Baleias encalhadas, são baleias suicidas?
…
Ele não sabia que dia era, não sabia que horas eram e nem
em que tempo estava, pois para ele não havia mais esse negócio
de tempo, ou mesmo o espaço, bem, o espaço ele sabia, como
sempre estava num bar. Um boteco localizado em algum lugar da
cidade dezesseis, próxima ao antigo pacífico, ou como os
moradores chamam “cemitério de baleias”.
As grandes guerras devastaram o mundo no passado, mas
as tecnologias fizeram a sociedade renascer. Depois de se
matarem mais um pouco os seres humanos agora se encontravam
divididos em cidades devastadas, a população estava menor,
haviam poucas árvores pelo mundo, poucos animais e muita
bebida.
Muita bebida, ele pensava virando um copo de uísque goela
abaixo, o líquido queimava loucamente cada local de sua
garganta, ele batia o copo sobre o balcão e pedia mais uma dose.
Garçom, ele disse, hoje é um grande dia, um dia fabuloso,
ele confirmava com a cabeça, o garçom o olhava com desdém,
quantos loucos ele precisava servir por dia, por horas, por
minutos, e mais um estava lá.
O pobre garçom, rapaz jovem que morava em uma das
periferias da cidade dezesseis, cabanas sobre terra seca, muitas
das casas eram feitas com restos de baleias retiradas do cemitério,
cresceu ouvindo falar das guerras, as quais mataram seus
bisavós, avós, e seu pai, agora estava lá ouvindo esse sujeito
vestido de caubói, esse sujeito com um braço biônico, esse sujeito
com cabelos médios, barba por fazer, e com uns trinta e muitos
anos.
Meu amigo, o garçom dizia – ao fundo tocava um piano
acelerado, os outros consumidores do adorável boteco rodopiavam
por causa da bebida, as raparigas davam risadas e ganhavam
seus trocados com seu serviço bem dado. - O que veio fazer neste
bar, por que não vai para casa descansar antes que morra de
tanto beber, aconselhou-lhe o garçom.
O sujeito parado quase sobre o balcão, com uma risada
forçada, um jeito de quem não estava nem aí para nada bateu a
mão sobre o balcão, o som ecoou por todo salão, fazendo o piano sessar.
Todos paralisados olhavam para o sujeito parado ao pé do
balcão, estava de cabeça baixa, e mantinha um sorriso nos lábios,
com calma tirou o chapéu, revelando um cabelo volumoso e
laranja, todos o reconheceram, um rapaz do outro lado do salão,
usando um macacão jeans, magricela com a cabeça raspada e
com um fone de ouvido grita assim que o sujeito abaixa o chapéu
sobre o balcão:
- Ele é Joe.
Sim, as pessoas sabiam quem era o Joe, não pelo seus
feitos, não por todas as pessoas que matou ao longo da vida, não
pelos serviços que fizera pela igreja, não por ter salvado algumas
pessoas apenas para rouba-las, ninguém lembrava do Joe por
isso, não lembravam dele nem por causa daquela vez em que ele
roubou sozinho o banco central da cidade treze, o banco mais bem
protegido de toda a região pós dez.
Sim, esse era o Joe, o cara que ninguém lembrava por ter
enfrentado o clã Tiro-da-morte-certa, o pior clã daquelas
redondezas.
- Espera o caubói suicida? – perguntou um sujeito gordo que
por suposição do destino também usava macacão jeans, era dono
de uma enorme barba loira-branca que descia até a altura do
lugar onde deveria ser seu umbigo, se o mesmo não estivesse
cometendo suicídio na altura de seus joelhos. Com olhos verdes e
reluzentes como seus dentes de ouro, que totalizando eram todos
os três que ele tinha na boca.
Estava sentado com uma rapariga loira no colo, a qual podia
se ver uma barba rala no queixo. Ricardo era o nome da rapariga,
era conhecido em toda a cidade, filho ou filha do dono de uma loja
de chapéu que era casado com o dono da loja de fliperama.
O gordo abaixo de Ricardo, segurava a cintura da rapariga
como se ela fosse sua esposa, olhavam ambos para o sujeito que
acabara de ser reconhecido pelos seus feitos mais inexplicáveis.
Joe, o caubói suicida.
Foram seis. Sete. Oito, ou nove, nem mesmo Joe saberia
dizer quantas vezes já tentou se matar e falhou.
Ele encarou o balcão, sentiu seu rosto corar, sabia que todos
conheciam-no, mas infelizmente suas proezas haviam sido
encobertas pelos malditos suicídios falhos.
Não foi por falta de tentativas. Certa vez Joe, decidido que iria por fim em sua vida, após
trepar loucamente com a dona de um cabaré fedorento e com
muita teia de aranha, correu em direção a janela e sem hesitar,
jogou-se em direção ao chão. Estava no sexto andar, sentiu o
vento bater em suas partes mais íntimas, sentia a liberdade de um
bebê que acabara de nascer, sentia tudo indo embora, e então sem
demorar, como demora nos filmes. O fim.
