Servir com doçura


"Acordei!"

Em meu quintal, Bob fazia estardalhaço; latia e rosnava em tom agressivo. Nunca o vi desse jeito. O que será que o atormenta? Levantei apressado e corri para a porta dos fundos. Quando já ia abri-la, ouvi a voz de dona Lúcia, minha vizinha, chamando no portão:

— Augusto! Será que você poderia me arrumar, rapidamente, uma xícara de açúcar? É uma emergência!

Nunca dei esse tipo de liberdade, nunca saí da minha casa para pedir nada a vizinhos. Não sei por que essas coisas acontecem comigo. Essa fofoqueira desgraçada, bruxa, vive a me atormentar: fala mal de mim e de toda a rua e agora vem me incomodar para pedir açúcar. Emergência? Como se pode encaixar açúcar na categoria de emergência? Essa velha é louca!

— Claro, dona Lúcia, já estou indo!

Até o pobre do Bob se calou; acho que ficou com medo da voz daquela bruxa e se escondeu. Fui até o armário pegar o açúcar. Na noite anterior, tinha enchido a lata até a tampa. Estava repleta com seus 5kg de capacidade. Quando segurei aquela pesada lata, ainda sonolento, descuidei e deixei que caísse. O açúcar se espalhou por toda a cozinha. Fiquei irado: essa velha desgraçada me paga. Peguei a xícara e, em vez de açúcar, enchi de sal. Dona Lúcia vai fazer um café espetacular. Já parece desesperada, gritando desse jeito, imaginem quando provar o seu "doce" café.

— Aqui está, dona Lúcia, o seu "açúcar"!

Miserável, saiu correndo e nem me agradeceu. Não tem problema, ela vai ter uma grande surpresa. Voltei para dentro de casa e estranhei o silêncio que Bob fazia no quintal, porém não tive coragem de abrir a porta. A noite não foi nada boa; ainda estava com muito sono. Resolvi voltar a dormir e, então, percebi que as minhas pantufas estavam cheias de açúcar. Como pude atender dona Lúcia usando essas coisas ridículas? Joguei-as dentro do armário sem ao menos limpá-las e caí, literalmente, na cama. Quando já estava conseguindo adormecer, escuto novamente aquela voz estridente:

— Augusto! Pelo amor de Deus, ajude-me!

Dona Lúcia, de novo? O que será dessa vez? Levantei às pressas e corri até o portão. Encontrei dona Lúcia chorando desesperada.

— Augusto, meu filho, estou precisando muito de um favor seu.

— Diga, dona Lúcia. O que foi que aconteceu?

— A minha mãe veio me visitar. Ela estava no quintal quando um gato pulou o muro, fugindo do seu cachorro, e caiu em cima dela. A coitada tomou um grande susto e começou a passar mal. Foi então que resolvi dar água com açúcar para ela, mas eu não tinha açúcar em casa, por isso pedi a você. Dei a água com açúcar, mas tenho a impressão de que ela está piorando. Por favor, Augusto! Você poderia nos levar até um hospital?

— Claro, dona Lúcia! Vamos agora mesmo!

Meu Deus, olha o que fiz. Que brincadeira idiota a minha. E se essa senhora morrer? Para piorar a situação, dona Lúcia falou que a mãe é hipertensa. E agora? O que vou fazer? O sentimento de culpa tomou conta de mim. Corri como louco até o hospital mais próximo. A mãe de dona Lúcia não tinha nenhum tipo de plano de saúde, nenhum convênio e, assim sendo, teríamos que levá-la a um hospital público. Resolvi, então, não correr o risco, comprometendo-me a pagar naquele hospital, do próprio bolso, todas as despesas. Dona Lúcia achou estranha a minha decisão, mas aceitou. A pobre senhora moribunda foi atendida sem demora. Quando o médico examinou a paciente, constatou minha suspeita: a pressão da velha estava na estratosfera. Fiquei desesperado com o diagnóstico: a mãe de dona Lúcia corria risco de vida. Ela recebeu uma injeção para controlar a pressão e o médico disse desconfiar que a paciente tivesse sofrido um derrame, porém precisava fazer exames mais detalhados. Nunca fui um homem de muita fé, porém, nesse momento, orei e pedi a Deus que salvasse a vida daquela mulher. Prometi a Ele que, daquele dia em diante, não iria mais brincar daquele jeito com as pessoas. Entendi a gravidade de um ato impensado. Às vezes, julgamos um ato simples e não pesamos sua conseqüência. Ficamos eu e dona Lúcia no corredor do hospital enquanto a pobre senhora foi levada para exames. Dona Lúcia, coitada, olhava para mim agradecida sem sequer imaginar que toda a bondade que via nos meus atos não passava de sentimento de culpa.

— Augusto, aconteça o que acontecer, eu vou ficar eternamente grata a você.

Essas palavras me incomodavam, faziam me sentir um canalha, um desgraçado.

— Tudo bem, dona Lúcia. Não me agradeça. É obrigação de um ser humano servir a outro.

Que frase falsa para alguém que se sentiu incomodado em servir uma vizinha, dando-lhe uma simples xícara de açúcar. Sou mesmo é um projeto de ser humano, uma criatura medonha. E aquele olhar agradecido de dona Lúcia me ferindo a carne e a alma. A expectativa, por sua vez, consumia o resto das minhas energias. De repente, a notícia:

— Dona Lúcia, sua mãe sofreu mesmo um derrame cerebral e vai precisar ficar internada em observação.

