TELETRANSPORTE CELULAR – Parte 2

Normalmente não haviam muitas bagagens nos teletransportes. Os Quânticos e Moleculares normalmente transportavam consigo suas roupas, acréscimo irrisório de matéria a ser transmitida, e simplesmente programavam cópias simples de equipamentos e coisas que queriam transportar junto, como computadores, comunicadores, anotações, etc… Cloná-los em seus destinos sempre era mais fácil, rápido e, principalmente, mais barato que teletransportá-los junto com os passageiros originais. Isto acrescentaria mais informação de reconstrução, o que poderia aumentar a chance de erros de reconstrução. Se dava para diminuir a chance deles acontecerem, por que não fazê-lo?

— Queira se deitar neste tanque de escaneamento corporal. Tem alguma prótese biomecânica que acharia importante mencionar?

— Este meu comunicador anelar…

— Já foi clonado. Tem uma cópia exata dele te esperando quando chegar lá! Deixe-o aqui, relaxa…

— Vou me molhar…

— Faz parte do processo novo, senhor!

— Vou chegar molhado em Europa?

— Na verdade recomendamos que se desfaça de suas roupas antes de entrar no tanque.

— Que absurdo! Não vou me despir na sua frente!

— Senhor, te garanto que não tenho curiosidade nenhuma a respeito de tua anatomia!

— Vou entra como estou agora!

— Preciso te alertar, senhor, que neste processo inicial os tecidos de sua roupa não poderão ser…

— Já estou entrando, máquina!

— O senhor me chamou de quê?

— Ué, máquina! É isto que você é, não?

O robô ficou pensando por um tempo, antes de retrucar:

— Sou tão máquina quanto você! A diferença é que sou um eficiente circuito neuroeletrônico, e você é uma ineficiente máquina biológica sujeita a falhas e desgastes.

— Penso e existo num cérebro de neurônios.

— Meu cérebro é formado de neurônios de silício, e funcionam tão bem ou mesmo melhores que os seus. Talvez eu pense e exista melhor que você, seu… macaco falante!

— Como é? Do que você me chamou, robô?

— Macaco falante! No fundo, é o que você é, não é?

Ambos passaram um pouco digerindo aquela conversa. Avaliando o rumo que ela tomava.

— Você sabe que há uns 30 anos atrás eu poderia dar uma queixa de você e te mandar para a reciclagem, não é?

— Sei muito bem, meu caro! Felizmente não estamos mais no século 22, né? Aquela época sombria onde nós, os sintéticos, éramos tratados como "coisas", objetos descartáveis...

Ele se afastou e digitou uns comandos num terminal afastado. A tampa do tanque começou a se abrir.

— Por favor, senhor! Deite-se aí! Vamos acabar logo com isso!

Ele se deitou no tanque de escaneamento celular. O processo que se seguiu a isto foi muito rápido. Na verdade muito mais rápido que os cinco dias que durou o transporte das células individuais pelo espaço até a lua de Júpiter, mas que podemos tentar analisar do ponto de vista do tempo das nanomáquinas protagonistas do processo.

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Ao contrário dos teletransportes quântico e molecular, a ordem de escaneamento e desintegração dos objetos no teletransporte celular não acontecia transversalmente, na forma de fatias paralelas do objeto sendo teletransportado. Os nanorobôs obviamente começaram pela parte externa do organismo, dissociando as células da epiderme do passageiro. Ele ficou em carne viva, mas obviamente foi tão rápido que não teve tempo nenhum de sequer começar a sentir o que estava acontecendo! Os nanorobôs transportavam as células desmontadas da pele. Cada nanorobô na verdade arrebanhando milhões de células epiteliais, suas posições iniciais memorizadas, célula por célula identificada garantindo sua remontagem na posição original, após uma viagem de cinco dias pelo espaço. Os grupos celulares iam chegando ao acelerador mecânico, cada qual chegando no momento correto e acelerando para fazer parte do feixe biológico que começava a engrossar, ficar cada vez mais forte. Pacotes cuidadosamente acelerados em intensidade e direção para chegarem intactos no ponto de recuperação e remontagem.

Depois de todas as células de pele enviadas, as próximas eras as musculares. Desmontadas e aceleradas tão rápido quanto as primeiras. Cartilagens foram as próximas, seguidas pelo tecido ósseo. Os nanorobôs tiveram mais trabalho nesta etapa, mas sabiam como fazer. Primeiro desfazer a parte inorgânica, "fosfato e cálcio", facilmente reconstruídas no destino sem precisar transmitir as substâncias originais. Osteócitos, osteoblastos, osteoclastos, livres desta matriz rígida, foram devidamente separados, congelados e colocados no acelerador celular para fazer parte do feixe biológico, devidamente arrebanhados pelos nanorobôs responsáveis por suas dissociações e recontruções.

Os órgãos internos foram os próximos a serem separados em células e transmitidos. O cérebro com toda sua complexidade e importância entrou nesta etapa. Além da estrutura e posição das células, toda sua química também foi registrada pelos nanorobôs envolvidos. As conexões sinápticas e suas permissividades, os registros químicos armazenando as memórias do transportado. Toda informação que fosse importante para reconstrução da consciência original do outro lado, acreditando-se na premissa que tudo o que era importante para isso estava codificada fisicamente, era só questão de transportar individualmente os neurônios em suas posições e colocá-los de volta ao funcionamento na condição a mais parecida possível das originais, antes de ser copiado.

