REPELENTE DE TIRANOSSAURIO - (Contra-contos #4)

REPELENTE DE TIRANOSSAURIO

Nos terrenos alagados o dinossáurio refocilava, baixando o pescoço com as presas colhia um pouco da vegetação suculenta. Da distância eu o observava, surpreso ao sentir que seu corpanzil não me assustava tanto quanto imaginara, sabendo que se me visse e resolvesse avançar dificilmente lhe escaparia.

Cada passada daquele elefante gigantesco, misturado com girafa e lagartão pelo pescoço, cabeça pequena e cauda escalada, correspondia a diversas das minhas e percebia, ele sabia movimentar-se com ligeireza insuspeitada para tal porte.

À frente havia terra mais alta e mais firme, mas como ia eu me arriscar a seguir em campo aberto, chamar sua atenção por meus movimentos e talvez pelo faro dele?

Jamais alguém poderia afirmar se os dinossáuros tinham ou não faro, ninguém seria capaz de dizer se viam em preto e branco ou em cores do arco-íris.

Resolvi aguardar momento oportuno, afinal não tinha encontro ou lugar marcado para estar nesse mundo cretáceo ao qual o Tesserato Energético me enviara. Dispositivo engenhoso, aquele!

Bem, ficaria a observar a monstruosa criatura que comia, calma e pachorrenta. Chegara, ao menos, ao local onde havia alguma vida ante-diluviana. Se havia dinossáurios, outros seres coetâneos por certo surgiriam.

Ansiava, porém, por chegar a terra mais alta e mais seca, as botas impermeáveis estavam cheias de lodo e água, serviriam para pantanais e charcos mais rasos e não para aquele ponto em que me materializara, vindo do futuro e arremessado ao local indeterminável pelo Tesserato Energético.

Observei o animal, desenhei-o cuidadosamente em ponto pequeño no caderno graças ao qual podia assinalar mais detalhes do que em fotografia colorida tridimensional. Pelo estojo sintético de cores – eu as estudara profundamente – assinalei a combinação exata de sua tonalidade.

Fiz todas as observações possíveis e o estupor do animalão seguia pastando, não aumentava a distância a nos separar, não a encurtava também. Atrás de um arbusto já desenhado e codificado de cor, assinalando a altura do sol e observação geral de temperatura, pressão e o mais, eu me cansava do espetáculo e percebia a ironia da situação – um homem de determinada época febricitante volta atrás no tempo e assim se situa para observar um canto perdido do período cretáceo.

O que podia desejar? O desfile das criaturas de então, como espetáculo de cinema ou televisão, apresentado toda a faixa de vida animal em poucos minutos?

Não devia trazer a impaciência comigo mas de algum modo ela se soubera infiltrar clandestinamente na bagagem compacta.

Afinal o gigante se afastava, comia aqui e acolá e seguia em direção a pontos mais alagados do charco enorme. De longe eu ouvia as patorras chapinhando, o chão parecia tremer quando pisava mais firme.

Comecei a me esgueirar na direção desejada, tendo assinalado o local onde me materializara, com minúsculo rádio-emissor que facilitaria o reencontro do local quando mais próximo a ele.

Meu equipamento era completo, tudo em dimensão e peso reduzidíssimos, a me tornar verdadeira expedição científica ambulante e composta de um só homem e não uma besta de carga.

Micro-conjuntos cibernéticos asseguravam minha localização fácil, instrumentos permitiam efetuar observações impossíveis a olho desarmado. Só no cinturão havia o bastante para me tornar observador autônomo em muitos setores.

Alimento desidratado, pós para adicionar à água e hidratar os alimentos e a mim mesmo, purificando qualquer tipo de água local – era só o que faltava, levar cantil com água de uma época a outra!

Água não faltaria onde andasse – e de fato a trovoada se anunciou sem preâmbulos, a chuvarada desabou e quase me derreava no chão, era um peso descomunal sobre ombros e cabeça.

Os raios! Riscavam o céu enegrecido pela imensa nuvem primitiva, clareavam a zona de sombra pronunciada formada pela nuvem especíssima, quase água pura, rolando e tangendo ventos uivantes, ventos a fazerem ondas de algum porte mesmo na água rasa do charco. Tratei de me apressar, tais condições não permitiriam ao dinossário me entrever, no dilúvio a cortina de água invisibilizava tudo.

