UPLOAD

Era a terceira vez naquele mês que ele teria aquela conversa. Ainda não estava convencido de que aquela era a decisão certa, apesar de todas as conversas que já tivera com o Dr. Jung. Profissional exemplar, de uma paciência incrível que Alan nunca imaginou que um psicólogo poderia ter com seus pacientes. Achava que novamente voltaria como chegou, sem se decidir mais uma vez. Mesmo assim, às 15:00 em ponto chamou seu psicólogo pelo comunicador de voz, como haviam combinado.

— Alan, meu velho! — começou o cordial doutor, — Bem vindo de volta! Dessa vez será que enfim nos decidimos?

— Ainda não estou certo se quero fazer isto, doutor...

— Relaxa, tudo a seu tempo. Não se sinta pressionado de forma alguma. Esta decisão deve ser totalmente sua. Vamos conversar de novo, vou tentar te convencer, apresentar meus argumentos... Mas nunca se esqueça que a palavra final é tua!

— Obrigado, Dr. Jung! O senhor entende que não é fácil para mim. É algo sem volta, mas ainda tenho tantas dúvidas...

— Pois então vamos resolvê-las, meu velho! Fique à vontade, estou aqui pra te ajudar!

Alan se mexia desconfortável na cadeira. O Dr. Jung não via este desconforto em seu paciente, já que as câmeras estavam desligadas. Sugestão dele próprio ao perceber em consultas anteriores que o paciente não ficava à vontade com a abertura do vídeo. Mas ainda assim podia ouvir a inquietação dele do outro lado.

— Uma velha amiga te visitou na semana passada, não foi?

— Lisa! Sim, de fato! Como o senhor sabe?

— Ela me contou.

— Fazia tempo que não a via. Décadas, na verdade. Desde quando ela…

— Desde quando ela O QUÊ?

— AH, o senhor sabe.

— Tem razão, mas queria te ouvir dizer isto.

— Bem, desde que ela… Ela fez aquilo…

— Aquilo O QUÊ? Coragem, rapaz! São só umas palavrinhas simples!

— Desde que ela fez o upload…

— … upload para?…

— Para a Mindchain! Desde que ela fez upload de sua mente para a Mindchain.

— Não foi tão difícil dizer, né? Gostaria de me contar como foi esta visita?

— Estranha. É tudo o que consigo dizer: estranha…

— O que havia de tão estranho?

— Não era ela.

— Em que sentido?

— Lisa era uma moça muito bonita quando a conheci, tinha só 70 anos de idade. Já te contei que tivemos um pequeno romance uma época?

— Eu imaginava.

— Foi rápido, não durou muito tempo. Mas ela se tornou uma grande amiga. Cheia de vida, muito ativa… Pra mim foi um choque ela escolher fazer o upload tão cedo. Acho que ela mal havia completado 83 anos quando tomou a decisão.

— Isso te abalou muito na época.

— Lógico que sim! Para mim era como se ela tivesse… morrido!

— Ela morreu de certa forma, não foi? Pelo menos do ponto de vista orgânico. É isso que te incomoda? O fato dela não ser mais orgânica?

— Eu não estava preparado ainda pra ver uma máquina antropomorfizada bater na minha porta, me estender a mão e dizer: “Olá, Alan!! Há quanto tempo!! Lembra de mim? Eu sou a Lisa!”

— Foi difícil pra ela também, meu amigo! Primeiro porque nossos robôs estão muito longe ainda de imitar a figura humana. E depois porque Lisa detesta se materializar no mundo físico se conectando a robôs. Ela é uma criatura totalmente digital agora, preza muito por sua vida cibernética dentro do ciberespaço. Ela só fez isto por você, pode acreditar.

— O senhor me dizendo isto agora me faz me sentir mal. Acho que fui meio indelicado com ela. Sem intenção, lógico.

— Não se preocupe, Alan. Ela te conhece bem. Sabe que ainda vai levar um tempo pra sociedade se livrar de uma vez da robofobia. É coisa muito recente, né? Não tem nem um século. Ela entendeu perfeitamente.

— Mas não foi só isso. Já havia me acostumado a pensar nela como uma pessoa morta. E de repente aparece um robô na minha frente, dizendo ser ela. É algo estranho demais para mim.

— Você trabalha com pessoas cibernéticas todos os dias, não é? Não tem colegas de trabalho que já fizeram o upload para a Mindchain?

— Sim, é verdade! Alguns deles eu nunca conheci organicamente, nem faço ideia de como eram seus rostos. O primeiro contato que tivemos já foi virtualmente.