Joe, acordou segundos depois, num hospital sujo,
enferrujado e com uma enfermeira velha corcunda aos pés de sua
cama, ela explicara que Joe havia quebrado o braço direito, mas
eles tinham as peças para consertar, e que infelizmente o infeliz
do duque em quem Joe havia caído encima morrera ao quebrar o
pescoço.
Joe não desistiu.
Amarrara uma corda no pescoço, e a outra ponta no pescoço
do cavalo, deu uma palmada no animal e foi puxado com força
brusca, enquanto estava sendo arrastado, o ar sumia de seus
pulmões, espinhos e pedras rasgavam sua pele, Joe sentia a vida
saindo do seu corpo, era aquele momento que ele queria, e então o
animal continuava correndo e correndo e correndo.
Estava ficando escuro quando a corda arrebentou, o cavalo
começava a desativar por falta de energia – malditos animais
movidos a energia solar, Joe pensou enquanto rolava pelo deserto
escuro e gelado, ficou deitado por um tempo olhando as estrelas,
sentia seu braço quebrado novamente, mas desta vez, seus pés
também estava. No dia seguinte, teve de começar a se arrastar
pois seu cavalo havia corrido tanto que queimara o reator de
energia.
Joe então foi encontrado por um grupo de pescadores de
areia, aqueles senhores que andam com varas de pescar para
pegar vermes pelo deserto.
Em outra tentativa Joe iniciou um tiroteio num boteco, onde
houveram trinta e dois mortos, quando a polícia chegou Joe
tentava atirar em sua própria cabeça com um revólver. O xerife
vendo a cena, pediu para que levassem Joe para a delegacia, o
xerife tomou a arma das mãos de Joe enquanto ele era arrastado
para fora do estabelecimento, já do lado de fora, foi possível ouvir
um tiro dentro do boteco, e quando os policiais entraram parar
averiguar encontraram o xerife caído no chão com os miolos pela
parede.
- Eu... – disse Joe com sua voz mole e bêbada, - estou farto
disso, vocês não sabem o que é ter essa vida desgraçada, eu já matei muita gente, já fiquei preso por muito tempo, experimentei
coisas que ninguém imaginaria, e a porra da minha vida não quer
sair de mim. – Joe disse colocando as mãos sobre o rosto e
soluçando como se estivesse prestes a cair em lágrimas.
O sujeito gordo, pondo se em pé, caminha na direção do Joe,
os passos ecoavam pelo salão, como enormes batidas contra uma
porta de madeira, as botas batiam assombrosamente contra o
chão velho e empoeirado. O Gordo então, parando alguns metros
de distância de Joe, dava uma risada silenciosa enquanto tirava a
arma da cintura.
O silencio ainda tomava conta de todo salão, a pianista, uma
jovem loira com os cabelos em tranças curtas, usava um vestido
colado sob uma jaqueta de aviador, segurava um cigarro elétrico
com os lábios e assistia toda a cena, enquanto anotava algo em
seu caderninho, uma vez ou outra sem querer relava em algumas
teclas do piano.
-Vamos ver se você não morre mesmo – disse o gordo
apontando a arma para a nuca de Joe, que continuava com as
mãos no rosto e com a cabeça baixa.
O garçom assistia toda a cena limpando frequentemente o
mesmo copo dezenas de vezes.
Com o cano gelado em sua nuca, Joe, estava parado, como
uma estátua, paralisado sem nenhuma reação. Não era medo, não
era pavor, era algum tipo de fé doentia, em sua mente ele
provavelmente torcia para que aquela arma funcionasse, ele
imaginava as pessoas assistindo seus miolos voando em direção
as garrafas de bebidas nas prateleiras.
Era tudo que ele queria.
Ele almejava.
Com as mãos no rosto ele lembrava de seu último trabalho.
Após voltar de uma outra tentativa inútil de suicídio, um homem
jovem magricela usando terno, algo extremamente raro na cidade
dezesseis, veio até ele com uma proposta de serviço que parecia
mais uma ideia maluca de um sujeito sem ter o que fazer.
O sujeito era alto, loiro com olhos azuis, seu terno era
italiano bem cortado e até meio curto para ele, pois seus
tornozelos ficavam a mostra.
Enquanto Joe caminhava em direção à algum boteco
aleatório, o sujeito com o rosto fundo de tão magro ficou parado
impossibilitando sua passagem.
O dia estava quente, Joe acabara de perder a última corda que tinha, então aquele não era um bom dia para um sujeito como
aquele atrapalhar o plano de Joe de encher a cara.
