AMIZADE TÃO MACABRA

No tempo em que se passa esta história eu tinha oito ou nove anos, meu irmão, Davi, tinha em torno de sete e nossa irmã, Lucinha, tinha dez, quase onze. Uma das casas de parentes que gostávamos muito de ir era a do tio Antônio, tio do pai, que ficava perto das casas do tio Avelino e da Avó Paulina, mãe dos tios e da avó Isabel, que é a mãe do pai. Gostávamos muito de ir à essa casa por causa do trato amoroso que a tia Maria nos dispensava, também por causa das primas grandes, tão bonitas e simpáticas, como a Marlene, a Marli e a Marilene, além do Paulo, dois anos mais velho que eu, e do Didi, bem menor que o Davi. Também gostávamos de ir à casa deles porque tinham televisão, coisa que em nossa casa não havia, sendo que mesmo a eletricidade não chegava em nossa vila. Em algumas tardes de sábado assistimos com eles ao filme do Tarzan, que muito nos impressionava, bem como História de Elza e outros seriados inesquecíveis.

Todavia, o que mais gostávamos era de brincar na rua, à frete da casa, com a meninada da vizinhança, entre eles a Maura, uma menina linda da minha idade, que morava quase na frente, a Fabiana, da mesma idade, que morava na casa ao lado da primeira, e o Maciel, que morava num sobrado à frente da cada da Maura, entre as casas da avó Paulina e o tio Antônio, que era a sexta desde a entrada da rua Paim, que era mesmo Manuel do Nascimento. Além desses, tinha o Ademir e a Míraim, filhos do tio Avelino, respectivamente, com treze e sete anos. Sem contar alguns outros amigos que não recordo.

A casa da avó Paulina era a segunda à esquerda de quem entra na rua, a do Maciel era a terceira, estando ao lado desta. Entre a do Maciel a do tio Antônio estavam as casas do Tio Avelino e uma outra de madeira, estilo quatro águas, pintada de laranja.

Quando íamos lá e podíamos brincar com nossos amigos, entrávamos noite à dentro correndo e se escondendo em meio a uma gritaria e risos sem fim, mesmo em meio ao barral da rua no chuvoso inverno. Despreocupados, ouvindo nossos gritos, em torno de nove horas, ou um pouco mais, os pais começavam a chamar a criançada. Então, um pouco desapontados, os que ficavam iam tentando manter a brincadeira boa como antes, apesar da ausência dos outros. Entretanto, já não tinha a mesma graça. Mesmo assim, desejávamos aproveitar ao máximo cada novo encontro.

Numa dessas noites, após terem saído o Ademir e a Miriam, a Fabiana e a Maura também terem se recolhido, não querendo que a noite terminasse, seguimos brincando eu, o Paulo, o Davi e o Maciel, cobertos até as canelas de um barro fino vermelho. Mas pouco tempo se passou e, atendendo ao chamado da dona Eloá, o Maciel entrou, indo ao tanque de roupas de sua mãe, no lado esquerdo do sobrado, limpar o barro dos pés. Um pouco contrariados, mas sabendo que logo sería nossa vez de nos recolher, ficamos junto ao muro desacatando o Maciel, usando bandalheiras leves, como “bunda mole”, “bundão”, medroso, etc..

Desacatávamos nosso amigo de brincadeira quando percebemos que aquele que estava nos respondendo não era mais o Maciel, mas uma flutuação de um vermelhe reluzente, cuja cor manchava de vermelho também a parede do prédio. Sua cabeça tinha a forma de um cartucho de supermercado, cuja parte de cima era picotada, como os dentes de uma serra. A boca era como um retângulo com os cantos muito arredondados, tendo os dentes, também vermelhos, mais agudos que de uma serra. Os olhos eram redondos e enormes, inflamados feitos tocha, girando como redemoinho. Da cintura para baixo, o corpo tornava-se transparente até desaparecer.

Temeroso, o Paulo pediu-me que olhasse com atenção, pois o que nos respondia com iguais bandalheiras não era mais o Maciel. Olhei melhor e vi a imagem assustadora. Não sei se o Davi viu a mesma coisa, mas quando nos olhamos os três e eu corri para casa da avó Paulina, no mesmo instante os dois me seguiram, mas, chegando em frete ao corredor da garagem, vimos o vulto vermelho sair do interior da parede do sobrado, encaminhando-se para atravessar o muro e nos interceptar no trajeto entre a frente e a varanda nos fundos da casa da avó, onde tinha luz acesa e sabíamos que ela estaria.

Sem pensar muito, retornei, indo direto para a casa do tio Antônio, seguido dos dois desesperados. Chegando na casa, comecei a subir a escadaria de pedra com tal velocidade que usava os pés e as mãos, ficando estendido no meio quando meu pé falseou e escorreguei. Após os dois terem passado por cima de mim, sem olhar para trás por causa do medo, mas certo de que o vulto vermelho estava tão perto que pouco faltava para pegar meu calcanhar, consegui voltar a subir, entrando espavorido na porta que imediatamente se fechou atrás de mim.

Após acudirem-nos o pavor, os grandes nos questionaram sobre o que nos teria dado tal corrida. Em seus olhares, porém, víamos intercalarem-se a crendice e a desconfiança, predominando, porém, a última.

Quando, bem mais tarde, todos se recolheram e fomos para a cama que a tia Maria nos preparou no assoalho da sala, já tínhamos esquecido o acontecido. Virados para o Davi, que dormia tranqüilamente entre nós, eu e o Paulo conversávamos esperando que o sono viesse. Após virar-se de barriga para cima, pois ia dormir, o Paulo sussurrou que eu olhasse para ver quem nos observava do teto. Compreendendo o que se tratava, verei com cuidado e vi o demônio vermelho flutuando sobre nós, nos olhando com a maior naturalidade, como se fosse alguém da nossa intimidade, e sua luz vermelha manchava o branco do teto. Com as cabeças cobertas e a respiração ofegante, dizíamos um ao outro que chamasse a mãe, até que a tia Maria abriu a porta e acendeu a luz, querendo saber o que se passava. Então Nos fizeram camas entrando nas portas dos quartos das mães.

Nos dia seguinte havia uma grande fresta na parede da sala e o Maciel nos disse que não fora ao tanque lavar os pés, mas que entrou direto para o banheiro no interior do sobrado.

Wilson do Amaral