Corri quanto pude, assim escapava ao dilúvio local, brincadeira para animalões de porte, mas capaz de me afogar. E cheguei a terreno mais alto, enlameado e escorregadio, sob o aguaceiro não cedia aos pés. Ah, ter os pés secos!

Quando pude, e resignando-me na chuva a fazer o que fazem em París quando chove – deixar chover – sentei-me e consegui lavar na própria chuva o lodo que entrara nas botas. Se os pés iam estar em botas inundadas, ao menos fosse em água limpa.

-- Água limpa! -- disse a mim mesmo – Água de chuva é limpa!

Bastou estender o capacete e logo se enchia – e bebi com gosto. A primeira água que bebia no Cretáceo, e soube muito bem. Se podia dizer algo, tal água tinha gosto de relâmpago.

Assim como desabara, o temporal cessou. Coisa estranha, uma verdadeira muralha de água, a algumas centenas de metros continuava desabando, mas por toda uma faixa ampla tudo se tornara límpido, claro, lavado. Ali a claridade voltava a imperar, podia enxergar bem mais distante, eu conseguira subir ao terreno mais alto das imediações.

A paisagem! A emoção! Diante de mim, a centenas de metros, o terreno se estendia e elevava, divisava picos agudos de formação recente, diversos fumegando – vulcões! E pontos móveis diziam da vida por ali existente, logo se impunha ao ruído decrescente da chuva diluviana em seu trovejar e grito de animais, gritos estranhos e horrorosos me chegavam aos ouvidos à medida que o ribombo de trovões e dasabar da chuva diminuíam.

O terreno escalado pedia melhora de posição para observar melhor e escolhido o rumo toquei por ele, fui subindo um chapadão dezenas de metros acima do nível do charco ao qual fora arremessado pelo Tesserato Energético.

Não me podia queixar dos cálculos ‘pousara’ em terra semi-firme e a pouca distância de terrenos mais altos. E se me materializasse em pleno oceano, num planeta nove-décimos coberto por águas profundas?

Atento a tudo, cabia-me agir do modo mais acertado para sobreviver por determinado período nequele local e nesse recuo do tempo, pois constituía tese debatida em minha época saber se éramos capazes, com recursos naturais ou de feitura humana, sobreviver em tal ambiente.

Por isso mandavam-se homens e mulheres do século XXI ao Cretáceo, a fim de se ter idéia do que lhes ocorria, trespassados assim a era inteiramente outra – se eram capazes de sobreviver algum tempo ou se as condições de então sufocariam, eliminariam, esmagariam, tais aventureiros. Eu era apenas o trigésimo-sexto secular XXI a tentar, pois dos trinta e cinco outros, enviados antes, um só, apenas um regressara.

Após o não-regresso de sete exploradores do Cretáceo, o oitavo voltara, fora o único – e voltara em estado de total incoerência, mais doido e psicologicamente arrasado, que qualquer caso conhecido na psiquiatria mundial. Psicologicamente arrasado, fisiologicamente em péssimo estado, lanhado, escoriado, emagrecido e febril – uma sombra comovente do homem apto, disposto e firme de antes.

O princípio científico da viagem pelo tempo viera de muito antes, mas no século XXI alguém se saíra com sua concretização – o Tesserato Energético, aperfeiçoamento genial (e acidental) de princípios teóricos aventados por dois homens dos idos do século XX, um chamado H.G. Wells e um obscuro sul-americano de nome Blacheyre.

Tratava-se de uma câmara cúbica perfeita dentro da qual se situava o viajor, operando em conjunção relativamente simples de forças e princípios matemáticos, astrais e energéticos.

As primeiras experiências tinham sido feitas com objetos, plantas e o mais, dando resultados quase sempre positivos – tais objetos e seres desapareciam no interior do Tesserato Energético ao ser acionado o campo no momento certo, voltavam ou reapareciam quando se acionavam em inversão as forças e princípios.

Não havia, porém, como enviar objetos e seres ao futuro, que constituía ainda barreira intransponível por mais que milhões de interessados se esforçassem.

Enviando amostras de objetos e seres ao passado Cretáceo os pesquisadores haviam trazido diversas amostras de ar e água, solo ou vegetais, isso permitindo graduar as escalas e predeterminar o recuo do tempo. Assim os trinta e cinco homens e mulheres tinham-se ido e apenas o oitavo voltara.