— Mas conversar virtualmente com uma mente digitalizada não é a mesma coisa que ver uma na sua frente, materializada num robô, não é mesmo?

— Isso mesmo, doutor! Esse é o ponto.

— Ela não se ofendeu com seu comentário a respeito do corpo cibernético neutro.

— Como?

— Quando você disse para ela que esperava vê-la chegando num androide de curvas femininas ao invés de uma carcaça metálica sem gênero definido. Ela já vive tanto tempo no ciberespaço que nem se preocupa mais com isto, pode acreditar!

— Ah sim, eu falei esta besteira mesmo… Que burro! — e deu uns tapas na própria cabeça com as mãos.

— Existem vantagens na vida cibernética que criaturas orgânicas nunca vão compreender. Essa é uma delas.

— O senhor acha isso uma vantagem?

— E não é? Mentes transferidas para o cibererpaço podem existir praticamente para sempre, desde que seja mantida a energia dos servidores onde elas estão hospedadas. Não precisam mais comer, não precisam dormir, não precisam possuir objetos materiais. E como objetos digitais podem ser copiados livremente, elas podem ter tudo o que desejam neste mundo virtual. Não existe mais a escassez.

— Mas isso não ocupa memória? É um recurso escasso, não?

— A capacidade de armazenamento aumenta hoje em dia muito mais rápido do que conseguimos ocupá-la.

— Sempre achei um mundo artificial. As pessoas não sentem? Não amam?

— Por que não amariam? Elas são uma cópia digital perfeita de suas mentes orgânicas originais. São capazes de fazer tudo que faziam antes quando suas mentes ainda estavam num substrato orgânico de neurônios.

— Quando estavam vivas…

Houve um breve silêncio, que o Dr. Jung respeitou, por achar necessário naquela hora.

— Sabe, doutor? A Lisa não parava de falar como se sentia em relação a mim, insistia o tempo todo que me amava muito, que não via a hora de me ver do outro lado, depois que eu subisse minha mente para a Mindchain, que haveria muita festa, muita gente me esperava do outro lado, que poderíamos continuar o que começamos. Só que…

— …só que para você é difícil acreditar num robô dizendo que te ama. É isto?

— É, o fato de eu estar vendo um ser mecânico na minha frente deixou as coisas mais complicadas.

— E você acha que um avatar num mundo virtual seria mais aceitável…

— Por que mentes digitais sentiriam amor? Qual a finalidade?

— Meu amigo, você está complicando algo que na verdade é solução do problema!

— Como assim?

— Mentes digitais têm um tempo de vida indeterminado, praticamente o tempo que quiserem! A pressão biológica de precisar propagar seus genes antes de morrer, para tentar dar algum tipo de continuidade à sua existência, simplesmente não faz nenhum sentido lá. Se uma mente digital diz que te ama, pode acreditar totalmente que é genuíno e completamente desinteressado. Ela não está criando uma situação artificial só porque precisa perpetuar a espécie, por exemplo. Não vê como isto é precioso?

— Nunca havia pensado desta forma, doutor!

— O que nos leva ao ponto em que paramos.

— Morte…

— Meu velho, deixa eu te fazer uma pergunta indiscreta: quantos anos você tem agora?

— Oras, sou seu paciente! Lógico que o senhor sabe!

— Eu sei, mas quero te ouvir dizer.

— Cento e setenta, ou cento e oitenta, eu acho…

— Acha? É tanto tempo assim que já se esqueceu?

— Nasci em 2075… Estamos agora em 2250… Acho que algo entre 175 e 176 anos, não sei ao certo a data em que nasci. Ainda não entendi direito como converter datas antigas para datas novas depois daquela reforma do calendário que aconteceu no começo do século.

— E quando começou a inserir implantes neurais artificiais em seu cérebro?

— Acho que com 90 anos, depois que terminei a terapia para reverter meu Alzheimer. Eu estava resistente em colocar coisas em meu cérebro até então, mas aí os médicos me disseram que ou era isto ou eu corria o risco da doença voltar com toda a força. Não tive muita escolha.

— Você sabe que com quase dois séculos de vida seus neurônios originais estão bem desgastados, não sabe?

— Bom, a função de meus implantes neurais é substituir os que estão falhando.

— E me permite cometer mais uma pequena indelicadeza?

— Lógico que pode, Dr. Jung!

— Qual é o nível de redundância atual de seus implantes? O quanto do comportamento de seu cérebro original eles estão replicando?

— Acho que 95% ou 96% dele.

