Uma Janela Para o Céu

*Texto republicado, originalmente postado em Fevereiro de 2011*

Andersen mais uma vez estava imundo, com as roupas rasgadas, o nariz sangrando e os joelhos todos ralados para tristeza de sua mãe Gabrielle.

- Filho, você nunca vai parar de se meter em confusão? - perguntou ela enquanto limpava as feridas do filho.

- Ah mamãe, a senhora sabe como são aqueles garotos da Área Restrita não sabe?

Sim, ela sabia, a Área Restrita, como o próprio nome dizia, era a parte da Estação destinada às classes dominantes, a elite daquele mundo artificial flutuante. Andersen, filho de um casal de operadores só frequentava aquela região por que era excelente em matemática, “talvez o maior gênio desde Avani Chidambar”, era o que dizia um antigo professor seu. Gabrielle não fazia ideia de quem fosse esse Avani Chidambar, mas nutria grandes esperanças pelo filho, pena que ele tenha puxado ao pai no temperamento esquentado.

E era o pai, Lars, não machucado, mas tão sujo quanto o filho, que acabava de chegar em casa.

- Andersen, não me diga que andou brigando com aqueles mauricinhos de novo?

- Foi pai, só que foram eles que começaram, mas acertei uns bons socos naquelas caras gordas.

- Esse é meu garoto, mostra para eles que aqui tem homens de verdade!

- Ora Lars, – era Gabrielle – ao invés de você dar conselhos você incentiva seu filho a ser um rebelde.

- Rebeldia é liberdade querida, além do mais nosso pequeno Andersen deve saber se defender sozinho, a vida dele não será nada fácil.

Gabrielle não podia ignorar aquela verdade, o pequeno Andersen, de apenas onze anos, tinha um futuro brilhante, provavelmente seria treinado como líder para construir o novo mundo para o qual todos estavam indo e por isso ela sabia que a pressão sobre ele seria enorme.

- Filho, quando chegarmos a Eva, você será um dos homens mais importantes do mundo – disse Lars todo orgulhoso – tomara que eu ainda esteja vivo até lá – essa última frase foi dita com uma ponta de tristeza. Operadores não tinham uma vida muito longa.

- Ah pai, para com isso, o senhor e a mamãe vão viver para sempre. Só não sei se vamos chegar a essa tal de Eva. Viver do lado de fora de uma bola e não do lado de dentro de uma Estação? Que coisa estranha.

- Mas foi assim que a raça humana começou filho – disse Gabrielle – foi na superfície de um mundo que hoje já não suporta mais a vida, ainda me lembro de vovó dizendo o quanto ela se divertiu naquele mundo quando criança, antes do planeta se tornar inabitável – agora era Gabrielle que demonstrou alguma tristeza.

Andersen sabia que estavam falando da Terra, um mundo que nem ele e nem seus pais conheceram já que todos nasceram no espaço. Andersen também sabia que aquele mundo no qual viviam agora, uma gigantesca Estação espacial oca e cilíndrica, era apenas uma nave que seguia lentamente até o planeta Eva, um mundo que reunia todas as condições para a humanidade recomeçar seu desenvolvimento, e que levariam ainda mais vinte anos para chegarem até lá.

- Mãe, pai, posso sair para brincar com a Toshimi?

- Ah, aquela sua namorada? – questionou Lars.

- Ela não é minha namorada! – respondeu Andersen vermelho.

- Pare com isso Lars – disse Gabrielle – pode ir filho, com sua amiguinha, essa mocinha é muito esperta, mas não vão longe e não se metam em confusão.

- Pode deixar mãe, prometo não sair da Estação – disse ele saindo correndo com um sorriso zombeteiro e piscando o olho para o pai.

- Vocês dois não tem jeito Lars.

- Mas você não pode viver sem a gente querida – disse Lars abraçando a esposa.

Lá fora Andersen encontrou-se com sua amiga Toshimi que já o esperava. Ela também era uma criança prodígio, tinha a mesma idade que Andersen e o mesmo espírito aventureiro.

- Andersen, andou dando socos de novo? Quem foi o azarado dessa vez?

- Foi o Thomas Sanders e sua turma de molengas, dei um sacode neles.

- Nossa que vocabulário estranho, mas aonde a gente vai hoje?

- Adivinha?

- Na ala dos jardins? Ou na animal? Já sei, vamos visitar os propulsores!

- Errou, vamos a Ponte de Comando.

- Quê! Cê pirou? – Toshimi estava espantada – só o Alto Comando, e adultos, podem ir lá. Não tem a mínima chance de entrarmos.

- Pois é, mas eu e o Lucas Spina achamos uma passagem secreta, só que aquele covardão não quis ir até o final. Olha, dizem que de lá dá pra ver o lado de fora.

- O lado de fora? – os olhos de Toshimi brilharam, ela sempre sonhara em ver o lado de fora, observar as estrelas. Toshimi, assim como Andersen, era uma das poucas crianças filhas de operadores que, graças a sua inteligência elevada, frequentavam a Área Restrita, e seu sonho era ver as estrelas com os próprios olhos, ela era fascinada com tudo relacionado ao Universo – por que não disse antes? Vamos agora mesmo.

- Ótimo! – respondeu Andersen.

E lá foram os dois jovens serpenteando entre os corredores da Estação.

- Primeiro vamos até a área de embarque de suprimentos, de lá parte um trem para o Alto Comando, se entrarmos em um vagão de carga ninguém vê a gente. – disse Andersen.

