I
O PESCADOR 
 

 
 
A esquálida rua estava escurecendo com o crepúsculo enquanto um homem caminhava com os pés descalços sobre as lajotas quentes, sua sombra se alongava como um gigante disforme parecendo às vezes caminhar ao seu lado e às vezes dando a terrível impressão de que o perseguia. Era uma pequena vila com poucas casas de alvenaria que avermelhavam incididas com os últimos raios de sol poente. O nome do homem era Jó, ele estava vestido com uma calça folgada enrolada até perto do joelho, aquilo talvez fosse um hábito ou talvez somente para protegê-la da água salgada do mar, ele vinha da praia. Nas costas desnudas a rede pendia sobre os ombros delgados.
—Eu escuto o zumbido, escuto o chiado, aquele barulho monótono e sonolento engana nossos sentidos, ele é como o bater das asas de uma mosca, quando ele soa os peixes fogem—Sussurrou Jó enquanto se aproximava de sua casa. O homem chamado Jó chegara a sua casa em seguida abrindo a porta de madeira silenciosamente. Ele moveu o rosto em direção ao leste onde o sol fervia atrás das montanhas enegrecidas, novamente virou o rosto em direção oeste. Naquele momento um olhar de espanto tomou conta de sua face fazendo-o entrar bruscamente e fechar a porta num movimento frenético. Dentro da casa uma luz fraca de lampião iluminava o rosto de uma mulher encostada na porta do único quarto, enquanto o homem chamado Jó largou a rede no canto da casa e sentou-se ao lado da luz destacando sua fisionomia: na cabeça oval nenhum fio de cabelo, no rosto uma espessa barba ruiva combinando com as grossas sobrancelhas.
— Não pegou nada o dia inteiro? O que vamos comer? — Inquiriu a mulher.
— Aquele barulho, o chiado voltou novamente, os peixes desapareceram, não sei de onde ele vem, mas quando ele aparece os peixes fogem. — Respondeu o homem quase se desculpando.
— Amanhã cedo tentarei de novo Zélia. — No mesmo instante em que homem chamado Jó terminou de falar aquelas palavras um vento forte chacoalhou a porta da entrada assoviando sinistramente.
A mulher chamada Zélia ao ouvir o assovio sinistro do vento correu até a porta e a trancou olhando assustada para o homem também de olhos arregalados.
— Temos que ir embora deste lugar! — Todos se foram, não há motivos para continuarmos aqui. — Completou a mulher sentando-se ao lado do homem.
— Não podemos desistir, é a única coisa que temos. Vamos esperar mais um dia!
Ao ouvir aquelas palavras a mulher deu um pequeno sorriso, no entanto seu semblante ficou severo ao ouvir o vento latejar na porta e nas janelas, então Zélia levantou-se trêmula da cadeira olhando várias vezes por cima do ombro, assustada indagou: — Vamos dormir! Amanhã você terá um longo dia! Iluminados apenas pela luz avermelhada do lampião faiscante o homem seguiu a mulher em direção ao quarto, a pouca luz que clareava parecia ser engolida pela escuridão. Lá fora o vento continuava a chacoalhar a porta de entrada como se fosse alguém implorando para entrar, o vento parecia alguém apavorado e seu zunido como um grito agoniado.
 
 





Continua....