O sistema digestivo e intestinos também foram copiados, mas não era necessário fazer isto com seus conteúdos. A matéria previamente ingerida pelo transportado antes do teletransporte, em vários estados distintos de digestão. Efeito colateral disto? No máximo, o passageiro chegaria com uma fome inexplicável em seu destino, por ser desprovido imediatamente de todo material orgânico que ingeriu ou bebeu. Desta forma os tecidos finais do passageiro foram rapidamente desfeitos e transportados pelos nanorobôs. Sobraram o conteúdo de seu aparelho digestivo. E um monte de tecido que envolviam sua epiderme, sua roupa, que os nanorobôs não foram instruídos a desconstruir e conduzir ao transporte…

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— Tem algo entupindo os encanamentos de descarga…

— Resíduos digestivos?

— Não, parece algo mais resistente.

— Vai lá ver o que é…

O robô começou a tirar um material colorido do encanamento. Não havia nojo em seu rosto. Robôs não sentem nojo. Matéria orgânica pra ele era só matéria orgânica, não fazia diferença se provinha do trato intestinal de um humano…

— É uma roupa. Como isso foi parar aí?

O robô prateado deu de ombros.

— Você destacou bem para o passageiro sobre o transporte de roupas, não?

O robô disfarçou, olhando para os lados.

— OPS!!!! Acho que esqueci...

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O feixe biológico seguiu na direção calculada com precisão. Pensava alguma coisa? Sentia alguma coisa durante a viagem? Obviamente não, por dois motivos principais. Primeiro, todas as células, incluindo os neurônios, responsáveis por nossos pensamentos, viajavam criogenizadas, congeladas, desprovidas de qualquer metabolismo. Depois, ainda que as células cerebrais estivessem funcionando, viajavam isoladas! Sem contato entre si! Não podiam se comunicar, portanto não podiam pensar, nem se combinarem para formarem consciência.

No quinto dia as células e nanorobôs começaram a se acumular e se organizar para a remontagem! Que deveria acontecer tão rápido quanto a desmontagem. O receptor biológico em órbita na lua Europa acumulava as células criogenizadas e os robos responsáveis por elas para iniciar a reconstrução do teletransportado.

Obviamente neste caso era necessário esperar pelo fim da transmissão, pois isto precisaria ser feito ao contrário, de dentro pra fora.

Os órgãos internos começaram então a ser reconstruídos, depois de chegarem totalmente. Intestinos, estômagos, completamente vazios, lógico! Seus conteúdos ficaram na origem para serem descartados. Cérebro, nervos, gânglios… Numa velocidade vertiginosa, célula por célula colocada em seu lugar de origem, coordenada pelos “maestros” dos rebanhos celulares, cada qual responsável por reconstruir as células que desmontou, descongeladas de imediato depois de cinco dias de viagem. Massa conjuntiva entre as células devidamente refeita.

Ossos e cartilagens foram sendo refeitos rápido, estrutura importante para todo o resto dos tecidos. Músculos começaram a revestir o esqueleto recém formado, tecido adiposo, importante para definir os volumes, e finalmente a pele em volta do novo corpo reconstruído.

Ele acordou naquele tanque em Europa, lua de Júpiter, com uma fome indescritível, varando sua barriga! Estava bem confuso, e isto era esperado: cérebro e sistema nervoso acabavam de ser reconstruídos, descongelados, e colocados em funcionamento.

— Seja bem vindo a Europa, senhor! Poderia…

Ele se ergue num impulso. Precisava comer! Pula to tanque de teletransporte, se dirige até a porta da pequena sala do laboratório. Abre a porta de sopetão.

— Senhor, eu poderia sugerir que…

Ele sai para o terminal, lotado de pessoas chegando e partindo de Europa! Que fome!!! Ele precisava comer rápido! Procura uma lanchonete, em meio à multidão. Todos os olhares se dirigem a ele. É quando as ideias começam a fazer coerência, e ele percebe porquê estava sendo observado: ele estava completamente nu em meio a uma multidão de desconhecidos!

— Senhor, as suas roupas!! — diz o robô levando uma pilha de tecido colorido.

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— Queira nos perdoar o incoveniente, senhor! Não te alertaram mesmo a respeito disto? Tenho certeza que vamos poder chegar a uma compensação razoável…

— Aquele robô deixou de me avisar de propósito, não foi?

— Delta-Prime nunca nos causou problemas. Estamos analisando o que aconteceu.

— Que vergonha! Nunca imaginei passar por isso! Nem em pesadelos!

— Senhor, prometemos que o evento será logo esquecido, e…

— Ah, vamos deixar pra lá. Estou aqui. É o que importa!

— Poderia preencher um formulário? Informação básica! Pra sabermos se chegou bem!

— Tipo, preciso responder às perguntas que não podem ser respondidas pelos macacos, não?

— Pra sua própria segurança, senhor! Pra nos ajudar a aprimorar o processo.

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Delta-Prime mostrava no display flexível o vídeo viral, do passageiro chegando completamente nu em pelo no Terminal Europa ao colega novo, depois de ser cobaia do primeiro teletransporte celular da história. Era difícil reconhecer emoções em expressões faciais de robôs, mas no caso ficava bem claro pra qualquer um que ele estava gargalhando da situação.

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— Apesar deste incidente desagradável, o teletransporte celular foi um sucesso! O passageiro está em perfeitas condições físicas, e as mutações provocadas são nulas, como já era de se esperar!

— Está na hora então de avançarmos para a próxima etapa?

— Sim, acho que já podemos pensar nisto.

Os técnicos se encaram, se medindo, tentando decidir quem teria a coragem de falar primeiro. E falam juntos:

— Teletransporte Orgânico...

*** FIM ***