Laranjeira just-in-time

Airton era um desses técnicos que ganham a vida fazendo montagem e manutenção em computadores. Um dia fui na pequena loja dele e lá havia uma laranjeira plantada em um grande vaso. Era uma arvorezinha perfeita, de folhas limpinhas e brilhantes, galhos carregados de frutos verdes no ponto de iniciar a maturação. Tinha uma única laranja madura, de cor tão viva que parecia convidar a gente a comê-la.

Estava admirando a planta quando Airton disse que eu poderia colher a laranja, se quisesse. Fiquei feliz, mas duvidei e perguntei se podia mesmo apanhá-la, ele disse que sim, colhi o fruto com certa cerimônia, valorizando cada segundo daquela dádiva. Em seguida Airton falou: – agora observe.

Fiquei olhando e nada aconteceu. Nem mesmo um inseto saiu voando.

Começamos a conversar sobre o computador que eu tinha levado para consertar, dez minutos depois, algo chamou minha atenção na laranjeira. Olhei, lá estava uma nova laranja madura. Uma só. Airton, cheio de orgulho, piscou pra mim sorrindo: – Viu?

– Amadurece uma por vez?

– Isso mesmo.

– Onde você conseguiu essa planta?

– Mandei fazer – respondeu ele, em tom de mistério, obviamente me convidando a perguntar mais.

– Como assim?

– Na verdade, eu inventei. Está vendo essa caixinha aqui?

Junto ao tronco, bem na base, havia uma caixinha de plástico com um par de fios bem finos ligados a uma tomada. Airton explicou:

– Não funciona em qualquer laranjeira, tive que pedir a um amigo geneticista para criar uma transgênica sensível às mensagens da minha caixinha.

– Sério? Você consegue isso?

– Diga-me você. Apanhe a laranja madura outra vez e observe.

Colhi e esperei. Logo percebi uma laranja verde iniciando um processo de rápido amadurecimento.

– Caramba! Isso é uma laranjeira just-in-time! - falei, me referindo ao sistema de produção usado nas empresas para trabalhar com "estoque zero". – Como você teve a ideia?

– Bem... na verdade tive a idéia colhendo amoras.

– Sério? - falei, expressando minha sincera admiração.

– Sério - disse ele rindo. – Quando eu ia colher amoras, notava que tirava todas as maduras de um galho, passava para o galho seguinte, e dez ou quinze minutos depois voltava ao primeiro galho e via que havia mais amoras maduras nele. No começo eu achava que tinha deixado elas para trás, mas comecei a prestar bem atenção e percebi que tem alguma coisa na química da amoreira que libera uma nova amora para amadurecer depois que alguém tira as que já estão maduras, ou quando as maduras caem.

– Verdade, já notei isso - falei. – Mas eu pensava que seria devido ao ciclo natural do amadurecimento das amorinhas. Tem várias plantas que fazem coisa parecida. A Sibipiruna é um bom exemplo. Os botões das flores ficam numa espiga, e as flores vão abrindo uma camada por vez. Assim, a flor abre e cai rapidinho, no mesmo dia, mas a árvore fica florida durante quase duas semanas.

– É quase isso. A sibipiruna está naturalmente programada para fazer algo semelhante com suas flores. Mas veja a roseira. Ela põe um broto, cresce a nova haste, na ponta da haste eclode uma flor. As pétalas caem e fica aquela bolota, que ali permanece durante meses e meses. Se você tira a bolota, logo abaixo nasce um broto e vem outra flor. Se não tirar a bolota, o novo galho só nasce depois que a bolota seca. O que isso significa? Quer dizer que os hormônios do pseudo-fruto da roseira inibem os hormônios da brotação.

– É verdade... - falei. – Toda planta tem um mecanismo de hormônios que regulam o crescimento, os ciclos vitais etc. etc... Já vi muitas árvores que põem um broto novo na primavera, mas se cortamos a ponta do galho surge uma brotação em seguida, em qualquer estação do ano.

Airton prosseguiu contando sua experiência:

– Aí eu comecei a pesquisar a bioquímica da amoreira e de outras árvores frutíferas, até que inventei a caixinha que você está vendo no pé da laranjeira.

Airton me olhava divertido, pra ver se eu acreditava nele ou duvidava. Eu não tinha porque duvidar, estava vendo a coisa acontecer bem na minha frente.

– Entendi... a caixinha manda pulsos elétricos...

– Não, não. A comunicação ocorre no corpo vital da planta.

– Como assim? – pensei um pouco, procurando as palavras: – a caixinha emite pulsos vitais para o periespírito da planta?

– Mais ou menos isso... Digamos que é quase o mesmo que dizer que a conversa é com a alma dela.

– Tá me zoando...

– Parece que estou mesmo, não é?...

Aquele silêncio... dizem que é quando um anjo passa voando entre pessoas que estão conversando. Voltei ao assunto:

– Vamos supor que você está me falando a verdade: você conseguiu hackear o “computador” de Deus.

Airton pensou um pouco, sempre com um sorriso superconfiante de quem não se importa que duvidem dele:

– Na verdade é o que acontece cada vez que fazemos uma descoberta científica: hackeamos o “computador” de Deus”. Não é?

No dia seguinte fui buscar o computador consertado, lá estava a laranjeira, carregada de frutos verdes e uma única laranja madura. Estava com pressa e deixei a prosa para uma próxima vez, mas não houve próxima vez: uns vinte dias depois Airton não abriu mais a sua loja e desapareceu.

Perguntei aos vizinhos e ninguém soube dizer o que aconteceu. Espiei por um buraco no portão, a laranjeira estava lá, desfolhada, quase seca, carregada de frutos verdes já murchos e uma única laranja madura, igualmente murcha, pela falta de rega.

Alguém falou que Airton morreu de Covid-19, mas eu sei que ele está vivinho da Silva. Outro dia, estava lendo na internet notícias sobre uma empresa que patrocina uma aventura de colonização em Marte, e numa foto dos nerds que trabalham nessa empresa eu vi Airton lá, de macacão branco. Era ele, sem a menor sombra de dúvida.

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Just-in-time: técnica de produtividade industrial desenvolvida no Japão para reduzir os custos de produção, também chamada de “estoque zero”, produzindo as peças e partes apenas no momento de utilizá-las na montagem do produto final.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 21/12/2023
Reeditado em 10/03/2024
Código do texto: T7959258
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