-ADAPTAÇÃO- IOLANDINHA PINHEIRO
 

Chegamos ao lugar depois de muitas buscas. Era uma terra quente, fumegante. As brasas ainda ardiam entre as cinzas e isso era do que precisávamos:calor.

Viemos do caos de um lar extinto, cruzamos o espaço no recôndito congelado de uma gigantesca nave, cortando o tempo e o vazio em vertiginosa velocidade. Suportamos a mudança de temperatura ao atravessarmos a órbita do planeta e o choque, que fez nosso ninho se rachar em centenas de fragmentos. Como era do nosso destino, afundamos muitos metros na dureza da rocha infértil e por ali ficamos em deliberada inércia pelo tempo necessário ao nosso despertar, no adormecimento paciente dos nossos planos.

Acordamos quando aquele mundo já havia parado de arder, e nos alimentamos dos despojos da matéria brutalizada pelo fogo.

Vagávamos pela superfície morta e cinzenta e a nós parecia que seria sempre assim. As mudanças foram se fazendo imperceptíveis, no início, mas com o tempo vimos que o solo se resfriava lentamente. Sabíamos, intuíamos o fim do que havíamos sido até ali.

O ar se libertava do odor denso e as cores da cúpula da atmosfera dourada iam ganhando um tom mais limpo e azulado. Foi no tempo que a água começou a cair do céu e não parou até ter mudado todo o nosso novo mundo. Passaram-se eras e a vida brotava em torno de nós. O líquido recuou e o planeta se dividiu. Assistimos ao nascimento das primeiras espécies e o seu fenecimento para que outras surgissem.

A nova composição atmosférica teve influência sobre nós. Alguns não suportaram e foram em busca de sítios mais quentes. Os restantes, nós, nos deixamos sofrer adaptações que o tempo e o ambiente nos propiciaram.

Observamos, encantados, a lama fecunda em que a chuva havia se transformado, se tornar o berço de onde surgiram vegetais, e cresceram seres que, assim como nós, moviam-se sobre a rocha ou sob a água.

Para nós, após milênios habitando mundos cinzentos de atmosferas alaranjadas, entender que havia cores como o verde e o lilás era como renascer em um universo de estímulos sensoriais.

Não havia limites. Brotamos junto com aquela efervescência de vida, na exuberância pungente e, por que não dizer, na urgência daquela toda e vibrante diversidade.
A terra era a materialização da criatividade de um arquiteto insano. Olhávamos impassíveis a floresta rasgar o solo infértil e cobrir de formas, sons e cores o que antes era o nada.

O novo mundo era um convite para a interação. E nos entregamos ao consciente e descontrolado deleite de provar, cheirar, sentir, destruir. Mas tudo se reconstruía novamente e fomos deixando que crescesse em paz. Para uma espécie tão desprovida de motivações, estarmos rodeados de tanta vida era provocador. Fomos, então, ficando por ali, usando o código genético de toda aquela miríade de seres e experimentando ser o que eles eram.

Fomos testemunhas daquela evolução com interesse e apetite. Cada carga vital, por mais insignificante que fosse, era uma nova sequência de DNA a ser repetida e uma experiência a viver nos nossos próprios corpos em um transformar-se constante.
Cresci vegetal. Tive escamas e pelos. Respirei por guelras e pulmões. Germinei numa metamorfose contínua de feições, tamanhos e hábitos.

Naquela densa e quente floresta onde decidimos ficar, havia a maior gama de espécies concentrada por metro quadrado em toda a galáxia. Tudo já era absolutamente divertido do jeito em que estava, mas quando a espécie soberana finalmente surgiu identificamos ali a oportunidade de nos infiltrarmos de modo definitivo no planeta.

Continuamos por aqui, mas nos expandimos para outros lugares. Nossas feições foram ficando cada vez mais parecidas com os habitantes originais, soubemos nos misturar. Costumamos rir quando os cientistas afirmam com toda a convicção que a humanidade havia se iniciado na África. O verdadeiro berço desta raça intrigante e maravilhosa foi aqui, por onde a Amazônia se estende.

Quanto a nós, conseguimos chegar a um nível tão perfeito de semelhança com os habitantes da Terra, que só é possível nos identificar por um fator sanguíneo. Alguns nos chamam de anjos, outros de demônios, mas nós podemos ser qualquer um ou qualquer coisa: quem sabe um gato, um governante, um vizinho, alguém que se conheceu pela internet.

Estamos entre as pessoas assim como estivemos antes mesmo de existir qualquer vida neste mundo. Estaremos aqui enquanto nos interessar, mesmo depois que a humanidade estiver definitivamente extinta. Somos viajantes, somos parasitas, somos deuses, somos eternos.




Interação do Maravilhoso  Francisco de Góis, criador do REDONDE

 

ORDO AB CHAO

 

Das ideias eu nasci,

no imenso caos viajei.

Nesse plano ressurgi,

na evolução prosperei...

Já passei por mineral,

vegetal e animal...

Se cheguei até aqui,

nunca mais me deterei!

Das ideias eu nasci,

no imenso caos viajei!

 

 

(ChicoDeGois). Meus aplausos de pé!