 
II
O ESTRANGEIRO



 
Quando amanheceu o dia, aquele vento noturno insistente ainda zunia enquanto uma chuva fina e melancólica tomava conta daquele mundo. Jó estava com seu olhar fixo no horizonte e encarava ao longe o mar carrancudo. Não seria possível pescar com aquele tempo pensou ele. Algumas casas abandonadas com janelas abertas dava a impressão que pessoas ainda estivessem ali, no entanto todos haviam partido fazia algum tempo. Talvez fosse uma miragem o vulto surgido entre as arrebentações. O homem protegido com uma capa de chuva amarelada caminhando a passos calmos sob uma chuva fina intermitente chegara não se sabe de onde, aproximou-se rapidamente pela única rua parecendo que saltava as distâncias entre a praia e a casa rústica. Avançou como um fantasma até se deter em frente à casa de Jó.
— Parece que o dia não está bom para pescaria, não é mesmo marinheiro? Foi o que disse aquele estrangeiro vestido com uma reluzente capa amarelada, os olhos dele eram azuis, os cabelos loiros e a pele avermelhada, mas não era um vermelho como o bronzeado de alguém que tomou excesso de sol, parecia ser aquela a cor natural de sua pele.
— De onde o amigo está vindo? —Você não sabe das coisas que aconteceram nos últimos dias por estas bandas? — Retrucou o pescador enquanto acendia um cigarro de palha. Em seguida sentou-se na cadeira encostada da parede corroída pela maresia, fumando o cigarro soltava esporádicas baforadas nervosas.
— Embora eu não seja deste lugar, eu falo muito bem o seu idioma. Meu nome é Ethan. Fale-me dos últimos acontecimentos. Qual é seu nome? — Respondeu o recém-chegado.
— Meu nome é Jó e, muitas vezes eu escutei o zumbido, escutei aquele maldito chiado, aquele barulho monótono e sonolento enganando nossos sentidos, ele é como o bater das asas de uma mosca, quando ele aparece os peixes fogem. Jó fez uma pequena pausa, em seguida continuou o seu relato.
— Duzentas pessoas moravam nesta vila, então quando alguns moradores começaram a sumir de repente, aquilo apavorou muita gente e uma noite dessas todos os habitantes fugiram, as casas ficaram abandonadas. Alguma coisa emergiu do mar depois da inundação, algo que não sei o que é veio junto com aquelas ondas espalhando medo em boa parte da vila. Este lugar não é mais o mesmo. — Enquanto falava Jó apontava para as arrebentações cada vez mais próximas.
— Aquela coisa só aparece durante a noite, eu e minha mulher, eu e a Zélia nos trancamos em casa depois que anoitece. Não ousamos nem espiar pela greta da janela. E vamos dormir bem cedo. Somos os únicos que ficaram.
— Mas, porque continuam neste lugar? — Indagou Ethan mostrando preocupação com a história contada.
Naquele mesmo instante a mulher surgiu na porta, curiosa com o estranho homem que acabara de chegar. Já se passaram meses desde que viram os últimos moradores indo embora, entretanto alguma coisa os prendia naquele lugar. Ela olhou inquisitivamente para o estrangeiro perguntando:
— Você não escutou o bramido? — O mar está cada vez mais próximo!
— Eu acabei de chegar a esta ilha, meu barco está ancorado próximo ao cais submerso. Mas conte-me a história da criatura que dizem aparecer durante a noite. A mulher se aproximou de Jó colocando a mão no ombro do pescador, como se concordasse que contasse a estranha história.
—Um dos últimos moradores a ir embora ficou cara a cara com o bicho, ele escapou por um milagre. Faz mais ou menos duas semanas se não me engano, Zacarias Soares estava voltando do mar. Estava voltando do trabalho lá pela meia-noite, felizmente ele conseguiu pegar alguns peixes e vinha caminhando com o Tobi o seu fiel cão. A noite estava realmente como um breu, ele me contou que o cachorro ficou agitado enquanto ele arrumava o barco no cais. Zacarias não havia dado muita importância aos latidos nervosos do Tobi, mas sabe como é, os cachorros devem ter um sexto sentido. Depois de respirar profundamente, Jó continuou a história.
— As águas perto do cais começaram a borbulhar de repente e, foi quando o cachorro latiu novamente sem parar olhando para duas tochas vermelhas emergindo da praia. Quero concordar que o Tobi foi um herói, foi mesmo. Ele enfrentou aquele bicho enquanto o Zacarias correu feito um alucinado. Ele chamou o Tobi de certa distância, mas era tarde demais, aquela coisa estraçalhou o cachorro como se fosse um boneco de pelúcia. Meu Deus! Eu me lembro da expressão do Zacarias quando chegou à minha porta batendo e gritando. Abrimos a porta e ele entrou. O homem tremia mais que vara verde. Então depois que tudo aquilo aconteceu nós chegamos à conclusão que o sumiço de alguns moradores algumas semanas antes daqueles fatos acontecidos com o Zacarias. Era o monstro! Aquela criatura vinda do mar estava devorando as pessoas e não deixava nenhum vestígio. O estrangeiro levou sua mão até o queixo e ficou pensativo por alguns minutos, neste tempo ele era observado por Zélia com alguma desconfiança.






Continua...