Todos voluntários, poucos se atreviam a se apresentar, faziam treinamento para a empreitada, nenhuma companhia de seguros aceitava emitir apólice cobrindo os riscos. Apenas os aventureiros e os dotados de grande coragem e ambição – ou outras qualidades – se apresentavam, despedindo-se da vida antes de partir.

O simples fato de ser assim, entretanto, chamara um tipo especial de gente – os inteiramente loucos e os fartos da vida ou do século XXI – ninguém podia dizer. Os loucos era rejeitados pelos examinadores, os razoavelmente desgostosos com a vida sofriam seleção maior e eram enviados – essa a fonte maior de viajores do tempo, paleólogos como a opinião pública se habituara jocosamente a chamá-los. Entre eles boa dose de mulheres, inquinadas pela opinião pública de ‘Ullas’, pelo nome da companheira de célebre personagem de televisão e cinema.

Só quando o trigésimo-quinto deixara de voltar alguém ligara duas pontas soltas levantando a hipótese absurda: talvez a maior parte desses paleólogos e Ullas não houvesse regressado por não desejar regressar, por preferir aquela época remota, mesmo porque o simples desapego à vida moderna no século XXI, demonstrado por tais voluntários, constinuía segura indicação de que seriam capazes de trocá-la, a essa vida moderna e civilizada, vinte-e-única, por qualquer outro tipo de vida ou ambiente, mesmo o Cretáceo.

Levantada a suspeita eu fora chamado em meu trabalho de arqueologia e antropologia, professor em universidade, para examinar a possibilidade.

A junta encarregada do Tesserato Energético me submetera às maiores sabatinas, após ter eu sopesado a possibilidade de que paleólogos e Ullas podiam ter ficado no Cretáceo voluntariamente e a mim cabia fazer a viagem.

Receberia para isso as garantias possíveis, meus velhos pais teriam direito a indenização não muito elevada se eu não voltasse (se fosse elevada o fato entraria em balanço e eu poderia deixar voluntariamente de voltar por detestar o século XXI, por me agradar do Cretáceo e colocar meus velhos pais em boa situação).

Em mim, um dilema surgira mas o caráter de desafio na situação me atraia – e encurtando motivos, eu aceitara.

Eu examinara os relatos dos paleólogos anteriores, em espcial o de Ruy Sansez, que fora e voltara – inteiramente alucinado. Não melhorara, seu estado piorava sempre, haviam-no posto em estivação, a volta do estado de lucidez o levava a tamanha agitação que a saúde abalada perdia terreno a cada minuto. Trazé-lo a si, em toda sua loucura, era o mesmo que matá-lo em poucas horas, um definhamento físico perceptível e impressionante.

Senti o chão estremecer quando cheguei a uma elevação. E o berro que me veio aos ouvidos gelou-me dos pés à cabeça, embora o sol tivesse me secado e a água nas botas evaporado – o calorão que fazia! Olhei na direção do berro fantasmagórico e arrepiante – e lá estava a besta, a própria Besta – o soberano de todos os tempos, superior a Tubarão e à Esfinge – o Tiranossário. A trezentos metros, se tanto! Ter-me-ia visto?

Não, ele se empenhava em estraçalhar uma presa qualquer, formas já desfeitas, vermelhidão total de sangue a espirrar e escorrer.

Tratei de fugir e pude conhecer estado de espírito que o século XXI jamais me provocara – o medo, medo pânico, terror verdadeiro, o mais completo e avassalador. Agora sabia como se sentia o ser vivo, posto diante da Besta-Fera, o mais temível dos seres conhecidos do Homem.

Acho inútil tentar descrever a sensação, a situação.

Em mim brotou, de algum recanto obscuro e supostamente desfeito, de um recôndito escaninho psicológico, tamanha onda de pavor que me surpreendia ser capaz de andar, correr como corría. E surpreendia também isso – nunca me imaginara capaz de correr com tanta velocidade e tamanho empenho.

Naqueles momentos, reconheço, não creio que me detivesse um instante para verificar tais desempenhos atléticos ou psicológicos. Fora inteiramente tomado pelo berro medonho e espetáculo pavoroso, escabroso, que mais posso dizer?

De total incapacidade de fazer outra coisa senão – correr. Devo ter superado qualquer marca atlética de nossos esportistas profissionais e acredito tê-la superado em questão de dezenas de segundos ou minutos, conforme o caso.