- Saia da minha frente, garoto – disse Joe colando seu rosto
ao rosto do magrelo, seus narizes quase se tocavam como um leve
beijo de esquimó.
Mas desnobrecendo a ordem de um suicida fracassado o
Magrelo ficou parado, mas mantinha um leve sorriso no rosto e as
mão no bolso, a música do bar estava alta, os bebuns riam e
batiam as canecas de cerveja umas nas outras. O magrelo então
levantou sua mão direita, Joe não recuou, ficou observando a mão
esquelética pousar em sua bochecha, o gelado daquela mão
desceu pelas costas de Joe como uma carpa que sobe o rio,
arrepiou os pelos de sua nuca e Joe olhou naquele vazio azul dos
olhos do magricela. Enquanto sorria o sujeito disse entre dentes:
- Não ficará bêbado. – E então deu um passo para o lado.
Joe o encarou e suspirou, não queria brigar e não era mais do tipo
que quer assustar todo mundo.
Assim que entrou no bar pensou em olhar para trás, para
ver o magrelo ainda estava com aquele sorriso nos lábios. Não o
fez. Apenas como de costume sentou num banco perto do balcão e
pediu algo forte para beber, a música era agitada, vinha de uma
banda de jazz, cinco homens negros, fortes e bem arrumados,
tocavam algum jazz das décadas mais antigas, as vezes os
hologramas davam algumas falhas, o baterista sumia, o
saxofonista travava, mas a música não parava.
As risadas abafavam o som de qualquer coisa no bar. Tudo
era motivo de gargalhadas, muitos estavam ali por que não
tinham para onde ir, muitos estavam ali fugindo de suas
mulheres, e outros fugiam das lembranças.
Joe estava ali, e era isso, não tinha motivo, só queria morrer.
Joe bebia como um carro velho, bebia mais que os outros
caras, de repente atrás dele se formava uma multidão gritando
bem alto e numa única voz “vira, vira, vira”. E Joe virava, bebia
cada vez e mais rápido, não ligava para a multidão só continuava
bebendo. Conhaque, cachaça, pinga, água ardente, cerveja,
tequila, vodca e mais bebidas alcoólicas que foram inventadas em
épocas distantes, como o líquido de Netuno, uma bebida que
também servia para ilustrar moveis ou o diamante de aço, a qual
poucos tinham coragem de tomar, pois acreditava-se que era usada para limpar carcaças de baleias que explodiam nas praias.
Mas Joe bebia.
Uma dose, outra dose, e mais outra.
Mas a felicidade é algo estranho, quando você acredita estar
dando certo em algo, quando acha conseguir que tudo será
maravilhoso, tudo dá errado.
- Mas que caralho, por que ainda estou sóbrio??? – Joe
gritara, todos em sua volta assustaram-se ao ver Joe levantar e
caminhar normalmente, um dos sujeitos disse que o garçom e ele
estavam trapaceando, que o garçom servia água em vez de bebidas
para Joe, mas Joe fingiu não ouviu, caminhou de ombros baixos
até uma mesa do canto, desviou de corpos bêbados jogados pelo
chão, e sentou na frente do magrelo que assistia tudo e aplaudia o
homem são a sua frente.
O magrelo sorria, sobre a mesa havia um envelope branco
com dinheiro, ele empurrou o envelope na direção de Joe.
- Olhe Joe, eu sinto muito por isso sei o quanto queria ficar
bêbado, mas para o serviço que quero que faça, você precisa estar
o mais são possíveis – o sujeito riu e bebericou um pouco do vinho
que estava em seu copo. O mesmo copo que não estava ali quando
Joe chegou.
Para Joe aquilo não era novidade, já havia feito trabalho
para anjos muitas vezes, desde que a sociedade entrou nesse
colapso e destruiu metade da terra deus cansou de tudo, foi
embora, e os anjos faziam a festa pela terra. Mas Joe nunca havia
visto um anjo daquele jeito, magro como a peste da fome, parecia
doente, e estava tão franzino que parecia um garotinho. Joe Não
queria um trabalho, só queria morrer, não queria mais estar ali,
estava cansado de tudo, só queria um pouco de paz.
- Joe, esse será seu último trabalho eu prometo, esse
serviço, está sendo dado a você por que eu sei que você é a única
pessoa que realmente fará ele sem hesitar, por que me ajudando
eu te ajudo com o que mais deseja. Morrer.