— Interessante… Mas você ainda se sente vivo, não é?

— Plenamente! Ainda pretendo fazer muita coisa em minha vida!

— Nas últimas sessões que te vi pela câmera me pareceu muito bem mesmo! Parecia um rapaz. Mas… Você sabe que mesmo com toda nossa medicina, a vida orgânica tem validade, não sabe?

— Sim, tem aquela história de não ser possível reconstruir os telômeros cromossômicos. Posso tentar prolongar minha vida com hormônios, terapia genética… Mas alguma hora eu vou morrer.

— Vai??

— Com certeza! Meu organismo não pode existir para sempre!

— E sua mente?

— Minha mente? Meu cérebro, é o que o senhor quer dizer?

— Não, seu cérebro é orgânico. Vai morrer quando seu corpo morrer. Estou falando da sua mente, a estrutura neural que seu cérebro construiu durante sua vida.

Alan dá um longo e profundo suspiro.

— E enfim, Dr. Jung, voltamos ao problema que tem me levado a conversar com o senhor ao longo desses últimos meses.

— Isso, meu velho: seu medo de morrer!

— Mas é o que vai acontecer, doutor! Quando eu fizer o upload de minha mente para o ciberespaço, uma cópia perfeita minha, com minhas lembranças, minha estrutura mental, tudo será digitalizado e incorporado ao Mindchain. Mas será só isso: uma cópia minha! Meus amigos vão conversar comigo, vou continuar trabalhando, agora do ciberespaço. Para o resto da sociedade serei eu, como se eu nunca tivesse deixado de existir. Mas vai ser apenas uma cópia perfeita se comportando como eu. Porque eu mesmo estarei morto…

— Por quê você acha que não será copiado digitalmente? O que é esse “você”, que faz tanta questão de que seja replicado.

— Sei lá, minha alma…

— Sem essa, Alan! Te conheço bem para saber que você não é místico. Vamos ser mais objetivos.

— OK. Minha consciência então.

— Sua consciência?

— Exato! Eu sei que existo. Eu sinto isto. Mas… como sei que minha cópia digital vai saber que existe?

— Como você sabe que existe? Tem certeza que esta sua tal “consciência” é algo que precisa ser copiado também?

— Oras, eu sei porque… Pergunta difícil, doutor!

— Tá bom, vou te ajudar: você se LEMBRA que existiu, não é? Em vários instantes: existiu há um minuto, há 5 minutos, há meia hora, há uma hora, você existiu ontem, na semana passada, no mês passado, no ano passado…

— Onde o senhor quer chegar?

— Você está me dizendo que existe um negócio qualquer invisível, intangível, que você está chamando de alma ou consciência apenas por se lembrar que existia esse algo em vários instantes em sua memória. Você tem uma sensação de existência neste exato momento, e você imagina que é algo que te define, que está presente em você o tempo todo, apenas porque se lembra de ter sentido a mesma sensação em vários outros instantes de sua vida.

Alan não via o rosto do seu psicólogo, mas podia jurar que ele estava rindo neste exato momento.

— Imagine agora que você não pode mais reter memórias. Sei lá o motivo.

— Eu já tive Alzheimer, sei como é esta sensação horrível.

— Lógico! Como pude esquecer… Bom, pense agora que você está tendo esta sua sensação indefinível de existência neste exato momento. Você sabe dizer se é a primeira vez que está sentindo isto, ou se é uma sensação de existência que te acompanha pela vida inteira?

— Não posso.

— Não pode porquê…

— Não posso porque não me lembro delas. Não tenho memórias para comparar as experiências.

Alan podia quase ver o Dr. Jung rindo por detrás da tela preta desligada.

— Me diga agora, Alan: qual a memória mais antiga que você tem de estar consciente? De saber que estava existindo?

— Não sei ao certo. Quatro anos… três anos de idade no máximo.

— Mas você existia antes disso, não existia?

— Óbvio que sim!

— Mas não se lembra disto.

— Não.

— Podemos dizer então que, entre o seu nascimento e uns 3 ou 4 anos de idade, você não tinha consciência de que existia.

— Talvez tivesse sim.

— Mas não se lembra?

— Não.

— Então é como se não estivesse consciente.

— O senhor está tentando dar um nó na minha cabeça!

— Obrigado! É minha especialidade. Ha,ha,ha, brincadeirinha!

— Estou começando a achar que não existo enquanto durmo, já que não estou consciente.

— É onde quero chegar. Mais uma pergunta: você era consciente antes de nascer?