Caí praticamente morto e desmaiei, em uma depressão ou sulco no terreno. Desmaiei sim. Saí de mim, apaguei, desliguei. O choque fora demasiado. Tenho certeza, meu coração baqueou, andei na fronteira entre o vivo e o morto, não sei por quanto tempo. Porque quando voltei a mim, esperava-me coisa pior.

Enfiado naquele nicho do terreno, uma espécie de ventre protetor contra os perigos do mundo, senti uma presença – e voltei a cabeça, olhei para cima. A Besta-Fera estava precisamente encima de mim! Foram momentos espantosos de pavor o mais total, percebi que não ia a agüentar, morreria em seguida. Mas sempre fui dotado de certa curiosidade conjetural, fiquei a imaginar se aproveitaria meus últimos momentos para observar o que, por certo, poucos seres humanos haviam tido a oportunidade de examinar: um Tiranossáurio inteiramente por cima e visto, portanto, por quem se acha abaixo dele. Um ângulo novo e inusitado, diriam fotógrafos e cineastas. Pouco fotogênico.

Lá estava eu debaixo de um Tiranossáurio, podendo ver-lhe as partes pudendas e escrotais ou sexuais. O animalão, a Besta do Apocalipse, logo percebi, não se dera conta da minha presença. E o que gotejava dele era – grosso e viscoso… sangue! Talvez sangue da vítima que estraçalhara e devorara. Nunca fui melindroso mas aquele sangue ainda quente e viscoso que me caía encima em gotas enormes e pesadas trazia-me tamanha dose de repulsa que creio ter sido essa minha salvação cardíaca – o desaforo de ser assim torturado pelos mais bárbaros meios de repulsividade (ao menos em meu caso) me trouxe de volta ao final de minha vida cardíaca, reagi contra a afronta, protestei intimamente contra aquilo. Matar e devorar ainda se entendia – mas tripudiar era demais!

A esse estado de espírito me aferrei logo, ao perceber que era minha salvação. Gotas de sangue que me caíram no rosto cegaram-me, entraram-me pela boca – aquilo mais parecia baldes ou canecas de líquido quente e horripilante, nauseabundo – e me tiravam a visão, a mão que esfreguei nos olhos para, ao menos, morrer vendo o que se passava, não conseguiu restaurar-me a vista, estava ficando cego, olhos encobertos por aquele líquido pagajoso… Ah, quem me mandara aceitar a maldita proposta de viajar no Tesserato Energético? Por que não dissera àqueles cães malditos para enfiarem…

Foi quando veio a inundação.

Senti – não podia ver – que um líquido mais quente ainda, quase quente e pelando, descia aos borbotões sobre mim, quase me afogava, parecia estar-me preparando para um cozido qualquer, visando tornar-me uma batata cozida e quente. E o peso e a pressão em volta do corpo se tornavam insuportáveis, comecei a bracejar, espernear, estava soterrado/afogado numa massa que me sufocava e impedia a respiração…

Ao diabo com o Tiranossáurio, Besta-fera que se desgraçasse, eu ia lutar para sair daquela vala inundada. E tanto bracejei e espernei que consegui pôr-me em pé. Acabasse logo com tudo aquilo, eu ia morrer lutando – e descobrira em mim recursos inesperados e insuspeitados de energia e virilidade, vontade de lutar. Enfrentaria o Tirano e qualquer outro mastodonte, mas não morreria assim, sepultado/afogado vivo!

Em pé recebi novo jato do líquido quentíssimo, diretamente sobre a cabeça, como em absurdo chuveiro pre-histórico de água aquecida – até demais.

O líquido lavou-me a cabeça, no aturdimento total comecei a enxergar. Continuava exatamente em baixo do Tiranossáurio e ele – urinava em mim!

É de encabular frade de pedra, vejo agora – mas por certo fui um dos poucos seres humanos a tomar banho em urina de Tiranossáurio -- aliás uma fêmea, como pude então perceber facilmente. E a massa terrivelmente fétida em que quase fora sepultado vivo – eram suas fezes!

Não estou pensando em reclamar tais títulos para mim – mas fui um dos poucos seres humanos senão o único ser humano a ser sepultado em bosta e urina de Tiranossáurio e logo em seguida, lavado por uma ducha brutal, ardente e tremendamente fedorenta de urina. Grande glória.

Estava agora disposto a tudo, a tocar aquele animalão dali a pontapés se o alcançasse. Matasse, sim, mas defecar/urinar em cima da vítima ainda viva, emporcalhada de maneira sufocante, reduzida à última potência de quase nada – mas ainda viva – era demais.