Com essa notícia, quase sofro eu um derrame. O pior era o constrangimento de amparar dona Lúcia, aos prantos. Sentia-me a mais dissimulada das criaturas. O médico disse que devíamos ir para casa, pois não tinha mais nada que pudéssemos fazer, além de aguardar e rezar pela recuperação da paciente. Dona Lúcia se negou a sair dali, deixando a mãe sozinha. Pediu que eu fosse para casa. Olhando para mim, notou, estampado nos meus olhos, o cansaço que me consumia. Preocupado e mesmo achando que não deveria sair dali, fui vencido pela exaustão. Chegando em casa, fiquei assustado ao perceber que tinha deixado a porta aberta. Ao chegar na cozinha, para minha surpresa, não encontrei sequer um grão de açúcar no chão. O mais estranho mesmo foi encontrar a porta do quintal também aberta. Não lembro de tê-la aberto. E o meu cachorro? Por que não está latindo? Foi aí que a realidade me veio, eliminando dúvidas e trazendo alívio: eu não tenho cachorro!

Acordei!

Que pesadelo terrível, meu Deus! Parecia tudo tão real! Com a cabeça ainda confusa e o corpo todo molhado de suor, levantei-me da cama apressado. Sentia uma inexplicável vontade de ir até a casa de dona Lúcia. Apesar de tudo não passar de um sonho, queria saber como ela estava. Nunca se sabe o que pode significar um pesadelo desse tipo. Não perdi tempo: descalço e ainda de pijama, corri até a casa vizinha. Toquei a campainha e aguardei um pouco. Ninguém apareceu. Insisti, voltando a tocar a campainha. A expectativa continuou por alguns segundos, até que ouvi o barulho da fechadura do portão se abrindo. Uma senhora com cabelo todo grisalho e sorriso muito simpático apareceu em minha frente.

— Bom dia, rapaz! Posso ajudá-lo em alguma coisa?

Aquele rosto não me era estranho.

— Bom dia, senhora! A dona Lúcia está?

— Sim, está. Quem gostaria de falar com ela?

— Diga-lhe que é seu vizinho: o Augusto!

— Um momento, por favor! Eu vou chamá-la!

Quem será essa senhora? Pelo que sei, dona Lúcia mora sozinha. E agora? Fiquei tão ansioso de vir até aqui, que nem planejei o que dizer a dona Lúcia quando ela aparecer. Na verdade, não tenho nenhum assunto para tratar com ela. O que vou fazer? Ela já está vindo. Pense, Augusto! Pense rápido!

— Bom dia, Augusto! Em que posso ajudá-lo?

— Bom dia, dona Lúcia! Está um dia lindo, não está?

— Sim, Augusto. Está um dia lindo! Mas, o que posso fazer por você?

— Dona Lúcia, desculpe perguntar: quem é aquela senhora que me atendeu?

— Aquela, Augusto, é a minha mãe. Hoje é um dia muito feliz para mim, pois ela veio me visitar. Ela mora no exterior e há dez anos eu não a via.

Dona Lúcia, enquanto me dava essas explicações, olhava-me desconfiada como se esperando o momento em que eu diria, finalmente, o que pretendia quando fui procurá-la. Eu, por minha vez, olhava para ela com uma expressão confusa: como pode ser tanta coincidência? Eu sonhar com a mãe dela justamente no dia que esta veio visitá-la. Ainda por cima, essa senhora ter a mesma aparência daquela do meu sonho. Por um momento, fiquei com um olhar perdido diante de dona Lúcia. Ela, notando aquele meu ar atônito, ficava cada vez mais confusa e ansiosa para saber o que eu realmente queria.

— Augusto! Augusto! Você está bem? Acorda meu filho! Afinal em que posso ajudá-lo?

Não sabendo o que dizer, disparei a primeira asneira que me veio à cabeça:

— A senhora poderia arrumar uma xícara de açúcar?

— Claro, meu filho. Não acredito que você estava tão estranho só por vergonha de me pedir um pouco de açúcar. Essas coisas acontecem: às vezes a gente nem nota e, quando vê, está faltando alguma coisa em casa. Isso é muito natural. Aguarde só um momento que eu vou pegar o açúcar. Fico muito feliz em poder servi-lo.

Enquanto dona Lúcia se dirigia para dentro de casa, fiquei no portão me sentindo ridículo. Nunca pensei em estar ali, naquela situação: pedindo um pouquinho de açúcar. Também nunca imaginei que dona Lúcia seria tão simpática. Julgava que ela se irritaria caso a incomodasse, pedindo algo. Costumamos julgar a reação das pessoas pelas nossas e isso, sem sombra de dúvidas, é um grande erro.

— Aqui está, Augusto, o seu açúcar!

— Obrigado, dona Lúcia! Gostaria que a senhora soubesse que pode contar comigo quando precisar. A qualquer hora, pode me chamar que terei grande prazer em servi-la!

Voltei para casa pensativo com aquela xícara de açúcar nas mãos. É verdade que não entendi direito o significado daquele meu sonho. Mas de uma coisa eu tenho certeza: a partir daquele dia, melhorei muito como ser humano; tornei-me mais tolerante e atencioso com as pessoas, procurando servi-las da melhor maneira possível. Também perdi o receio de incomodar, pedindo favores. Tanto que, logo no dia seguinte, voltei à casa de dona Lúcia. Queria saber se ela tinha algum tipo de veneno, pois precisava matar um enorme número de formigas que apareceu, misteriosamente, dentro do armário onde costumo guardar meus sapatos.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 08/06/2008
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