 
III
O MONSTRO
 


Talvez aqueles fatos contados pelo pescador fizeram Ethan mudar sua fisionomia, de repente transparecendo no rosto avermelhado pura seriedade. Ou talvez a pequena fresta de sol dispersando as nuvens e acentuando o tom carmim de seu rosto. Então começou a contar a Jó e Zélia os únicos habitantes daquele lugar algo intrigante. Fazendo isso através de perguntas. Ele aproximou-se dos dois apontando para o mar.
— Você sabe há quanto tempo mora nesta ilha Jó?— Sabe quando chegou a este lugar? Apesar das perguntas serem simples para uma pessoa responder, o pescador sentiu-se desconfortável ao ouvir aquelas indagações. Ele arregalou os olhos para a mulher e ficou sem entender o real motivo de não se lembrar de coisas tão simples.
— Eu não me lembro de como cheguei até este lugar, pois sempre vivi aqui, eu nasci aqui!
A resposta de Jó talvez tivesse lógica para ele, entretanto o estrangeiro continuou com mais perguntas.
— Você lembra quem foram seus pais? —Lembra como eles eram? Diante daquele questionamento sobre a origem do pescador, de algum modo a estranheza de tal pergunta deixou o mesmo atônito, pois não se lembrava de seus pais, não lembrava nem do dia do seu nascimento.
Então Ethan falou sobre o monstro e dos últimos acontecimentos naquele lugar.
— Tudo que você vê Jó, não existe! Tudo isso é apenas a simulação de um sistema ligado ao seu córtex cerebral, eu estou aqui para ajudá-lo a voltar. O monstro que aparece durante a noite, o zunido do vento, o bramido do mar, tudo isso é uma maneira que o sistema está usando para que a simulação expulse os usuários, pois muitas vezes eles pensam que estão no mundo real e não conseguem se desligar sozinhos.
— Como pode ser! Como tudo isso não é real? Eu vivo aqui há muito tempo e as coisas que você diz não tem sentido. — Respondeu o Pescador incrédulo.
— Olhe para o céu, olhe para o sol, sou eu quem controla está simulação. Olhe como o tempo pode mudar. Ethan apenas falou para o tempo ficar bom e miraculosamente o céu nublado se tornou limpo sem uma única nuvem. — Ou como ele pode ficar se eu disser: chova!
— No mesmo instante em que Ethan falou para chover, rapidamente nuvens carregadas acompanhadas de relâmpagos terríveis cobriram o céu fazendo Jó ficar trêmulo de medo. Ethan continuou suas elucubrações pragmáticas, então finalmente falou sobre a companheira do pescador.
— E quanto a sua mulher, olhe para ela, ela também não é real, ela faz parte deste lugar e vai acabar como tudo que existe aqui, o sistema está tentando reiniciar, mas ele só vai conseguir quando o último usuário for expulso.
— Quer que eu lhe mostre o monstro que estava devorando as pessoas? — Quer ver o que ele faz?
Uma onda de adrenalina se apossou de Jó. De repente o mar pareceu crescer e ficar dez metros da sua pequena casa. Não havia ondas. O fenômeno desafiava todas as leis físicas conhecidas, o mar apenas avançou cobrindo todas as outras casas. Então em meio aos relâmpagos e trovões surgiram aqueles dois olhos vermelhos vindos do mar, uma forma monstruosa e sombria avançou apagando as coisas como um apagador no quadro-negro, até chegar diante da mulher chamada Zélia. Fez-se um silêncio cósmico, quando de repente a sombra engoliu a mulher apagando-a literalmente, deixando no lugar apenas a mancha de um borrão escuro. Ao ver aquela cena os olhos de Jó ficaram cheios de terror enquanto algumas lágrimas derramavam sobre a sua face. Então finalmente ele entendeu. Naquele momento Ethan começou a desaparecer enquanto olhava para Jó desvanecendo, e todas as coisas ao redor deles ficando cada vez mais opacas até tudo ficar num tom branco intenso. Então o sistema finalmente reiniciou.




EPILOGO.

A esquálida rua escurecia com o crepúsculo enquanto um homem caminhava com os pés descalços sobre as lajotas quentes, sua sombra se alongava como um gigante disforme parecendo às vezes caminhar ao seu lado e às vezes dando a terrível impressão de que o perseguia. Era uma pequena vila com poucas casas de alvenaria que avermelhavam incididas com os últimos raios de sol poente. O nome do homem era Jó, ele estava vestido com uma calça folgada enrolada até perto do joelho, aquilo talvez fosse um hábito ou talvez somente para protegê-la da água salgada do mar, ele vinha da praia. Nas costas desnudas a rede pendia sobre os ombros delgados.


Fail... rebooting...

Fail... rebooting...

Fail... rebooting...


“Você consegue escutar o zumbido? Escutar o chiado? Aquele barulho monótono e sonolento enganando nossos sentidos, ele é como o bater das asas de uma mosca, você pode escutá-lo se ficar em silêncio. Ouça o som do silêncio… talvez você descubra que nada disso é real, e que está em uma maldita simulação.”

FIM
FernandoCreed
Enviado por FernandoCreed em 17/03/2020
Código do texto: T6889750
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.