A fúria que me assomou e se apoderou de mim, aquela violência inaudita e inconcebível contra um ser que sempre se pautara pelos códigos higiênicos mais escrupulosos, homem que diariamente tomava um mínimo de dois banhos, tudo isso ultrapassava qualquer medida imaginável. Eu estrangularia aquele monstro se lhe pudesse alcançar o pescoção e circundar-lhe o gasnetão com as mãos.

Como tudo isso se achava inteiramente fora de cogitações, restava um recurso e para minha nova surpresa eu me via/ouvia a proferir os maiores palavrões. Desandei no xingatório mais descabelado e obsceno do qual minha educação universitária, em condições outras, seria incapaz de se valer. As mais estranhas, confusas e inéditas ofensas vieram a meus lábios na boca suja, aquecida por urina, com sabor indizível de coisas imundas e fétidas.

Eu era A figura do protestador, contestatário, reclamante, insultado e ofendido – e a fúria assassina a me invadir! Queria estrangular, espezinhar, esquartejar e esmagar a criatura nojenta, repugnante, obscena, cretina, monstruosa, demoníaca, absurda, ilógica, e filha da puta – se me dessem o poder, se o pudesse adquirir, eu o esquartejaria sorrindo, gozando cada instante disso, fazendo-a sofrer o mais possível.

E foi tamanho meu espanto ao perceber o despertar de tais sentimentos e emoções em mim, o mais civilizado e lógico dos homens – e tal ficara devidamente apurado nos rigorosos exames de seleção – que a raiva passou.

Por isso afirmo – sou um Ser Especial, embora por circunstâncias fortuitas e praticamente irreproduzíveis. Além de viajar no tempo, recebera um “batismo” ígneo e nauseabundo de urina e fezes de uma Tiranossáuria, se já inventaram como designar a fêmea da Besta-Fera, o Grande Eliminador da Vida.

Tornara-me irreconhecível a mim mesmo, que me conhecia profundamente por aspectos os mais sérios e importantes para todos os efeitos de uma civilização como a do século XXI, percebia-me agora um homem inteiramente diverso do imaginado e que realmente procurara ser por toda a vida.

Meu berreiro foi tamanho! Não podia deixar de acontecer – chamei a atenção do animal. E agora em pé na vala inteiramente prenchida de fezes e urina, encoberto ainda na maior parte do corpo por aquela composição indescriptívelmente nojenta, podia ser facilmente abocanhado.

O animalão se movimentava, punha-se de frente para mim – a cabeçorra se aproximava de fauces hiantes abertas – eu ia ser estraçalhado.

Tão indignado me achava que não fechei os olhos – encarei o animalão e, posso afirmar, poucos fitaram com tanta lucidez a morte medonha e triturante se aproximar. Assim vi aquela caçamborra repleta de dentes terríveis chegando, entreabrir-se e não estava mais do que meio metro de mim, o hálito repelente me estonteava, quando se deteve.

Percebi que o bicharoco me farejava, das ventas enormes o ruído de ar entrando sob inspiração forte era como o vento fazendo manobra num recanto de edifício bem ventilado, a entrada de ar nas grades das instalações de condicionamento.

Eu estava sendo farejado por um Tiranossáurio!

E logo o estrondo, o chão tremendo – o animal se afastava! Perdera o interesse pela criatura que ela mesma tornara tão fedorenta, não apreciava seus próprios odores corporais, desprezava-me como pasto!

A mais inaceitável das situações: eu fora rejeitado como comida de Tiranossáurio. Animal chiliquento e fastidioso, repugnava-lhe qualquer pedaço de proteína ambulante exalando os fedores por ele próprio secretados.

Voltei mais ou menos a mim com o espírito de pesquisador sempre alerta a me dizer: ‘Devo ter descoberto um repelente de Tiranossáurio – feder a merda e urina do próprio’. Mas tais fedores não repeliam apenas o monstro – eu também me via inteiramente estonteado pela fedentina, não a conseguia suportar, as pernas fraquejavam, ansiava por respirar ar puro de qualquer sentina humana, jamais respirar aquela maldita e empesteada atmosfera exalada da fossa onde me pretendera esconder.

Não sei como saí dali, mas desprezei tudo e todos e corri quase às cegas para a primeira água, desci aquele morro e estava a me aproximar com certa rapidez -- e falta de ar – do charco do qual saíra, quando percebi que tudo escurecia e novo temporal desabava.

