Nem era uma onda de verdade

...

Diolinda acordou bem mais cedo que usualmente. Aliás, acordar não se aplica como conceito de abrir os olhos, pois ela já estava desperta há muito, em verdade, ela se levantou mais cedo. E em levantando esticou o braço direito para o painel digital, como sempre fazia, porém, nenhum dos controles normais reagiu ao seu toque. A luz não foi acesa, nem o visor informativo, não se ouviu os sons da cozinha preparando o desjejum. Por alguns segundos, Diolinda estacou a mirar o dito painel na tentativa de sinapsar alguma explicação, o que foi inútil, não havia referência, apenas consequência. Ao menos as cortinas virtuais do quarto estavam desligadas e a luminosidade externa se fez presente. Um dia de sol, talvez um dos últimos, se por acaso, as preocupações que roubaram o sono de Diolinda possuíssem motivo de existirem.

Momentaneamente distraída com as funções mecânicas rotineiras sem o auxílio da inteligência artificial que comandava a residência, Diolinda banhou-se, fez breve refeição, brincou com Asterid, seu gato verdadeiro e sentou-se no amplo sofá da sala para aguardar o visitante agendado. Pensou em contatar seus pais, desistiu. Eles estavam viajando, conhecendo algum lugar exótico demais ou comum demais, não os incomodaria apenas por saudade ou medo. Cogitou falar com sua filha, desistiu. Não havia muito o que dizer e muita coisa para não dizer, então não a incomodaria apenas por ser mãe. Diolinda se esforçava em não ser aquilo que os demais acreditavam ultrapassado. Asterid passeava na sala totalmente alheio a tudo, como uma sombra, uma testemunha desinteressada de tudo.

Passados vinte ciclos depois do ciclo combinado para a chegada da visita, Diolinda concluiu que ele não viria. Nem tentou encontrar alguma razão válida para o fato, simplesmente parou de pensar sobre o assunto e saiu de casa apenas para caminhar pela vizinhança.

Diolinda não saía frequentemente à rua, acostumada que estava com o transportador corporal e suas conexões quase instantâneas com diversos locais. Mas hoje era especial, ou seria especial. A poucas quadras de sua residência, ela se encontrou com um casal idoso calmamente sentados na calçada olhando para o céu. Ela os reconheceu de sua infância e embora tenham se passado muitas décadas desde então, Diolinda os considerou exatamente iguais como eram:

- Bom dia, doutor Castro, bom dia, srª Amélia, como estão vocês?

- Bom dia, menina - respondeu a senhora com um breve sorriso e retornou os olhos para o céu.

Diolinda seguiu caminhando. Não havia outras pessoas até onde conseguia enxergar. O clima era ameno e uma brisa muito suave tocava seus cabelos. Ela pensou que era bom andar assim, sem responsabilidade, sem pressa, apenas admirando e observando. Não fosse o chamado repentino em seu sistema auditivo, ela teria, tranquilamente, continuado e sido feliz por mais tempo.

- Diolinda, precisamos de você agora na torre 5 - disse a voz em sua cabeça.

- Sim, estou a caminho - ela respondeu e se virou adotando um ritmo quase de corrida, algo entre um trote e um passo mais largo, ainda assim muito elegante.

- Até mais, doutor castro, senhora Amélia.

- Sim, adeus, menina - disse doutor Castro dessa vez e a acompanhou se distanciar tornando-se cada vez menor até desaparecer quando volveu os olhos para o azul celeste e deu a mão à sua esposa - Não vai demorar muito, Amélia - cochichou para sua companheira. Ela apenas concordou com a cabeça.

Diolinda imediatamente, ao chegar em sua casa, acionou o transportador e se viu no mesmo segundo no saguão da torre 5, mas especificamente na área de chegada dos funcionários. De lá seguiu para a sala de reuniões no sétimo andar do edifício onde já a aguardavam sua equipe de analistas especiais.

- A situação se agravou, doutora Diolinda - alguém a alertou imediatamente.

- Quão grave?

- Entramos em Modcon 5 - respondeu outra pessoa e o silêncio fez seu reino.

Já instalada em sua confortável poltrona de couro verdadeiro, uma raridade exótica muito a seu gosto, Diolinda decifrava os gráficos virtuais que disputavam sua atenção à sua frente. Números, projeções, perspectivas. E conclusões. Conclusões muito pessimistas.

- Quanto tempo?

- Doutora, como a senhora sabe, são apenas previsões e...

- Quanto tempo?

Após um período de constrangimento como alunos pegos sem cumprir o dever de casa, a analista sênior adiantou-se alguns passos e postou-se diante do vidro com visão para o mundo abaixo.

- 23 ciclos, doutora Diolinda. Apenas 23 ciclos.

Se antes havia um reino silencioso, este transformou-se numa ditadura implacável. Todos olhavam para si mesmos ou para o nada. Diolinda pensava nos pais e na filha e, curiosamente, no casal de idosos perto de sua casa.

- Muito obrigada a todos vocês pelo excelente trabalho dos últimos cinco períodos. Imagino que já tenham avisado o ministro-mor da situação.

- Sim, doutora, ele insistiu para não comunicarmos a população.

- Ótimo. Voltem para suas casas. Nosso trabalho findou-se.

A partida de todos foi silenciosa. Diolinda não quis retornar, apenas digitou comandos que lhe trouxe Asterid para a Torre 5 e um funcionário o entregou em sua sala particular. O gato não demonstrou surpresa ou animação, escolheu uma das cadeiras mais próxima e enrolou-se tranquilamente.

Já havia decorrido 22 ciclos, restava o último e Diolinda apenas aguardava. Havia feito o que estava em seu alcance, porém, era irreversível. Arriscaram-se demais na tentativa de ... um chamado surgiu nos ouvidos da doutora.

- Mãe, o que está acontecendo ? O céu está estranho como se estivesse tremendo e há cores novas nele... a senhora sabe...

A ligação mental foi interrompida. Diolinda apenas disse "eu te amo, minha filha", aliás, queria ter dito.

Ao longe uma gigantesca forma luminosa parecia aumentar cada vez mais e vinha devorando tudo em sua expansão. Diolinda a observava se aproximar, Não havia som. O céu parecia mesmo ondular como no que chamavam mar há muitos eras. Diolinda espantou-se por nunca ter visto uma onda verdadeira, jamais procurou saber como era. Deveria se parecer com isso agora que vinha exterminar todo seu mundo. Asterid miou longamente, a única dica de que estava ciente dos acontecimentos.

Diolinda deu as costas para o vidro esperando que não houvesse muita dor.

;

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 16/12/2023
Reeditado em 16/12/2023
Código do texto: T7955170
Classificação de conteúdo: seguro