CORONEL SANSON, O AUTÔMATO - (Contra-contos #7)

CORONEL SANSON, O AUTÔMATO

-- Desde menino, por toda a vida fui soldado. Conhecer a mãe de vocês, viver com ela e ver vocês nascerem e crescerem foi tudo para mim, por muito tempo. Mas agora pedem para ir quando sabem que podem ficar? Estou um pouco confuso mas não tanto para ignorar o que fazer. Acreditam-me um robô, não? Um homem sem vontade própria, um autômato cumpridor do dever, o sagrado dever? -- quase gritava agora, nunca a indignação e a revolta o haviam de tal modo acometido – Pois bem, é um robô, é um autômato com uma peça sangrando dentro do peito mecânico, que diz: Não! Vocês ficam!

Dispensava qualquer recurso dramático, nunca se inclinara ao teatro para se fazer acreditar – e obedecer. Eles acreditaram, amaldiçoavam-no, choramingavam – e sabiam que não seriam atendidos pelo pai, não iriam. Só se o matassem – mas para tanto teriam aquela fibra que não haviam herdado?

Eram momentos decisivos, agora ou nunca!

O mais velho consultou os demais com o olhar – haviam pensado na negativa, tinham planejado tudo.

Mas por acreditarem que cederia, tinha de ter um traço de humanidade naquela vida militar inflexível, um coração paterno a querer sua progênie livre do destino de quase todos, assim mandando sua própria semente à tentativa razoável de sobrevivência – e que era a vida se não houvesse sobrevivência?

Na verdade devia-se dizer ‘sobrevida’, e não apenas ‘vida’… -- e também pelo respeito temeroso sempre a ele dedicado, haviam feito a consulta. Seria ao mesmo tempo mais fácil obter um possível ‘sim’ e menos arriscado.

Corbette os olhava, muda e tão despercebida que seria justo considerá-la apenas como um dos arquivos de aço daquele gabinete – mera espectadora.

A mesa impecavelmente arrumada, a gaveta entreaberta como a tinham encontrado ao entrarem, abrindo ou fechando a gaveta burocrática mais uma vez.

Nunca a haviam conhecido bem, desde novos se mostrara hermética, afastada e distante, apenas em doses mínimas se portara como irmã. Não podiam contar com ela, criatura apagada, inoperante, sem concordar ou discordar de coisa alguma. Chamá-la ‘irmã’ era como chamarem o trisavô de antepassado – nada significada.

Eles se entreolharam; de costas para todos e olhando pela janela à prova de balas o velho militar parecia examinar mais uma vez o enorme campo sob sua responsabilidade.

Lá estava a astronave, recebendo seus tripulantes e os escolhidos.

Logo teria de entrar em ação, não podia dedicar a assuntos familiares mais que o tempo estritamente necessário – havia essa dose de humanidade no autômato, pensava amargamente.

O destino lhe armara arapuca, padreara filhos, aí sim, como verdadeiro autômato, arrastado pelos eflúvios da natureza, ele que se julgara isento de tais frivolidades – padreara os filhos…

Jean-Pierre, o mais arrojado e por isso o cabeça dos três, fez o sinal combinado.

Sacaram as armas, voltados para a janela, iam entrar em ação.

O estalido atrás deles passou quase despercebido.

Tão suave que só tardiamente o perceberam e se voltaram, devagar, os três como bonecos movidos pelos mesmos cordéis.

Corbette tinha a submetralhadora cobrindo-os, segura com decisão.

A rajada foi curta em alta cadência de disparo.

À janela, Sanson, o Coronel Sanson, voltara-se também, chegara a perceber as armas nas mãos dos três filhos mas estes se postavam então gelados, semi-voltados para a mesa onde a ‘irmã’ os visava, semblante inexpressivo, apenas os olhos se abriam um pouco mais.

A rajada não o surpreendeu, não o pegou desprevenido.

Quantas vezes estivera a centímetros da morte!

E sua mente percebera todo o ocorrido.

Viu-os tombar como fantoches desengonçados, o sangue espirrando para os lados, logo estendidos no chão.

O matraquear foi curto, logo cessou. Corbette fitava os três estendidos no chão, esgares e rictos de moribundos.

-- Papai – foi tudo o que disse.

Ele a recebeu aos braços abertos, abraçaram-se mudos e assim ficaram imóveis; a porta se abriu, irromperam diversos uniformizados, armas à mão.

Os olhares dos recém-vindos absorviam a cena, finalmente pousavam no velho militar que lentamente soltou a filha.

Seu peito sem condecorações – não as usava, exceto a pequenina Legião de Honra no botão representativo – ostentava, porém, diversas manchas purpúreas de sangue a escorrer vagarosamente pela túnica.

Era sangue seu, sangue dos filhos espirrava pelas paredes, por toda parte.

Corbette também estava salpicada, com a mão apoiava-se na mesa de trabalho onde por todo o tempo servira o velho soldado com tudo que tinha.

Pela janela fitava o campo imenso, parecia ausente por completo.,

-- Tudo sob controle aqui – disse o velho coronel Sanson -- Se possível, dêem sepultura a estes soldados. Eles sabiam lutar, afinal. Mas perderam. O lugar deles é a terra.

Saiu para cuidar de questões urgentes.

A espaçonave se achava pronta, livre para partir.

Ela partiria com os cento e trinta escolhidos, nem mais um, nem menos um dos escolhidos, sua seleção fora a melhor possível.

O velho coronel Sanson, o autômato, cuidaria disso.

Ele e a filha, ela acenando enquanto a espaçonave começava a alçar-se ao espaço, ele em continência.

A alguma distância, bons soldados haviam detido as multidões desesperadas por partirem na última espaçonave a abandonar aquele mundo condenado.

Comandados por ele, os soldados haviam cumprido sua missão. Que os outros, os que haviam sido selecionados e partido, cumprissem a sua, a esperança sobreviveria.

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Valpii 860430 - 790730

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CORONEL SANSON, O AUTÔMATO

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS,de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do sétimo dos contos da coletânea,.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 03/01/2024
Código do texto: T7967749
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