Ah, um verdadeiro banho de chuveiro, mais grosso e espeso que em qualquer ducha do século XXI, onde a água do banho era medida e proporcionada, onde o ralo colhia a água e a reciclava, reaproveitava, assoalhavam alguns, que na maioria das instalações de reciclagem tal água reaproveitada era mais ou menos purificada e devolvida às caixas comuns. Coisa aprendida nas espaçonaves que riscavam os céus do sistema solar – não se perdia uma gota de líquido, a própria urina humana era reciclada e devolvida aos tanques…

Esfreguei-me, despi toda a roupa, pus-me tão nu como quando nascera, jamais um banho me fez tanto bem, esfreguei as roupas umas na outras, lavei as botas por fora e por dentro. Afinal, dando-me por inicial e grossamente satisfeito com a limpeza de tudo quanto portava, cada milímetro de minha superfície epidérmica – sou calvo como bola de bilhar e não suporto a expressão ‘pouca telha’ – percebi que as coincidências podem ser notáveis: quando me dei por inicialmente satisfeito com tamanha ducha, eis que ela cessou abruptamente, a atmosfera clareou e o temporal cessava.

O pior, o que mais trabalho deu, foi limpar as orelhas e narinas, por onde se haviam adentrado os componentes da massa fétida tiranossáurica.

E tive então de rir, ao lembrar da anedota onde se conta que o estudante dorminhoco tivera as narinas besuntadas de fezes pelo colega de quarto, um brincalhão, que acordara mais cedo.

Acordando e sentindo o fedor, fungou e verificou o travesseiro, a cama, o quarto, a janela estavam sucessivamente fedorentos. Abrindo a janela para aspirar a pureza da atmosfera externa e continuando a sentir a catinga, chegara à conclusão de que, infelizmente, dessa feita haviam cagado no mundo todo.

Reconhecia, porém, que tais variações em estado de ânimo e espírito me haviam levado às proximidades da morte por puro pavor e terror, diversas vezes. Asseguro, nada pode parecer ou ser mais medonho que fauces de um Tiranossáurio, a se aproximarem com a nítida intenção de nos dilacerar e devorar.

E tais variações de estado de ânimo e espírito me haviam igualmente tirado da situação mais crítica, haviam-me praticamente trazido de volta à vida, revindo do mundo dos mortos. O susto e medo tinham-me abalado a ponto de levar à fronteira da morte. O desmaio fora verdadeira morte, creio que o coração parou por momentos. Talvez o calor do sangue gotejando aos cântaros me houvesse trazido de volta do reino das sombras ou trevas.

Ora bem, havia escapado ao assédio e interesse de um Tirano!

Isso me conferia singular patente, servia para fazer desaparecer o medo maior. Não ia-me oferecer à bocarra dentilhada de animal algum, mas havia passado por prova de fogo diante da Besta-Fera e saíra vivo. E conhecedor de um meio de desinteressar Tiranossáurios, seres deslavadamente estúpidos, estúpidos das patorras à cabeçorra, quanto a pretenderem devorar-nos – besuntar-me de bosta do referido animal.

A salvação contra a Besta-Fera, destruidora Número Um da Vida, era seu próprio excremento… Ou assim correra a coisa dessa vez. Hesitava agora em dilema crucial: manter-me limpo e lavado como estava e desse modo constituír-me em acepipe para o animal e outros, ou andar permanentemente coberto de excrementos tiranossáuricos para lhes escapar. Viver sujo ou morre limpo – não era o mesmo problema/dilema de escorregar no doce e cair nas fezes ou escorregar nas fezes e cair no doce?

Mas estava atuando para verificar por que motivo os Paleólogos e as Ullas não haviam regressado ao século XXI? Devia dedicar mais atenção a essa conjetura pois viera para isso. Passara por tamanhos estremeções, todavia, que resolvi afastar todos os pensamentos e procurar ressituar-me na viagem. Varri a faixa de frequências dos marcadores com o receptor minúsculo, e verifiquei que oito estavam transmitindo, isto é, os pontos base de oito que tinham vindo antes.

O dia ia mais alto, o sol se aproximava do ápice e foi quando reparei melhor – sobre as montanhas mais distantes, no horizonte bastante encoberto, estranho disco luminoso se fazia entrever. Relutei até aceitar que fosse a Lua. Era ela mesma. A base Selene que no século XXI tinhamos colonizado, encontrando em seu seio habitações e mundos subterrâneos ou sublunares abandonados por seres que ali haviam vivido por muito tempo sem o homem saber. Pelos sinais deixados era seres idênticos ao homem, corporalmente – mas que adiantamento técnico haviam alcançado!

