O último incenso

Aquela janela alegra os meus instantes desde que vim para cá. É meu único contato com o mundo lá fora. Passo quase o dia todo sentada de frente para ela, recebendo a vitamina D nos dias de sol e, mesmo quando o sol não brilha para mim, recebo a vitamina N de novidade, que faz tanta falta em minha vida ultimamente.

Não é só de janela que passo os meus dias. Muitas vezes fico sentada de frente para a mesa, olhando o incensário vazio. Sei que logo chegará a hora de colocar o último incenso e acendê-lo. Mas ainda não.

Ainda é tempo de acordar cedo, não por precisão, mas por costume. Os ossos doem de ficar tanto tempo na cama. Tudo dói, na verdade. Mas já me acostumei.

O que mais dói é o peso do que não fiz. Tudo que fiz, para o bem ou para o mal, já recebi a recompensa e o castigo. Do que não fiz, nada recebi. E esse nada hoje me consome.

A chaleira apita, som que sempre me alegra, me transporta para momentos mais felizes, menos ociosos. Levanto da cadeira com dificuldade. Os ossos do joelho esquerdo estalam. Artrose.

Apago o fogo. Pego a xícara, a caixa de chá preto, o mel e a colherinha. Cada coisa na sua vez. Antes levava tudo junto, equilibrado em uma mão e a chaleira na outra. Bons tempos.

Preparo meu chá, forte e doce, como sempre. Enquanto esfria, arrasto a cadeira até o armário, subo, me segurando no encosto sólido, do tipo que não fazem mais hoje em dia. Pego a lata que coloquei em cima do armário.

Se não colocasse tão alto, os biscoitos já teriam acabado. E quero que durem mais um pouco, só um pouquinho mais.

Mesa posta, chá pronto e biscoitos. Só o necessário. É a hora que mais gosto. O comecinho da manhã, quando o sol entra pela janela, tão claro, ameno, reconfortante.

Como devagar. Antes devorava a comida, nem sentia o gosto. Agora saboreio cada pedaço. Cada minuto. Olho lá fora. Os planetas navegando na liquidez cristalina do céu. O sol apresentando sua dança matinal. Hora para lá, hora para cá. Passando em frente da janela a cada dez minutos, o tempo exato que leva em cada pirueta.

O gosto do biscoito amanteigado me lembra dela. Tão pequenina ainda. Sempre pedia a receita, mesmo não tendo vocação nenhuma para a culinária.

Era a única neta que entendia meu fascínio por aqueles biscoitos.

Pensar nela me leva a olhar outra vez para o incensário vazio. Já está quase na hora. Sinto nos ossos. Gostaria de estar mais preparada. Não quero me despedir dessa vida ainda.

Muitas lembranças felizes. Muitas pessoas amadas. Muitas viagens maravilhosas. Gostei principalmente desse corpo. Me identifiquei com ele.

Agora terei que começar tudo novamente. Do zero. Sem memórias, sem amores, e talvez em um corpo incômodo. Uma última vez. Um último incenso.

Tiro a mesa. Deixo tudo arrumado perfeitamente. Visto a roupa que preparei há tanto tempo. Nunca imaginei que demoraria tanto para usá-la. Prolonguei o máximo que pude.

Quando tinha vários incensos para usar, nunca esperei tanto, é a primeira vez que deixo o tempo me consumir assim. A primeira vez que venho para um lugar como esse, de pessoas que não querem se despedir de suas vidas, ou que não possuem mais incensos.

Vou até a janela uma última vez. Não consigo mais ver o sol. O pátio está tomado pelos outros velhos, aqueles que tem mais tempo do que eu. Eles passeiam lentamente, conversam, e principalmente lembram. A velhice é onde mora a memória de tempos antigos.

Vou até o armário. Na gaveta do meio está o último incenso. Está na hora. Coloco no incensário. Busco o fósforo. Acendo com dedos trêmulos. Nunca me acostumei com aquilo. Sinto um certo alívio, junto com o desespero.

Sento e observo o incenso queimar. Pela última vez.

Primeiro sua fumaça aromática me entorpece.

Depois sinto minha alma se separando do corpo.

Vôo pelo ar, livre, expandida, eterna.

Sou eu na mais pura essência. Sem rótulos, sem envólucros. O tempo não existe, só imensidão e infinitude. Penso se será assim no final dessa última vida. Seria bom.

Enquanto isso, meu corpo usado e decrépito está se transformando. Não sinto dor, só um estranhamento, como uma lagarta que vira borboleta deve se sentir no casulo.

Quando a fumaça acaba sou sugada de volta para o quarto.

Abro os olhos, temerosa. São perfeitos. Enxergo as cores vivas, que antes eram opacas. Olho minhas mãos, brancas e lisas, pele nova, unhas redondas, dedos finos e elegantes.

Levanto em um salto. Como é bom ser jovem novamente. Olho no espelho e gosto do que vejo. Simples, decente, honesta.

Tenho pouco tempo até as lembranças sumirem. A antiga eu se fundido com a nova eu. A sensação é estranha, perturbadora, sempre imaginei por que tudo tem que ser novo.

Novo.

Me sinto nova. Uma partitura em branco, pronta para os primeiros acordes.

Olho pela janela. Sei, de alguma maneira, que meu tempo ali terminou. Devo ir embora.

Antes de sair, noto uma velha lata de biscoitos. Pego um e provo. É a melhor coisa do mundo. Sorrio. Algumas coisas nunca mudam.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 21/12/2022
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