Psíada - Primeira parte

Meu nome é Bento Mafra. Tenho dezesseis anos e estou no segundo ano do Ensino Médio. Se me vir na rua vai me achar um garoto normal. Ledo engano.

Há anos a ciência tenta explicar habilidades paranormais sem sucesso. A maioria das pessoas que afirmam ter tais poderes tem distúrbios biológicos ou mentais, isso quando não passam de charlatões. Eu não.

Desde muito novo desenvolvi certas habilidades que fariam, quaisquer pais, ficarem de cabelo em pé. Não os meus, pois sou órfão. Vou lhe contar minha história...

Vinha-mos eu e meus pais, de avião, visitar meus avós em Fazendinha-GO, minha cidade natal. Nasci lá e mudei com meus pais para a cidade depois que meu pai foi trabalhar no jornal mais importante do país (em breve contarei esse episódio mais detalhadamente). Durante o vôo fomos pegos por uma forte turbulência. Meu pai, apesar de sua impavidez de costume, parecia transparecer aflição. Mamãe olhava pra ele e tentava se acalmar. Seguravam em minha mão e diziam que tudo ia acabar bem. Não acabou.

O piloto comunicou a necessidade de um pouso forçado. Pediu que ajeitássemos as poltronas e puséssemos os cintos. Dava pra ver o pavor nos rostos dos tripulantes. O pânico tomou conta do avião, todos chamavam por seus salvadores celestiais pedindo clemência. Meus pais disseram que se amavam e a mim também.

O Boeing 727-200 caiu no sul de Goiás há 5km da fronteira com Minas Gerais, logo após sobrevoar o Rio Paranaíba. Estatísticas: 149 passageiros, 6 tripulantes e um sobrevivente, eu. Meus pais, assim como todos no avião estavam mortos enquanto, chorando e com dor de cabeça, tirava o cinto. Desesperado fui procurar ajuda. Não foi nada difícil, para um garoto magricela de apenas cinco anos como eu era, sair dos destroços da nave.

Quando sai, avistei um cachorro me olhando. Logo que minha visão melhorou, pude perceber que não se tratava de um cachorro mas, de um lobo branco. Lembrei imediatamente de uma lenda daquela região. Conta-se que, na área do município de Corumbaíba, coberta por densa mata virgem, havia uma loba branca, que foi batizada pelo nome de Galga, que uivava freqüentemente. Quem tivesse a sorte de ver o animal, seria muito feliz.

Não haveria coisa neste mundo que me deixaria mais feliz que ver meus pais vivos de novo. Chamei Galga e lhe pedi, aos prantos, que os trouxesse de volta. Ela aproximou-se de mim e lambeu minha ferida na cabeça. Senti um alívio inexplicável aliado a uma sonolência.

Acordei no dia seguinte com frutas ao meu redor. Logo que pus, tomado pela fome, uma delas pra dentro, ouvi um uivo. Galga no alto do barranco onde aparecera pela primeira vez. Acenou com a cabeça, se virou e partiu. Subi o barranco correndo para alcançá-la. Tudo que vi foi a equipe de salvamento vindo em minha direção. Desmaiei pelo esforço, pois tinha sangrado muito antes que o corte tivesse cicatrizado.

Ao acordar no hospital, meus avós estavam no quarto. Vovó quase se desidratou de tanta emoção. Vovô também não pode conter as lágrimas. Perguntei por meus pais e eles mudaram de expressão. Disseram pra mim o que é dito pra toda criança que perde um ente querido:

- Eles estão agora, lá em cima, com Papai do céu.

Levou algum tempo pra eu sair do hospital e ir pra casa de meus avós. Não foi o melhor natal da minha vida naquele verão. Apenas foi suportável pela presença dos meus avós, minha única família, que nunca me deixaria faltar carinho. Lembro-me que naquele natal vovô me deu um telescópio e começou a me ensinar sobre as estrelas. Nossa com é estrelado o céu de Fazendinha.

Vovô me contou as histórias de várias constelações. Dentre elas a de Lobo. Zeus uma vez disfarçou-se de viajante e procurou ser recebido na corte do rei da Arcádia, o vil Lycaon. O rei reconheceu o deus e tentou matá-lo. Serviu-lhe carne humana, alimento que nenhum deus poderia comer. Zeus percebeu a armadilha de Lycaon e não comeu. Em vez disso destruiu o palácio e condenou o rei a viver o resto da vida como lobo.

Ao ver a constelação de Lobo não via o rei Lycaon mas, Galga. Cuidando de mim assim como fez no dia que a vi. Nunca fiquei ressentido com ela por não trazer meus pais de volta, e sim agradecido por ter salvo minha vida.