a cobrindo, mas por baixo estava límpida, despoluída, descontaminada e saborosa...CRECK

Um barulho vindo do lado de fora da janela interrompe as palavras empolgadas de Thales, que muda de expressão temendo que alguém mais tivesse escutado aquele segredo. Novamente rápido como um gato ele se dirige a janela, a abre de supetão, mas não encontra nada.

- Alguém escutou! Fala agitado Thales.

- Deixe de besteira!

- Em nome da nossa antiga amizade, lhe garanto que aquelas águas além de uma fortuna para mim serão úteis para o Reino do Sul, eu lhes dou a minha palavra!

Os dois finalmente chegam a uma porta grande de madeira avermelhada.

- Boa sorte! Não diga nada que irrite Oscar, tu sabe o que ele é capaz de fazer!

A porta se abre e Thales entra sorrindo, deixando Ramiro do lado de fora.

O cheiro das refeições que seriam servidas a noite no banquete se espalhavam dando água na boca em todos pelo Palácio. Criados corriam apresados de um lado para outro, ajeitando a mesa, colocando toalhas, pratos, taças e talhares, quando um alto grito de dor se faz ecoar pelos corredores.

Durante segundos todos param e se olham, ao fundo pôde-se escutar a porta do escritório do Rei sendo batida violentamente. Como se nada tivesse acontecido todos novamente retomam suas tarefas.

Jovito Rosa
Enviado por Jovito Rosa em 18/11/2018
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