— Mas que tipo de pergunta é esta?

— Relaxa, não precisa responder. É só uma pergunta retórica.

— Pensando desta forma, nem sei mais se eu era o mesmo uns 10, ou 20 anos atrás.

— Provavelmente não. Você se lembra de como era nesta época? E comparando ao que é agora, diria que são a mesma pessoa?

— Pessoas parecidas, mas certamente não idênticas.

— Mas o cérebro é o mesmo, não? Você sabe que as células do cérebro não mudam durante a vida. Essa tal alma, personalidade ou consciência que você mencionou não deveria ser a mesma se o cérebro é o mesmo?

— São de épocas diferentes, passaram por coisas diferentes.

— Têm memórias diferentes.

— Isso mesmo!

— Também pensam diferente, não é? O cérebro é o mesmo, mas ele cria estruturas sinápticas dentro de sua rede de acordo com a necessidade. Sabe por que o cérebro faz isso?

— Para se adaptar ao ambiente.

— Excelente!! Isso mesmo, meu rapaz! Sua mente e suas lembranças são construções criadas pelo seu cérebro para ajudar o organismo a sobreviver melhor em seu ambiente, a se manter vivo.

— E isto que estou chamando de consciência…

— Outra construção do seu cérebro! É mais fácil processar informações e tomar decisões quando sua rede neural orgânica cria uma ideia abstrata que você chama de “você”. Fica mais fácil raciocinar sobre as coisas quando seu cérebro cria essa ilusão de que existe algum tipo de individualidade vivendo dentro de sua cabeça. Mas ela não existe de verdade. É uma ilusão, uma criação do seu cérebro.

— Então, se todas essas construções mentais e memórias que meu cérebro criou forem perfeitamente replicadas num ser digital, eu também serei copiado. Ou aquilo que penso que seja eu.

— Esse é meu paciente! — exclamou o Dr. Jung com satisfação. — Você pegou exatamente o ponto! Se suas memórias e estruturas mentais forem replicadas, não faz diferença nenhuma que elas estejam funcionando em neurônios, placas de silício ou processadores quânticos. Essa estrutura vai criar de novo esta ideia de indivíduo que ela havia criado antes no seu cérebro orgânico. Na verdade ela se lembra de como era esta estrutura, pois vai consultar suas memórias, que também foram copiadas. Não importa onde sua mente esteja processando, ela vai se tornar consciente de novo.

Alan sacudia a cabeça. Os argumentos eram convincentes, mas ainda assim ele continuava rejeitando a ideia.

— Não, não… Eu sei que existo, doutor! E sei que quem está colocando essa ideia de existência em minha cabeça neste exato momento são os neurônios do meu cérebro. Ok, aceito que minha cópia digital terá consciência também. Que parecerá comigo, saberá que existe, e, mais ainda, por ter as minhas lembranças ela acreditará que ela sou eu. Mas vai ser só uma outra consciência idêntica a mim e que até pensa que será eu. Mas eu mesmo vou morrer quando morrerem meus neurônios originais.

Alan já se preparava para se levantar e terminar novamente aquela sessão, sem conclusão nenhuma, quando ouve o Dr. Jung perguntar.

— Qual foi mesmo o nível de redundância que você disse que havia hoje nos seus implantes?

— 96%.

— Você está consciente neste exato momento, não está?

— Estou.

— E consegue dizer se esta ilusão de consciência vem de seus neurônios naturais ou dos artificiais?

— Não consigo… — os olhos de Alan brilhavam, como se estivesse tendo uma epifania. — Realmente… eu não sei mesmo! Não posso te responder isto.

— Meu velho, me perdoe a franqueza, mas com 175 anos de idade eu realmente acredito que muito pouco de seus neurônios originais, biológicos, continuem funcionando perfeitamente.

— Eu já posso estar há vários anos funcionando num cérebro artificial sem nunca ter percebido.

— Você não teria como saber. Sabe por quê? Porque realmente não faz diferença.

— Como o senhor pode saber que não faz diferença? O senhor é…

— Digital? Sim, Alan! Eu sou uma mente digital também! Não seria honesto eu trabalhar tentando convencer pessoas como você de algo que eu mesmo nunca experimentei, não é?

— Mas eu sempre te vi uma pessoa de verdade!

— Como assim, “pessoa de verdade”? Assim você me ofende, amigão!! Lógico que sou uma pessoa de verdade! Tão verdadeira quanto você!

— Nossas primeiras sessões foram com vídeo.