Notava que era uma Lua, a Lua – mas que diferença! Muito maior que o satélite frio e calmo de nossa época, erguia-se em disco bem amplo e – caramba! Se vinha naquela proximidade, bem mais perto da Terra, isso queria dizer que as marés no Cretáceo não eram brinquedo, as águas não tardariam a subir muito mais do que eu imaginava!

Olhando para o charco observei que estava inundado agora, as águas subiam com certa rapidez, vindas de todas partes e a maré causada pela atração lunar muito maior não tardaria a encobrir toda a faixa onde me encontrava, o terreno mais alto a que eu alcançara já estava invadido.

Tinha que me escafeder para chão mais alto, bastava olhar para ver a que altura a maré subia – ou não bastava? Calma, disse a mim mesmo. Se escapei do Tirano devo escapar a qualquer coisa. Subir a terreno mais alto, naturalmente. Devo ter meia hora, mas… assim como eu subo, os animalões que não sejam aquáticos vão subir também, fica tudo amontoado em pouco espaço e…

Estou querendo me encontrar com aquela mesma vaca que me sujou todo? Pior, com outro daqueles cretinos que só sabem estraçalhar, comer, matar?

Um calafrio me sacudiu a espinha. Tinha que me proteger!

Caminhei até a vala/fossa e desacreditando em minha própria coragem, besuntei-me de bosta de Tiranossáurio. Só que fui mais seletivo, espalhei sobre a roupa e não no rosto, braços, pele. Ah, senhor, como fedia!

Não satisfeito, enchi uma bolsa plástica e pondo-a bem fechada às costas, tratei de escalar a elevação e notei que animais de todos os tipos faziam o mesmo, alguns se achavam em cima do planalto mais elevado. Só que um bando de lagartos pequenos e que não faziam medo percebera meu cheiro de longe – eles dispararam em fuga. Raciocinei – o cheiro que tresandava de mim era repelente do todos os animais?

Eu encontrara o repelente total, nem mais os mosquitos me perseguiam.

Quando o temporal desabou eu estava protegido por cobertura, de modo que enfrentando a catinga mais concentrada na atmosfera do pequeno recinto formado por essa capa plástica, cheguei ao ponto que divisara na distância, o mais apropriado. Se a maré o atingisse – bem, sempre há o momento em que não se pode fazer mais coisa alguma a não ser depositar todo o capital no vermelho. Deu preto? Azar, acabou.

Quando a chuva passou tive uma das maiores satisfações da minha vida – mesmo sob a chuva, os demais animais presentes, ilhados como eu, se haviam afastado o mais possível. O cheiro evolado de mim era de fato o maior repelente de animais pré-históricos até então descoberto.

Abusando da sorte e testando melhor o esquema, parti diversos passos na direção de um animal que escapava a qualquer descrição possível, se, não a de gigantesco tatu-bola. E pude notar, não errara na suposição. Ao perceber minha aproximação o animalão resfolegou, remexeu-se e com um ronco fino se atirou embolado à água. Parecia estar dizendo que se afastara o mais possível e aturara minha presença ou proximidade até o limite da sua resistência – mas eu me aproximar demais, o levava a preferir os seres aquáticos que passavam como sombras submarinas.

Uma figura portentosa, acocorada com enormes braços/asas escura e de pelos curtos, parecida a uma gárgula medieval destinada a apavorar os crentes e descrentes esbateu aquela galhada, armação incrível de ossos – e decolou, alçou vóo. Os pterodáctilos também não apreciavam meu cheiro. Nojo ou pavor, o cheiro funcionava! Vi-me sozinho naquela faixa de terra alta, numa espécie de praia de lodo recortada por vegetação espessa e alta.

Começava a crer que seria capaz de sobreviver.

*******

A noite foi uma tranquilidade, a despeito das chuvas torrenciais, urros e gritos de todos os tipos, do céu ora aberto, ora fechado de nuvens. Dormi esgotado, mantendo cuidadosamente à mão meu saco de bosta de Tirano, a substância mais preciosa para qualquer ser humano que pretenda sobreviver ao período.