E assim fizeram, como Andersen disse ninguém os viu, entraram no vagão sem problemas e em minutos estavam no Alto Comando.

- E agora Andersen? Eles vão nos ver – Toshimi já não estava tão confiante, de dentro do vagão ela via guardas armados.

- Calma – Andersen por sua vez era a calma em pessoa, nem parecia ter onze anos – tá vendo aquela escotilha? É por ali que desce o lixo, vamos passar por ela.

- Lixo? Você não falou em lixo, não estou gostando disso.

- Ah, não diga que quer desistir?

- De jeito nenhum, tudo pelas estrelas.

Os dois saíram do vagão e se esgueiraram em meio a pacotes de carga até a referida escotilha e, sem serem notados, entraram. A passagem era bem estreita e o cheiro nada agradável. Enquanto avançavam Toshimi percebeu que seu peso aumentava.

- Ah meu Deus Andersen, estamos indo para a periferia da estação, eu não vou aguentar!

- Calma Toshi, só mais um segundo – dito isso Andersen abriu outra escotilha na lateral do túnel e simplesmente passou por ela – Venha Toshi.

Toshimi entrou e imediatamente sentiu seu peso desaparecer e começou flutuar.

- Gravidade zero? Mas como se estamos girando tão rápido?

- Não me pergunte como Toshi, mas eles conseguiram compensar a força centrifuga de alguma forma.

Toshimi olhou em volta, o corredor era bem mais amplo, mas mal iluminado.

- Essa é a área interna da ponte Toshi, você veio mais longe que o Lucas Spina. Lá adiante tem outra porta, passando por ela tem uma pequena sala abandonada e uma janela.

- Como sabe disso tudo Andersen?

- Foi o Ícaro.

Ícaro! Então estava explicado, pensou Toshimi, Ícaro era um velho professor de física, o mais inteligente de todos na opinião dela, ele tinha servido o Alto Comando e adorava Andersen e Toshimi, sempre dizia que eram os alunos mais geniais que já teve.

As duas crianças abandonaram seus pensamentos e seguiram pelo corredor até a porta. Toshimi não se continha de ansiedade e tentou abri-la, mas sem sucesso.

- Oh Andersen, tanto trabalho para nada – ela se desesperou.

- Calma Toshi, eu tenho mais um presente do Ícaro – Andersen tirou do bolso uma espécie de chave e com ela abriu a porta. Por um momento Toshimi se esqueceu da porta e contemplou o amigo, sempre confiante e com uma solução para tudo.

- Veja Toshi.

E Toshimi viu. Uma sala escura com uma pequena janela com não mais de um metro quadrado, mas o importante não era a sala, mas o que se via pela janela. Pela primeira vez as crianças vislumbraram o lado de fora e sua imensidão de estrelas brilhando intensamente sem a interferência de uma atmosfera ou de outras fontes de luz como aconteceria se fossem vistas da superfície de um planeta.

- E a coisa mais linda que já vi – disse Toshimi já com os olhos cheios de lágrimas – obrigada por me trazer Andersen – e abraçou o encabulado amigo.

- Que isso Toshi, você é minha amiga, eu não me esqueceria de você.

Por muito tempo os dois ficaram ali enfeitiçados pelo que viam.

- Nossa Andersen, eu nunca imaginei que fosse assim, é tanta escuridão, mas...

- ...ao mesmo tempo é tão brilhante. - completou Andersen.

- Não sabia que você era poético Andersen - riu Toshi.

Os dois amigos riram juntos por um tempo e o pequeno Andersen aproveitou aquele momento de descontração a sós com Toshimi para criar coragem para falar algo que queria há muito tempo dizer:

- Toshi.

- Sim Andersen?

- Sabe o que tem naquela estrela? – ele apontava com o dedo – Aquela mais brilhante?

- Sim Andersen, eu sei, aquele é o nosso destino, é lá onde fica Eva.

- Toshi... quando chegarmos – Andersen estava bem nervoso.

- Pode dizer Andersen – Toshimi também estava nervosa.

- Bem, eu não sei se ainda estaremos próximos, mas eu vejo papai e mamãe, como eles se gostam, bem eu pensei Toshi...tá muito longe ainda...mas...mas...

- Você quer que eu me case com você Andersen? – perguntou uma vermelha Toshimi.

- É...é...talvez...- Andersen também corou.

- Eu aceito – disse Toshimi beijando a face de Andersen.

Em outras situações Andersen teria esperneado e xingado, mas agora não, eles estavam ali só os dois e o Cosmo, a melhor sensação do mundo o percorreu.

- Mas agora acho que já podemos ir embora Andersen, a essa altura nossos pais já devem ter acionado a Vigilância da Estação.

- É, você tá certa.

As duas crianças saíram flutuando de mãos dadas pelo corredor e percorreram todo o caminho de volta até suas casas onde, como esperado, levaram a maior bronca de seus pais, menos de Lars, o pai de Andersen, que quis saber em que aventura o filho se meteu.

Os anos passaram e os dois cresceram juntos e voltaram muitas e muitas vezes aquela sala e se puseram de frente para aquela janela, onde, além de descobrirem o Universo, também descobriram um ao outro. Com o tempo eles se tornaram integrantes do Alto Comando e tiveram acesso livre a Ponte e quando chegaram a Eva tornaram-se grandes líderes de seu povo, cumpriram sua promessa de criança e juntos ajudaram a construir um novo mundo para a raça humana.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 13/04/2022
Código do texto: T7494470
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