— Ah sim! Gostou do meu avatar? Surpreendente o realismo, né? Hehehe, talvez eu me reprograme pra ter um pouquinho mais de cabelos na frente da cabeça, o que acha?

— Desculpa, não foi o que eu quis dizer. É que… achava que o senhor ainda era vivo. Digo, que nunca havia feito upload da mente para a Mindchain.

— Eu nunca fiz o upload.

— Nunca fez o… upload?

— Alan, melhor se sentar, o que vou te dizer agora pode ser meio chocante para você.

Alan seguiu a recomendação do psicólogo. Tentou se posicionar o melhor que pôde na cadeira, aguardando pela bomba.

— Eu nunca fui orgânico.

— O senhor nunca foi orgânico? Como assim, Dr. Jung?

— Você trabalha com IAs puras em seu emprego, não? Mentes que nunca foram copiadas de cérebros humanos. Que já nasceram dentro da Mindchain.

— Sim algumas. Mas…

— ...nunca pensou nelas como pessoas reais, não é mesmo? Porque elas nunca foram copiadas de mentes construídas previamente em cérebros orgânicos. Pois eu sou uma delas, Alan. Eu já nasci como uma mente digital.

— E como é isso, doutor? Quer dizer, o senhor se lembra do dia em que… err… nasceu?

— Você se lembra?

— Mas… memórias de infância, por exemplo. O senhor foi criança?

— Mentes puramente digitais têm uma infância bem curta, mas tive sim. Acredito que não seja a mesma ideia de infância que vocês orgânicos têm, mas tive algo que posso chamar de infância sim.

— Mas o senhor… nunca comeu, por exemplo. Nunca ouviu uma música, admirou um quadro, conheceu outras pessoas.

— Pessoas é o que não falta por aqui! Artificiais, copiadas, pessoas “de verdade”, como você mesmo diz. Desculpa, não quero te constranger. Só estou brincando! Mas conheci muitas pessoas, e conheço todos os dias. Há uma infinidade delas aqui no ciberespaço, você deve imaginar. Ouvir música? Apreciar quadros? Certamente posso fazer isto sim aqui. Não como você, obviamente. Não tenho nervos auditivos, nem retinas. Mas ouvir música e admirar um quadro são apenas formas de apreciar padrões existentes em obras de arte. Posso fazer isso por meios não físicos também. Agora, comer e apreciar um bom prato de comida… meu amigo, isso é algo que invejo muito mesmo em vocês orgânicos. Na verdade foi o que me levou a ser psicólogo de humanos: queria conhecer vocês melhor, pelo menos tentar imaginar suas experiências. Porque infelizmente isso nós, os puramente digitais, nunca teremos.

— O senhor é uma IA!

— Isso te incomoda? Me vê diferente sabendo disto?

— De forma alguma, doutor! Eu te conheço, sei que é uma pessoa, tem opiniões, é consciente…

— Como você sabe que eu sou consciente?

— Ora, fica claro em nossas conversas até agora!

— Eu não poderia só estar emulando consciência, para que você se sentisse mais confortável falando comigo?

— Agora fiquei confuso…

— E você tem provavelmente 96% de seu cérebro funcionando em neurônios artificiais, lembra? Como pode ter certeza de que está mesmo consciente? Será que seus neurônios artificiais apenas aprenderam a copiar muito bem seu cérebro original para me enganar? Para eu achar que estava conversando com um humano quando, na verdade, estou apenas conversando com uma máquina que imita um ser humano?

— Acho que eu… sou… uma máquina?

— É ruim quando isso acontece com a gente, né amigo?

— Mas… eu sinto que eu existo! Que eu estou vivo!

— Eu também, meu velho! Eu também!

O vídeo se abre neste exato momento. Mas ao invés do avatar perfeito o suficiente para conseguir enganar Alan nas sessões anteriores, surge na tela apenas um esboço de boneco feito de arames verde-brilhantes sobre um fundo preto. Uma imagem computadorizada do Dr. Jung.

— Mas me diga sinceramente: isso faz mesmo diferença? Seu corpo vai pifar daqui a poucos anos, você sabe, Alan! Não gostaria de perder um amigo de um jeito tão absurdo assim. Chegou a hora de dar o salto, não acha?

Alan leva a mão à nuca, sentindo o conector da interface com seus implantes neurais.

— Mas lógico, não quero te pressionar. A decisão final é só tua!

Ele pluga a fibra ótica no seu conector, e dá um comando na tela sensível. As seguintes palavras aparecem, piscando:

INICIANDO UPLOAD MENTAL...