Acordei uma vez quando a Lua se punha e não acreditei estar ali nem me identifiquei ou lembrei do que fazia em tal lugar e o que acontecera.

Acordei com o calor do sol a me fustigar, logo seguido por outra tempestade de água e vento. Olhei, a água descera com a maré, o charco onde se achava meu posto-base voltara ao aspecto da véspera.

Fiz as observações possíveis, por trinta dias, movimentando-me como autêntico turista na Piazza de Veneza, sem ser incomodado por animal algum. Quando achei que meu olor enfraquecia, tratava de reforçá-lo com a reserva da bolsa plástica.

Chegados dia e hora, estava em meu posto-base, faltavam minutos para a tentativa de regresso. Arrumei-me o melhor possível e fiquei à espera.

Senti algo estranho, como desmaio: quando voltei a mim achava-me no salão do Tesserato Energético. Eu regressara! Eu regressara!

Não percebi de imediato, entussiasmo de pessoa alguma. Aliás, onde estavam todos? Divalguei ainda um resto de corre-corre, gente sumindo pelas portas mais distantes e fechando-as com estrondo, ouvi o resto de uma gritaria indignada e apavorada, um velhote capenga atravessava a distância até a porta, gritando para esperarem por ele.

O que acontecia? Deviam estar dando pulos de satisfação, eu era o primeiro homem a voltar do cretâceo a se sentir lúcido, sem endoidar, trazia informações preciosas, de valor incalculável. E fugiam de mim?

Havia algumas manchas esquisitas pelo chão e logo identifiquei – vômitos! Ora, o que acontecera? E o velhote puxando a perna era meu dileto amigo o professor Voroshilov, quem mais me preparara para a viagem ao Cretáceo, haviamo-nos afeiçoado muito.

Quando reapareceram, uns após outros, vinham com lenços nos narizes, diversos traziam máscaras encobrindo-lhes os rostos, parecendo-se por sua vez a moscas imensas na parte do corpo que chamamos cabeça. Máscaras. É, eu comprendia o que se passava, o motivo para recepção tão inconcebível – trouxera comigo o cheiro de Tiranossário, não me lavara/higienizara antes de entrar no posto-base para ser trazido de volta ao século XXI.

Tive que rir e comecei a rir cada vez mais, eles se proximavam com perguntas a que não respondi, apenas ria e gargalhava em seguida. Eu me transformara, aliás fora transformado por aquela viagem louca, nos dias em que trabalhara febrilmente, confiara-me por minha vez no escudo/proteção do odor tiranossáurico e – parecia incrível mas verificara agora – eu me acostumara a ele! A ponto de, imerso no trabalho e coisas a fazer, esquecê-lo por completo e não mais o sentir. Pensando bem, notara uma certa falta de odor no ar, nos animais e em tudo o mais que pudera examinar.

Eles me cercaram, levaram-me a exame – sempre mascarados, eu nem sabia quem eram, apenas o defeito físico do velho Professor Voroshilov o identificava. A cabeça envolta em verdadeiro capacete ou escafandro, defendia-se do cheiro de bosta de Tirano trazido comigo.

Assim despi as roupas, envolvi-as em sacos plásticos dos quais esvaziei as amostras de rochas, plantas, água e ar, os ventiladores e sistema de condicionamento de ar do salão logo deram conta do cheiro, os sacos plásticos foram levados dali em carrinho do qual o servente se mantinha o mais afastado possível.

Foi o Professor Voroshilov quem ensaiou retirar o capacete a determinado momento, mas vi que o repunha de imediato. Pelas portas entreabertas apareciam caras curiosas e sem máscara. O ambiente se tornava menos fétido para eles, suportávelmente menos fétido.

Eu voltava à atmosfera reinante no século XXI, o ar trazido a invisíveis borbotões pela ventilação e condicionamento expulsara todo o meu fedor ante-diluviano, meu próprio nariz começava a receber o ar no qual tinha sido nascido e criado, homem de gabinete desde menino.

Um enjôo leve se apresentava, aguçou-se quando respirei mais fundo, a náusea se apoderou de mim com violência inacreditável, que me deixou tonto.

A intolerável catinga, a sufocante fedentina, o pavoroso mau cheiro, o monstruoso fedor daquele ar que eles respiravam de modo tão natural!

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Valpii 870611(cretáceo) 790921

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REPELENTE DE TIRANOSSAURIO

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do quarto dos contos da coletânea,.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 05/11/2023
Código do texto: T7925276
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