Pouco se sabe sobre Joe, antes dele ser um assassino,
boatos que rondam pelos estados, dizem que ele era filho de um
dos reis da guerra, algum dos grandes donos de marcas que
levaram a sociedade a um colapso consumista, fazendo as pessoas
se matarem por produtos, depois de décadas de compras o mundo
virou um grande lixão, a pobreza aumentou cada vez mais, e
depois virem as guerras de classe, as periferias cansadas dos ricos
de nariz em pé, os ricos cansados da imagem da periferia, e por assim foi, enquanto a tecnologia crescia, enquanto os robôs se
rebelavam, enquanto grandes bombas eram lançadas, pessoas
foram morrendo, perdendo familiares e até mesmo partes dos
corpos. E Joe estava lá, pelo que dizem os boatos, enquanto seu
pai via tudo isso acontecendo, acabou endoidando, acreditava
estar sendo perseguido, passou a desconfiar de sua família e com
medo de ser sufocado dormindo, decidiu cortar os braços de sua
esposa e filho. Numa noite dopando mulher e criança, levou-os
para um laboratório e com uma arma ameaçou médicos forçando-os a amputar os braços de sua mulher e filho, a polícia chegou
antes do braço esquerdo de Joe ser cortado, a mãe do pobre
garoto morreu de infecção, o pai foi preso e morto semanas depois,
Joe foi obrigado a morar pessoas desconhecidas, logo depois
abandonado, e foi quando as conheceu pessoas que deram seus
braços e ensinaram-no a sobreviver neste mundo além do
apocalipse.
Em seu vasto conhecimento Joe não estava nem aí se você
era um humano ou um anjo ou até mesmo um demônio, mesmo
sabendo que demônios não existiam, e isso foi comprovado anos
antes.
Então sentado ali, segurando em suas mãos, olhava a
quantidade de dinheiro que havia no envelope, Joe já era rico,
então não ligava para aquele monte de papel, ele só queria uma
coisa e esse anjo disse que pode dar.
- O serviço é simples, eu preciso da minha foice de volta,
sabe como é, matar pessoas não é possível se eu não tiver aquele
troço comigo, veja minha aparência, estou sumindo aos poucos
por falta da maldita energia vital de vocês – sujeito disse isso com
um sorriso e bebericando seu vinho.
Joe não era religioso, não queria saber quem criou nada,
ainda mais naquele mundo onde a sobrevivência é o que importa
de verdade, aprendera a atirar, aprendera a controlar suas
sinapses e entrar no servidor de qualquer sistema, sabia como
destruir programações, sabia como roubar uma nave, sabia como
chegar em qualquer planeta próximo, e já tinha visto um animal
de verdade, mesmo que o pobre cachorro estava afogando- se no
próprio vomito. Joe já vivera, já experimentara de tudo e sentir o
cano em sua nuca não era nada, sua respiração estava lenta e
confortável, suas costas curvavam-se sobre o balcão, mas
lentamente ele as foi corrigindo para uma posição ereta, vagarosamente, virou-se para o gordo, o cano da arma estava em
sua testa, ele sorria, o cano sumia pelos cabelos longos que
escorriam pelo seu rosto quase impossibilitando de ver seus olhos,
levanta um pouco o rosto, queria ver os olhos daquele gordo, o bar
estava em silencio, as luzes piscavam as vezes, todos estavam
tensos, sabiam que Joe era rápido o suficiente para tomar a arma
daquele porco enorme, e meter uma bala em cada espectador
antes mesmo do corpo do gordo cair imóvel no chão.
O sujeito magricela, sentado do outro lado da mesa esperava
uma resposta, estava de pernas cruzadas, bebericava mais um
gole do vinho que nunca acabava, esse era um dos dons dos
anjos, fazer brotar vinho, era comum entrar em um bar avistar
uma roda, adentra-la e vislumbrar o incrível dom divino de criar
uma nascente de vinho no meio da mesa.
As garotas ficavam loucas. O tempo era louco.
Joe respirava fundo, olhando para aquele ser divino que
oferecera para ele tudo que ele tanto queria, mas tirara dele o que
ele tanto amava, engraçado como a vida é assim, você só poderá
ter algo quando perder algo.
Joe sabia disso e enquanto encarava aquela coisa magra e
morta, ele não hesitou em guardar o dinheiro e dizer sim.
Ele queria acreditar naquilo, achar uma faca gigante e poder
ser levado de ali ganhar uma roupa branca, asas e uma lira, ficar
tocando música gospel junto de sua mãe no céu.
Levantou do banco e apertou a esquelética e fria mão
daquele ser supremo.
No bar com um gordo em sua frente, Joe após passar por
tudo que passou para encontrar aquela maldita foice, ele ficava se
perguntando se tinha mesmo valido a pena todo aquele esforço,
escutou então o gordo dar uma risadinha, gostou daquilo, gostou
de ouvir o clique seco, gostou de tomar a arma daquele maldito,
gostou de abrir um buraco na pança e na testa do balofo. Gostou
de atirar loucamente para todos os lados, ouvir o vidro
estourando, as pessoas gritando, os outros sacando suas armas e
disparando contra ele, e quando terminou o corpo enorme do
gordo chegou ao chão.
…